Uma bomba chiando
Cícero Belmar*
Eles estão pelas calçadas, nos sinais
de trânsito, na porta de supermercados. São presenças constantes nos bares, em
restaurantes, lanchonetes. Fazem abordagens em filas de cinema, na porta de
teatros. Em todos os cantos aonde você for, encontrará alguém a lhe estender a
mão, pedindo comida, dinheiro, qualquer coisa serve, para matar o monstro que
está lhe devorando.
O olhar de quem pede é de revolta e
vergonha. Irritação e impaciência. Uma raiva ainda controlada. Antigamente,
quando alguém lhe pedia ajuda manifestava uma expressão de sofrimento e
súplica. De coitado. Agora, não. Quem pede já lhe apresenta a fatura social,
misturando ira com ansiedade. A fome tem cara de herege. De quem perdeu as
esperanças. Herege desrespeita crenças e quem chegou a esse ponto não tem nada
a perder.
A fome tem pressa. É você ou ela.
Quando alguém lhe aborda para pedir uma ajuda, o tom seco da voz e o olhar
endurecido se manifestam quase como uma ameaça. As palavras, uma arma. E quando
você responde que, naquele instante, não pode, não tem, que fica para a
próxima, escuta como resposta: “Então, vá com Deus”. Pela forma como a frase é
dita, você segue em frente desconfiado, temendo ser pego na próxima esquina.
Essa é uma cena do cotidiano. Por
isso, já conhecíamos, na prática, a verdade dessa notícia que a televisão
acabou de informar: o Brasil retrocedeu no Mapa da Fome elaborado pela
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Os
números oficiais endossam o que vemos nas ruas, nos ônibus, metrôs, mercados e
parques. Em todos os cantos, vê-se o espetáculo da miséria. Lembra o Brasil dos
anos 1990.
Ainda assim, dá vergonha de saber que
um em cada quatro brasileiros está em situação de insegurança alimentar. São
61,3 milhões de pessoas. A insegurança é diferente da fome total, pois tem a
ver com a redução de alimentos na mesa ou com a quantidade de vezes que uma
pessoa se alimenta por dia. Muita gente não tem o que comer; é fome. Muita
gente só pode comer uma vez por dia; é insegurança.
Essa realidade, inclusive, chegou à mesa da classe média. O ovo muitas vezes substitui a carne. O leite é artigo de luxo. Faz-se canja da carcaça de frango. No final de 2020, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional disse algo parecido. Pesquisa da instituição constatou que mais de 116 milhões de pessoas no país estão em algum grau na tabela de insegurança alimentar e 19 milhões passam fome. Isso representa mais da metade dos 211,7 milhões de brasileiros. Um escândalo.
Não se discute, fome é processo.
Construção. O cientista pernambucano Josué de Castro predisse há mais de 70
anos que a fome e a miséria são criações humanas. Não são coisas naturais nem
castigo divino. São frutos de decisões políticas e econômicas. No Brasil, os
alimentos existem, o que não existe é dinheiro no bolso para comprar comida.
Essa, mais cara, a cada dia.
A situação brasileira é alarmante. A
fome, cada vez mais explosiva. Quem pede demonstra uma revolta contida. Há uma
bomba chiando no tom seco da voz, nos olhares endurecidos. E o último palito de
fósforo já está aceso.
[Ilustração: Alice Brandão]
*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras
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