Bolsonaro cometeu crimes passíveis de cassação e impeachment em
fala a embaixadores
Especialistas ouvidos pela
Folha afirmam que presidente cometeu abusos graves de poder nesta segunda-feira
Géssica Brandino
e Paula Soprana, Folha de S.Paulo
O presidente Jair Bolsonaro (PL) cometeu uma série de crimes
na apresentação feita a embaixadores em Brasília nesta
segunda-feira (18). As declarações, em tese, poderiam levar à
cassação ou ao impeachment do mandatário, avaliam especialistas em direito
ouvidos pela Folha.
Ao atacar novamente o sistema eleitoral, falando à rede estatal
e usando as redes sociais para compartilhar suas declarações no Palácio da
Alvorada, o chefe do Executivo teria cometido abuso de poder, previsto pela lei
complementar 64, de 1990, conhecida como lei das inelegibilidades.
Em evento oficial no qual convocou representantes estrangeiros,
Bolsonaro proferiu diversas mentiras já desmentidas sobre as urnas. O presidente ainda repetiu teorias da
conspiração e desacreditou outros pontos do sistema eleitoral, promoveu novas
ameaças golpistas e atacou ministros do STF (Supremo Tribunal
Federal).
A fala de Bolsonaro provocou reações de repúdio em cadeia, no
Congresso, no STF e em diferentes setores da sociedade.
As falas golpistas não são uma novidade, mas desta vez vieram
carregadas de agravantes: feita a embaixadores convocados pelo governo, dentro
da residência oficial da Presidência, incluída na agenda oficial de Bolsonaro,
com transmissão ao vivo pela TV estatal e às vésperas do início da campanha.
Veja: O inferno astral de Jair Bolsonaro https://bit.ly/3Pf8TTy
Bolsonaro diz ter embasado sua apresentação desta segunda-feira
em um inquérito da Polícia Federal sobre um ataque hacker ao TSE (Tribunal Superior
Eleitoral) durante as eleições de 2018.
Ele levantou suspeitas sobre a vulnerabilidade do sistema ao
dizer que o hacker obteve a cópia de toda a base de dados do TSE, que o pleito
de 2018 não foi transparente e que a eleição municipal de 2020 não poderia ter
acontecido sem a apuração completa da PF sobre o caso.
Disse que uma empresa privada faria a contagem de votos, e não a
Justiça Eleitoral, e que "o próprio TSE disse que em 2018 número podem ter
sido alterados".
Todas essas alegações já foram desmentidas pela Justiça
Eleitoral, pela imprensa e por checadores de fatos há cerca de um ano, quando Bolsonaro fez uma live semelhante e que acabou sendo retirada do ar nesta terça-feira (19) pelo Youtube devido
ao punhado de mentiras que permanecia disponível na rede.
Além disso, o delegado Victor Neves Feitosa Campos, responsável
pelo inquérito sobre o ataque hacker ao sistema do TSE, disse em depoimento à
Polícia Federal que não encontrou indícios de que a ação pudesse ter resultado em
manipulação de votos, fraude ou problemas na integridade das urnas.
A advogada e professora de direito penal da USP Helena Regina
Lobo da Costa explica que o abuso de poder político não é um crime, mas um
ilícito eleitoral, que pode levar à cassação do registro ou diploma, multa,
inelegibilidade, dentre outras sanções.
Mas, como não é um crime, não acarreta aplicação de pena de
prisão, afirma a professora.
Ela acrescenta que embora a lei não defina com detalhe o que é
abuso de poder político, entendido como lesar princípios da administração
pública, o texto é claro ao dizer que "para a configuração do ato abusivo,
não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição,
mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam".
"A meu ver, a reiteração de ataques ao Judiciário e ao
processo eleitoral/democracia integram o abuso de poder político", diz.
A punição, entretanto, dependeria do julgamento em plenário a
ser feito pelos ministros do TSE. Neste caso, não caberia uma decisão liminar.
Por conta disso, a perspectiva de punição antes do pleito, com o
primeiro turno marcado para 2 de outubro, ou mesmo até o término deste mandato
de Bolsonaro, é improvável.
O advogado Ricardo Penteado, que coordenou campanhas jurídicas
em todas as eleições presidenciais desde 2002, com atuação em partidos como
PSDB, PSB e Rede, afirma que Bolsonaro cometeu um "rosário de ilícitos
graves" na apresentação a embaixadores.
Além de citar a lei das inelegibilidades, ele considera ilícito
o uso de todo aparato do cargo para uma finalidade eleitoral.
"O TSE tem jurisprudência para que esses atos, ainda que
praticados antes do ato da candidatura, sejam enquadrados como abuso de poder
político", diz.
Penteado acrescenta que há margem para propaganda eleitoral
antecipada, mesmo que não tenha ocorrido pedido expresso de voto. Isso porque
houve uso da TV estatal para propaganda política, o que é vetado no artigo 36-B
da Lei das Eleições.
Coordenador-geral da Abradep (Academia Brasileira de Direito
Eleitoral e Político) e doutor em direito pela UFPR, Luiz Fernando Pereira
compara o caso de Bolsonaro ao do ex-deputado estadual Fernando Francischini (União Brasil-PR), que teve o mandato
cassado por, no dia do pleito de 2018, afirmar que houve fraude
nas urnas a favor de Fernando Haddad (PT).
Veja: Quem semeia o caos colhe o quê? https://bit.ly/3zPlBnw
"Se fossemos tratar pela mesma régua que o TSE criou, diria
que é difícil dizer que os dois não mereçam a mesma decisão. Se está certa ou
não, no caso do Francischini, até tenho as minhas ressalvas, mas é a orientação
do TSE", afirma Pereira, que atuou na defesa da chapa do ex-presidente
Lula nas eleições de 2018, cassada pela corte.
O advogado e especialista em direito eleitoral Alberto Rollo,
discorda da interpretação de que seria possível punir Bolsonaro apenas com base
nas declarações feitas nesta semana.
Para ele, o mandatário só pode vir a ser responsabilizado pela
corte eleitoral se continuar a fazer ataques contra as urnas eletrônicas após o
início da campanha.
"O Bolsonaro está falando no período de pré-campanha. Se
juntar todas as vezes que ele falou contra o sistema antes da campanha, se ele
continuar falando durante, aí o conjunto daria para falar da mesma régua, mas
precisaria esperar isso acontecer", diz.
Um processo sobre isso só pode ser apresentado a partir de 16 de
agosto, quando começa oficialmente a campanha eleitoral.
Em 2019, o TSE cassou o mandato de senadora da Juíza Selma
(Podemos-MT) por abuso de poder econômico ao omitir da prestação de contas
quantias expressivas usadas para pagar despesas eleitorais na pré-campanha.
Rollo discorda que o caso possa ser usado como referência, por
se tratar de abuso de poder econômico.
Para Helena Lobo (USP), os mesmos dispositivos legais regem os
dois institutos, então a jurisprudência é válida.
Os especialistas também afirmam que os ataques feitos contra o
TSE caracterizam crime de responsabilidade, previsto no artigo 4 da Lei do
Impeachment (Lei 1079/50), que prevê atos que atentem contra o "exercício
dos direitos políticos, individuais e sociais".
"Ele ameaça, ataca e inviabiliza o livre exercício do poder
judiciário eleitoral", diz Vera Karam, professora de direito constitucional
da UFPR.
"Não era necessária essa live para ensejar a abertura de um
processo de impeachment. Ele reitera condutas suficientes, do meu ponto de
vista, para crime de responsabilidade."
A professora de direito constitucional da UFRJ Carolina Cyrillo
tem a mesma interpretação. "Ele está tentando frustrar a eleição, de certa
forma, ou botar em dúvida, portanto, de forma reflexa, violando os direitos
políticos como um todo."
Bruno
Salles Pereira Ribeiro, diretor e 1º secretário do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), avalia que o Bolsonaro também pode ter suas falas enquadradas no artigo 7º da mesma lei, que fala de usar o "poder federal para
impedir a livre execução da lei eleitoral".
"De qualquer forma, a persecução dessas condutas dependeria
de um processo de impeachment, o que se mostra cada vez mais improvável",
diz.
Por exemplo: mais de 130 pedidos de impeachment de Bolsonaro já
foram protocolados na Câmara desde março de 2019. A prerrogativa de receber ou
rejeitar as denúncias, entretanto, é privativa do presidente da Casa, cargo exercido pelo deputado
Arthur Lira (PP-AL), aliado de Bolsonaro.
Caso o chefe da Câmara receba o pedido, é preciso ainda o voto
de 342 deputados para que o andamento do processo seja autorizado. A
instauração e o julgamento ocorrem no Senado, onde é preciso o voto de 54 dos
81 senadores para que o presidente perca o mandato.
No rol de crimes comuns, previstos pelo Código Penal, a maioria
dos especialistas avalia ser difícil enquadrar o comportamento do presidente. O
professor Ricardo Gloechker, da PUC-RS, diverge.
Para ele, os ataques reiterados contra o sistema eleitoral podem
caracterizar o crime de golpe de estado, previsto no artigo 366 da lei penal,
que trata da tentativa de "impedir o funcionamento das instituições
constitucionais".
Veja: A mentira o desgasta e enfraquece; mas o mantém conectado à
sua base https://t.co/Dp8f13AzZ4
Devido à prerrogativa de foro do cargo, Bolsonaro só pode
responder por crimes comuns se houver uma denúncia do procurador-geral da
República, cargo exercido por Augusto Aras, que tem se
mostrado alinhado ao presidente em diferentes temas.
Caso Aras faça a denúncia, o que é improvável, é preciso em
seguida do aval da Câmara para que o caso tenha andamento e Bolsonaro possa ser
julgado no STF.
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