19 outubro 2022

Arte em realidade virtual

Quanto vale a cripto-Monalisa?

Vender um arquivo JPEG pode render uma fortuna se ele for único, insubstituível, não trocável com outro arquivo: ele possui, desse modo, certas características de uma obra de arte. A autenticação digital e o pagamento em criptomoeda legitimam assim esse “token não fungível”, mais conhecido pela sigla em inglês, NFT
Marie-Noël Rio e Franz W. Kaiser, Le Monde Diplimatic

 

Em 11 de março, após uma batalha de leilões que durou catorze dias, durante a qual o site da Christie’s quase caiu, o non-fungible token (NFT, “token não fungível”), do designer norte-americano Michael Winkelmann, mais conhecido como Beeple, intitulado Everydays: The First 5000 Days [Diariamente: os primeiros 5000 dias] e posto à venda por US$ 100, foi adquirido por um comprador anônimo por US$ 69,3 milhões – o que o coloca no terceiro lugar das obras mais caras de um artista vivo já vendida em leilões. Trata-se de uma colagem, um mosaico de 5 mil imagens digitais que Beeple confeccionou e postou na internet a partir de 1º de maio de 2007 no ritmo de uma por dia. Essas imagens não têm nada de especialmente excitante: elas estão relacionadas a uma estética “pós-apocalíptica”, ligeiramente inspirada em filmes da Pixar ou em videogames, e o conteúdo artístico se reduziu a um conceito simples: uma imagem por dia durante 5 mil dias. É um tipo de dispositivo empregado desde há muito tempo por artistas conceituais clássicos, como On Kawara (1933-2014), conhecido por suas séries de datas pintadas um dia após o outro.

Beeple, na ocasião, colocou à venda um simples arquivo JPEG – acrônimo de Joint Photographic Experts Group –, um tipo de arquivo normalmente utilizado na internet, em câmeras digitais e em smartphones, que pode ser reproduzido infinitamente sem custos. Como explicar então um enriquecimento como esse? Além de ter sido a primeira vez que uma obra totalmente digital foi leiloada, novidade que suscita o desejo dos colecionadores, dois fatores principais entraram em jogo: trata-se de um NFT inscrito em uma blockchain (uma base de dados que utiliza um sistema descentralizado fundamentado na criptografia), o que lhe dá uma qualidade de objeto único e insubstituível, como pode ser, por exemplo, uma tela de Rembrandt; e, antes da venda, a Christie’s tinha anunciado que, pela primeira vez, aceitaria o pagamento em criptomoeda. Aliás, a transação foi efetuada em ethereum (o montante indicado em dólares corresponde à cotação do dia). Depois, soube-se que o leilão foi arrematado por dois investidores indianos que precisamente tinham construído sua fortuna com a tecnologia que abriga essa criptomoeda.1

A unicidade faz a diferença essencial entre o mercado de arte e o mercado dos produtos fabricados industrialmente: no primeiro, vende-se o objeto único, cuja autenticidade, ou seja, o fato de ter sido criado por determinado artista, deve ser indubitável. Em princípio. Lembremos o caso recente do Salvator Mundi, cuja autenticidade, ou seja, a questão de saber se a obra foi realmente pintada por Leonardo da Vinci, continua em debate, apesar de um grande número de esforços para calar os céticos – uma questão que vale milhões de dólares.

Ora, o NFT torna a penosa questão da autenticidade e a da propriedade perfeitamente transparentes. A transparência é a reivindicação constante dos mercados que pretendem tratar a arte como objeto de especulação. Quando se compra um NFT, compra-se a garantia de sua unicidade. Para ter acesso à obra, o comprador digitará sua linha de código: assim ele tem acesso a seu certificado de autenticidade. Na realidade, a compra é registrada em uma blockchain, que cataloga as transações. Cada uma destas é validada por meio de um cálculo. Cada bloco contém uma referência ao bloco precedente, uma genealogia das datas das transações anteriores e a data da nova transação, o que constitui a prova de propriedade única até a próxima venda. Todos os usuários podem, assim, controlar a qualquer momento a cadeia de propriedade. O criador ou produtor do NFT também é registrado na blockchain, como um dado permanente, quaisquer que sejam as sucessivas vendas, o que demonstra sua autenticidade, explica a analogia com o mercado de arte e garante a qualificação para a venda por leilões.

blockchain é a base da criptomoeda: seu controle é totalmente descentralizado – ao contrário das moedas digitais utilizadas pelos bancos centrais.2 A primeira criptomoeda, o bitcoin, foi lançada em 2009. Milhares de outras vieram em seguida. Em outubro de 2009, o bitcoin valia US$ 0,001. Em abril de 2020, US$ 7 mil. Em fevereiro de 2021, ele decolou até US$ 60 mil, uma alta provocada por novos investidores, como Elon Musk, que anunciou investir nada menos que US$ 1,5 bilhão no bitcoin e, em pouco tempo, aceitar os pagamentos de seus carros elétricos Tesla com essa moeda. É possível compreender o entusiasmo dos detentores de criptomoeda, muitas vezes (de acordo com as probabilidades) extremamente ricos, mas com dificuldade para desfrutar de sua riqueza, uma vez que até agora existem poucas instâncias que o aceitam como meio de pagamento.

Foi nesse pano de fundo com dupla distensão – a decolagem potencialmente vertiginosa do valor e a vontade de acabar com suas utilizações reais limitadas e alçar a criptomoeda ao posto de moeda de troca sem restrições – que se desenvolveu a negociação da obra Everydays: The First 5000 Days. E aí se encontra o que ajuda a compreender o absurdo do preço alcançado. Além disso, a Christie’s, casa respeitada cujos resultados servem de referência, sempre ávida para estar à frente de sua rival Sotheby’s, fez evidentemente, nesse caso, uma aposta no futuro. E, no setor da arte contemporânea, aquele em que as casas de venda realizam os recordes mais espetaculares, essa operação demonstrou que o NFT, que só conhecia a noção de original por mecanismo digital, pôde satisfazer de forma brilhante o business model [modelo de negócios] dos leilões… Na realidade, a tentativa de aplicar à arte um business model, e até mesmo de reduzi-la a isso, não é recente. Ela aparece desde os anos 1960 por meio de algumas declarações famosas de outro designer que se tornou artista highbrow (chique-intelectual-cultural), Andy Warhol: “Ter êxito nos negócios é a mais fascinante forma de arte”. Ou também: “A arte é o que pode se passar por arte”.3 O NFT se inscreve fortemente nessa concepção.

As vendas então se tornaram uma loucura, e seus criadores desenvolveram uma imaginação sem limites. Foi assim, por exemplo, que se desenvolveu a coleção do Bored Ape Yacht Club (BAYC, “O iate clube do macaco entediado”): 10 mil avatares de macacos “customizados” precificados por nomes do show business, como Eminem, Madonna e Jimmy Fallon. A coleção oferece a seus colecionadores privilégios exclusivos, como a adesão ao clube que tem o mesmo nome, com o direito de grafitar seus banheiros – tudo virtualmente, é óbvio. Um lote de 101 “BAYCs” foi vendido em setembro de 2021 na Sotheby’s por mais de US$ 24 milhões. Outro exemplo: em dezembro de 2021, na venda na plataforma de leilões Nifty Gateway da obra The Merge [A fusão], do artista que usa o pseudônimo Pak, 28.989 colecionadores compraram 312.686 unidades de massa digitais por um valor total de US$ 91,8 milhões.

Nesse processo, a pessoa que adquire não tem a menor ideia do que compra, ninguém conhece a obra: ela não existe no momento da venda. Alguns dias depois, no fim dos leilões, o feliz comprador recebe um NFT, uma ilustração gerada em cadeia com a ajuda de um script personalizado, que muda em função da coleção do comprador, com a qual ele pode fundir (merge, em inglês). Esse NFT pode ser revendido: ele será fundido com o NFT do segundo comprador, para um NFT inteiramente novo e único etc. A obra definitiva seria, então, o último NFT, em que teriam sido fundidos todos os outros…

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O negócio parece, portanto, destinado a prosperar, mas, apesar disso, alguns problemas persistem. As criptomoedas são atacadas por suas consequências ambientais, já que é necessária uma enorme quantidade de energia para produzi-las. Aliás, três meses depois do anúncio com estardalhaço de seu engajamento a favor do bitcoin, Musk anunciou sua retirada virtuosa até que a criação da criptomoeda seja mais ecorreponsável – uma reviravolta que fez o curso dos acontecimentos afundar imediatamente. Outra zona sombria: os reguladores globais, como os bancos centrais, continuam céticos – por causa da extrema volatilidade das criptomoedas e de sua vulnerabilidade à trapaça, à fraude e à pirataria.4 Em maio de 2022, deu-se o megacrash: as criptomoedas chegaram à mais baixa cotação, e muitas chegaram a desaparecer – temporariamente no caso de algumas. Isso, é evidente, teve repercussões nos NFTs. Durante o verão, os negócios melhoraram. Mas os “influenciadores” entusiastas, seja Matt Damon, Kim Kardashian ou Elon Musk, atraem para o abismo pessoas ingênuas que, com fé em seus ídolos, se engajam nessa nova corrida em busca do ouro e perdem muito nela. Comentário brilhante do economista norte-americano Charles Elson: “Não se investe em um mercado não regulado”.5 Dito isso, a loucura dos mercados considerados “regulados”, que explodiu a olhos vistos por ocasião da crise financeira de 2008, foi muito diferente disso? A China, que dispõe do yuan digital desde janeiro de 2022, criou sua própria rede de blockchains (China’s Blockchain-based Service Network, ou BSN) e um sistema de autorização que enquadra estritamente a intervenção de algumas criptomoedas do exterior, como o ethereum, o cosmos ou EOS. Os países que se dizem a favor da democracia legislam aos poucos. Enquanto se espera, a venda de Everydays parece ser o símbolo de uma era em que a noção de arte, assim como o dinheiro que a compra poderiam ser criados, manipulados e possuídos sem mais nenhum controle institucional.

Após Beeple ter se tornado milionário e mundialmente famoso em um dia, ele expôs em março de 2022 suas últimas obras na Jack Hanley Gallery, em Nova York, sob o título Uncertain Future [Futuro incerto]. Ou seja, precisamente um ano após sua transação histórica. Ali, ele colocou à venda identificações de suas obras digitais executadas por sua equipe utilizando pintura a óleo em tela e pastel em papel. De abril a setembro, ao contrário, o Museu de Arte Contemporânea Castello de Rivoli, em Turim, se vangloriou de ser o primeiro museu público a apresentar um NFT do próprio Beeple, Human One. Com o risco de perder o fôlego para acompanhar a trend [tendência]: nesse caminho, os museus ficam muitas vezes um pouco atrasados. E podemos nos perguntar se esse é realmente seu trabalho.

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A Galleria degli Uffizi, em Florença, em parceria com uma empresa privada encarregada da fabricação (minting) do NFT, em compensação, talvez esteja um pouco adiantada. Ela vendeu uma reprodução digital, autenticada e única, do Tondo Doni, de Michelangelo, por 240 mil euros em 2021. Houve um completo vazio jurídico. Mais de uma quinzena de obras (entre elas Bacco, de Caravaggio) estavam programadas para passar por isso. O governo italiano acabou decidindo suspender a venda dos NFTs ligados a obras-primas de seu patrimônio. Vamos ver o que acontece. Em 2021, os NFTs representavam 1,6% do mercado mundial da arte – mais que a parcela relacionada à fotografia (1%).

 

*Marie-Noël Rio é escritora. Seu último livro publicado intitula-se Hambourg Hansaplatz n. 7: quatre ans dans la misère allemande [Hamburgo, Hansaplatz n. 7: quatro anos na miséria alemã], Delga, 2021; e Franz W. Kaiser é historiador da arte e curador de exposições.

 

Connaissance des arts [Conhecimento das artes], Paris, 22 mar. 2021.

2 Ler, de Frédéric Lemaire, “Paiera-ton bientôt sa baguette en bitcoins?” [Em breve, você vai pagar sua baguete em bitcoins?], Le Monde Diplomatique, fev. 2022.

3 Andy Warhol, Ma philosophie de A à B et vice versa [Minha filosofia de A a B e vice-versa], Flammarion, Paris, 1975.

4 Cf. Riah Pryor, “Mind your wallet – thieves operate here” [Fique de olho em sua carteira – ladrões agem aqui], The Art Newspaper, Londres e Nova York, mar. 2022.

The Guardian, Londres, 18 jun. 2022.

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