20 maio 2020

Quais mudanças?


Pós-pandemia de quê?  
Rogério Morais*

Após o controle da COVID19 será o fim da pandemia, entraremos, assim, em um “novo normal”, como já se denomina o retorno ao período de estabilidade das rotinas da humanidade? Muitos defendem que estaremos transformados, com novos hábitos, com uma visão diferenciada em vários aspectos sociais.
Sou do time que acredita em uma mudança. A experiência da quarentena, do convívio com o contágio e com a perda de entes queridos tem sido emocionalmente muito forte para que não afete nossa memória e comportamento. Mas me assusta a possibilidade natural de em um dado momento voltarmos a nos acomodar e não percebermos que já vivíamos em profundo desequilíbrio sistêmico, seja no âmbito econômico, social ou ambiental.
A falta de acesso a uma infraestrutura de saneamento ou à água potável já matava ou potencializava a contaminação de diversas doenças. A desigualdade alarmante continua seu crescimento galopante das últimas décadas, segregando a sociedade em distintos níveis de oportunidades e acesso a direitos básicos universais. A fome continuará a assolar mais de 800 milhões de pessoas no mundo (dados da ONU, relativos ao ano de 2018). As mortes violentas dizimam nossos jovens. A temperatura do planeta registra os maiores crescimentos dos últimos dois mil anos (segundo dados da Revista Nature Geoscience). E ainda há a corrupção, o tráfico de drogas, a violência contra a mulher... Enfim, não faltariam temas relevantes com os quais convivemos com “naturalidade” desde a pré-pandemia.
Torço para que esta seja mais uma externalidade positiva do processo tão dolorido que estamos passando. Que estas reflexões abram um novo olhar sobre os “invisíveis”, nos tirem da inércia da naturalização e impulsionem uma percepção menos egocêntrica e mais ecocentrista. Otto Scharmer define bem este contexto em seu livro Liderar a partir do futuro que emerge: “O problema somos nós. Somos nós que consumimos recursos além da capacidade de regeneração do nosso planeta. Somos nós que participamos de esquemas econômicos que replicam o divisor de renda, o consumismo e a bolha da estafa que o acompanham”.
Que seja mantido o nível de esforço para enfrentar outras tantas pandemias tão graves quanto esta, mesmo que elas ocorram em outras regiões da cidade, em outros países ou outras famílias. Fazemos parte de um grande coletivo e a felicidade dos outros parece ser um dos elementos para um equilíbrio geral.
*Secretário Executivo para a Primeira Infância do Recife
[Ilustração: Arshile Gorky]

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