Em vez de
um bolero, um frevo
Marco Albertim
Somente aos sábados, o Oitão da Conceição solta ruídos que não
são seus. Ouvem-se os esguichos de carros de mão, em geral carregando galinhas
e perus que não deixam por menos o alvoroço de um extremo a outro do oitão. Os
porcos, puxados por cordas amarradas ao pescoço, contribuem com os grunhidos de
suas gargantas gordas.
Junto a animais e veículos com tração de duas rodas no máximo, o
vozerio das pessoas deixa-se espremer entre as duas enormes paredes das duas
únicas casas com a cumeeira alta. Sábado é dia de feira. Goiana não estremece,
mas de suas entranhas saem homens e mulheres em trânsito para a morte, abrem as
bocas para esganiçar entre os cacos dos dentes que a morte não é uma lorota,
por isso caminham para a feira tão ou mais barulhentos que os sinos das
igrejas.
Aos domingos a cidade encolhe feito um caramujo. Ao fim da tarde, os sinos do
Carmo tocam para a missa. As portas de cada casa se abrem sem medo de fazer
ruído nos trincos e tranquetas enferrujados. Os sinos, alternando badalos
agudos e espessos, são o salvo-conduto para a redenção de pecados indistintos.
As velhas, encostando-se nas paredes das casas, rumam para a igreja; têm medo
de que a fuligem dos canos de escape nos escassos veículos, empane a brancura
do véu que imprime santidade em seus cabelos brancos.
Às segundas, como de resto até às sextas-feiras, o bulício rotineiro tem o
efeito de entorpecer o juízo de cada morador. Nada de inusitado lhes acontece,
e contentam-se com informes medíocres, inda que singulares porque ditos à boca
miúda.
É durante a semana que o Oitão da Conceição mostra seus moradores como raízes
que dão frutos só ali. Comecemos pela família que habita a casa ao fundo do
oitão. Tem como chefe uma matrona sem marido certo. O corpo é anguloso como as
linhas das beiras da única janela; da janela e da porta de trinco enferrujado.
Não é alta, mas a redondez das ancas junta-se aos cabelos descidos nas costas,
combinando com a voz estridente de quem impõe autoridade não pela justeza dos
argumentos, mas pela sonoridade da garganta. Tudo isso confere à mulher
atributos que fazem-na abominar a romaria dos bichos para os abates da feira.
Por trás de si, três filhos: uma moça de quatorze, um rapaz de treze e o miúdo
de apenas dez anos. Todos afeitos à obediência cega. Têm o que comer e o que
vestir, inda que a mãe, na pacatez dos dias úteis, faça no encurvamento do
corpo as medidas para o comércio do próprio sexo. Ela recebe cada um dos
amantes, duas a três vezes por semana. Os filhos evacuam os recintos escuros do
reduzido lar. A moça simula namoros na conversa sem prumo com a amiga numa rua
próxima, os meninos comprazem-se correndo atrás de uma bola que os aliena da
noção de serem filhos de uma rameira.
Vizinho a Amara - o nome combina com as calcinhas de morim sem elástico, com
botões num dos lados dos quadris, inda que deixando marcas na pele - mora o
clarinetista conhecido como Léo. Tem por ofício a arte de cortar cabelos. Sabe
dos segredos da cidade junto com outros dois barbeiros, com quem divide o
aluguel do salão; não em sua casa, mas olhando para a calçada ampla da rua da
feira. Divide os segredos ouvidos na barbearia apenas com sua mulher. Léo é
manco de uma das pernas, peco. O defeito atrofiou-lhe um dos lados do corpo
mole; atrofiou-lhe também a língua para não se trocar com os outros e, assim,
evitar apelidos incômodos. Ele sabe e finge que não ouve os gemidos dos amantes
de Amara. Não a julga marafona. Amara, além de ser vizinha numa das duas casas
com telhados sem forro, não comercia o corpo na Barra, onde as mulheres
mostram-se como mangas maduras à luz do sol. Convém dizer que a discrição de
Léo fora, é imposta pela gravidade amotinada de Amara.
No começo do oitão, há as duas casas com a cumeeira alta, uma paralela a outra.
Na primeira, a porta de acesso à sala é ao lado; as janelas ficam na frente.
Tem como principal morador o comerciante a quem chamam Zé do Leite; não é
chegado à brancura, mas à transparência da cachaça sem cor. Quando bebe, canta
e dança e nunca tira o paletó de linho, inda que sob o sol do verão ribeirinho
de Goiana. Na outra casa, vive a família de Chico Lira, o alfaiate de cor negra
e alma de comunista. É bígamo. Para compensar o remorso do juízo, provê a
despensa das duas cozinhas com galinhas, perus e a gordura dos suínos que
grunhem aos sábados no Oitão da Conceição.
Numa sexta-feira à noite, Amara acolheu o derradeiro amante da semana. Léo
voltara da barbearia. Chico Lira jantara e fumava o Continental sentado à
cadeira em frente ao quintal. Logo teria que sair para a visita a outra cônjuge.
Zé do Leite, bêbado, não dera fim à sede e saciava-se na barraca de madeira,
aos fundos do oitão, atrás da casa de Chico Lira. Uma birosca onde outros
bêbados espremem cachaça das horas. Por ser sexta-feira, cada morador se crer
festeiro e faz a festa de seu jeito.
O oitão é um beco tão estreito que se pode ouvir o papagaio de Chico Lira
grasnindo no terraço dos fundos da casa. O amante de Amara, por certo
montando-a com esforço cavalar e suor na testa, não conseguia evitar o ímpeto
estrepitoso dos gases soltos dos intestinos. Ato contínuo, expandia-se:
- Ai... é bom. Ai... é bom.
Léo ouviu e correu para o clarinete, trazendo-o para a sala. Tocou um bolero de
Bievenido Granja. Zé do Leite livrou-se do círculo de bêbados, foi à frente da
casa de Léo e arremeteu:
- Está fazendo serenata para Amara? Toque um frevo de rua.
*Marco Albertim, escritor. Foi militante do PCdoB e assessor do vice-prefeito do Recife. Faleceu em 2015
Veja: Uma tremenda
demonstração de fraqueza https://bit.ly/3lRLcVT
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