Quanto vale a cripto-Monalisa?
Vender um arquivo JPEG
pode render uma fortuna se ele for único, insubstituível, não trocável com
outro arquivo: ele possui, desse modo, certas características de uma obra de
arte. A autenticação digital e o pagamento em criptomoeda legitimam assim esse
“token não fungível”, mais conhecido pela sigla em inglês, NFT
Marie-Noël Rio e Franz W.
Kaiser, Le Monde Diplimatic
Em 11 de março, após uma batalha de leilões
que durou catorze dias, durante a qual o site da Christie’s quase caiu, o non-fungible token (NFT,
“token não fungível”), do designer norte-americano Michael Winkelmann, mais
conhecido como Beeple, intitulado Everydays:
The First 5000 Days [Diariamente: os primeiros 5000 dias] e
posto à venda por US$ 100, foi adquirido por um comprador anônimo por US$ 69,3
milhões – o que o coloca no terceiro lugar das obras mais caras de um artista
vivo já vendida em leilões. Trata-se de uma colagem, um mosaico de 5 mil
imagens digitais que Beeple confeccionou e postou na internet a partir de 1º de
maio de 2007 no ritmo de uma por dia. Essas imagens não têm nada de
especialmente excitante: elas estão relacionadas a uma estética
“pós-apocalíptica”, ligeiramente inspirada em filmes da Pixar ou em videogames,
e o conteúdo artístico se reduziu a um conceito simples: uma imagem por dia
durante 5 mil dias. É um tipo de dispositivo empregado desde há muito tempo por
artistas conceituais clássicos, como On Kawara (1933-2014), conhecido por suas
séries de datas pintadas um dia após o outro.
Beeple, na ocasião, colocou à venda um
simples arquivo JPEG – acrônimo de Joint
Photographic Experts Group –, um tipo de
arquivo normalmente utilizado na internet, em câmeras digitais e em
smartphones, que pode ser reproduzido infinitamente sem custos. Como explicar
então um enriquecimento como esse? Além de ter sido a primeira vez que uma obra
totalmente digital foi leiloada, novidade que suscita o desejo dos
colecionadores, dois fatores principais entraram em jogo: trata-se de um NFT
inscrito em uma blockchain (uma
base de dados que utiliza um sistema descentralizado fundamentado na
criptografia), o que lhe dá uma qualidade de objeto único e insubstituível,
como pode ser, por exemplo, uma tela de Rembrandt; e, antes da venda, a
Christie’s tinha anunciado que, pela primeira vez, aceitaria o pagamento em
criptomoeda. Aliás, a transação foi efetuada em ethereum (o montante indicado
em dólares corresponde à cotação do dia). Depois, soube-se que o leilão foi
arrematado por dois investidores indianos que precisamente tinham construído
sua fortuna com a tecnologia que abriga essa criptomoeda.1
A unicidade faz a diferença essencial entre
o mercado de arte e o mercado dos produtos fabricados industrialmente: no
primeiro, vende-se o objeto único, cuja autenticidade, ou seja, o fato de ter
sido criado por determinado artista, deve ser indubitável. Em princípio.
Lembremos o caso recente do Salvator
Mundi, cuja autenticidade, ou seja, a questão de saber se a obra
foi realmente pintada por Leonardo da Vinci, continua em debate, apesar de um
grande número de esforços para calar os céticos – uma questão que vale milhões
de dólares.
Ora, o NFT torna a penosa questão da
autenticidade e a da propriedade perfeitamente transparentes. A transparência é
a reivindicação constante dos mercados que pretendem tratar a arte como objeto
de especulação. Quando se compra um NFT, compra-se a garantia de sua unicidade.
Para ter acesso à obra, o comprador digitará sua linha de código: assim ele tem
acesso a seu certificado de autenticidade. Na realidade, a compra é registrada
em uma blockchain,
que cataloga as transações. Cada uma destas é validada por meio de um cálculo.
Cada bloco contém uma referência ao bloco precedente, uma genealogia das datas
das transações anteriores e a data da nova transação, o que constitui a prova
de propriedade única até a próxima venda. Todos os usuários podem, assim,
controlar a qualquer momento a cadeia de propriedade. O criador ou produtor do
NFT também é registrado na blockchain,
como um dado permanente, quaisquer que sejam as sucessivas vendas, o que
demonstra sua autenticidade, explica a analogia com o mercado de arte e garante
a qualificação para a venda por leilões.
A blockchain é
a base da criptomoeda: seu controle é totalmente descentralizado – ao contrário
das moedas digitais utilizadas pelos bancos centrais.2 A primeira
criptomoeda, o bitcoin, foi lançada em 2009. Milhares de outras vieram em
seguida. Em outubro de 2009, o bitcoin valia US$ 0,001. Em abril de 2020, US$ 7
mil. Em fevereiro de 2021, ele decolou até US$ 60 mil, uma alta provocada por
novos investidores, como Elon Musk, que anunciou investir nada menos que US$
1,5 bilhão no bitcoin e, em pouco tempo, aceitar os pagamentos de seus carros
elétricos Tesla com essa moeda. É possível compreender o entusiasmo dos
detentores de criptomoeda, muitas vezes (de acordo com as probabilidades)
extremamente ricos, mas com dificuldade para desfrutar de sua riqueza, uma vez
que até agora existem poucas instâncias que o aceitam como meio de pagamento.
Foi nesse pano de fundo com dupla distensão
– a decolagem potencialmente vertiginosa do valor e a vontade de acabar com
suas utilizações reais limitadas e alçar a criptomoeda ao posto de moeda de
troca sem restrições – que se desenvolveu a negociação da obra Everydays: The First 5000 Days.
E aí se encontra o que ajuda a compreender o absurdo do preço alcançado. Além
disso, a Christie’s, casa respeitada cujos resultados servem de referência,
sempre ávida para estar à frente de sua rival Sotheby’s, fez evidentemente,
nesse caso, uma aposta no futuro. E, no setor da arte contemporânea, aquele em
que as casas de venda realizam os recordes mais espetaculares, essa operação
demonstrou que o NFT, que só conhecia a noção de original por mecanismo digital,
pôde satisfazer de forma brilhante o business
model [modelo de negócios] dos leilões… Na realidade, a
tentativa de aplicar à arte um business
model, e até mesmo de reduzi-la a isso, não é recente. Ela aparece
desde os anos 1960 por meio de algumas declarações famosas de outro designer
que se tornou artista highbrow (chique-intelectual-cultural),
Andy Warhol: “Ter êxito nos negócios é a mais fascinante forma de arte”. Ou
também: “A arte é o que pode se passar por arte”.3 O NFT se
inscreve fortemente nessa concepção.
As vendas então se tornaram uma loucura, e
seus criadores desenvolveram uma imaginação sem limites. Foi assim, por
exemplo, que se desenvolveu a coleção do Bored Ape Yacht Club (BAYC, “O iate
clube do macaco entediado”): 10 mil avatares de macacos “customizados”
precificados por nomes do show business, como Eminem,
Madonna e Jimmy Fallon. A coleção oferece a seus colecionadores privilégios
exclusivos, como a adesão ao clube que tem o mesmo nome, com o direito de
grafitar seus banheiros – tudo virtualmente, é óbvio. Um lote de 101 “BAYCs”
foi vendido em setembro de 2021 na Sotheby’s por mais de US$ 24 milhões. Outro
exemplo: em dezembro de 2021, na venda na plataforma de leilões Nifty Gateway
da obra The Merge [A
fusão], do artista que usa o pseudônimo Pak, 28.989 colecionadores compraram
312.686 unidades de massa digitais por um valor total de US$ 91,8 milhões.
Nesse processo, a pessoa que adquire não
tem a menor ideia do que compra, ninguém conhece a obra: ela não existe no
momento da venda. Alguns dias depois, no fim dos leilões, o feliz comprador
recebe um NFT, uma ilustração gerada em cadeia com a ajuda de um script
personalizado, que muda em função da coleção do comprador, com a qual ele pode
fundir (merge,
em inglês). Esse NFT pode ser revendido: ele será fundido com o NFT do segundo
comprador, para um NFT inteiramente novo e único etc. A obra definitiva seria,
então, o último NFT, em que teriam sido fundidos todos os outros…
Veja: A poesia
libertária de Cida Pedrosa — de Bodocó e Recife para o mundo https://bit.ly/3mnZlcd
O negócio parece, portanto, destinado a
prosperar, mas, apesar disso, alguns problemas persistem. As criptomoedas são
atacadas por suas consequências ambientais, já que é necessária uma enorme
quantidade de energia para produzi-las. Aliás, três meses depois do anúncio com
estardalhaço de seu engajamento a favor do bitcoin, Musk anunciou sua retirada
virtuosa até que a criação da criptomoeda seja mais ecorreponsável – uma
reviravolta que fez o curso dos acontecimentos afundar imediatamente. Outra
zona sombria: os reguladores globais, como os bancos centrais, continuam céticos
– por causa da extrema volatilidade das criptomoedas e de sua vulnerabilidade à
trapaça, à fraude e à pirataria.4 Em maio de 2022, deu-se o megacrash: as
criptomoedas chegaram à mais baixa cotação, e muitas chegaram a desaparecer –
temporariamente no caso de algumas. Isso, é evidente, teve repercussões nos
NFTs. Durante o verão, os negócios melhoraram. Mas os “influenciadores”
entusiastas, seja Matt Damon, Kim Kardashian ou Elon Musk, atraem para o abismo
pessoas ingênuas que, com fé em seus ídolos, se engajam nessa nova corrida em
busca do ouro e perdem muito nela. Comentário brilhante do economista
norte-americano Charles Elson: “Não se investe em um mercado não regulado”.5 Dito isso, a
loucura dos mercados considerados “regulados”, que explodiu a olhos vistos por
ocasião da crise financeira de 2008, foi muito diferente disso? A China, que
dispõe do yuan digital desde janeiro de 2022, criou sua própria rede de blockchains (China’s
Blockchain-based Service Network, ou BSN) e um sistema de autorização que
enquadra estritamente a intervenção de algumas criptomoedas do exterior, como o
ethereum, o cosmos ou EOS. Os países que se dizem a favor da democracia
legislam aos poucos. Enquanto se espera, a venda de Everydays parece ser
o símbolo de uma era em que a noção de arte, assim como o dinheiro que a compra
poderiam ser criados, manipulados e possuídos sem mais nenhum controle
institucional.
Após Beeple ter se tornado milionário e
mundialmente famoso em um dia, ele expôs em março de 2022 suas últimas obras na
Jack Hanley Gallery, em Nova York, sob o título Uncertain Future [Futuro
incerto]. Ou seja, precisamente um ano após sua transação histórica. Ali, ele
colocou à venda identificações de suas obras digitais executadas por sua equipe
utilizando pintura a óleo em tela e pastel em papel. De abril a setembro, ao
contrário, o Museu de Arte Contemporânea Castello de Rivoli, em Turim, se
vangloriou de ser o primeiro museu público a apresentar um NFT do próprio
Beeple, Human One.
Com o risco de perder o fôlego para acompanhar a trend [tendência]: nesse caminho,
os museus ficam muitas vezes um pouco atrasados. E podemos nos perguntar se
esse é realmente seu trabalho.
Veja: Poesia, prazer, amizade
e humor na conjuntura que for https://bit.ly/3S4VBLl
A Galleria degli Uffizi, em Florença, em
parceria com uma empresa privada encarregada da fabricação (minting) do NFT, em
compensação, talvez esteja um pouco adiantada. Ela vendeu uma reprodução
digital, autenticada e única, do Tondo
Doni, de Michelangelo, por 240 mil euros em 2021. Houve um completo
vazio jurídico. Mais de uma quinzena de obras (entre elas Bacco, de Caravaggio)
estavam programadas para passar por isso. O governo italiano acabou decidindo
suspender a venda dos NFTs ligados a obras-primas de seu patrimônio. Vamos ver
o que acontece. Em 2021, os NFTs representavam 1,6% do mercado mundial da arte
– mais que a parcela relacionada à fotografia (1%).
*Marie-Noël
Rio é escritora. Seu último livro publicado
intitula-se Hambourg
Hansaplatz n. 7: quatre ans dans la misère allemande [Hamburgo,
Hansaplatz n. 7: quatro anos na miséria alemã], Delga, 2021; e Franz W. Kaiser é
historiador da arte e curador de exposições.
1 Connaissance
des arts [Conhecimento das artes], Paris, 22 mar. 2021.
2 Ler, de Frédéric Lemaire, “Paiera-ton bientôt sa baguette en bitcoins?” [Em breve, você vai pagar sua baguete em
bitcoins?], Le Monde
Diplomatique, fev. 2022.
3 Andy Warhol, Ma philosophie de A à B et vice versa [Minha
filosofia de A a B e vice-versa], Flammarion, Paris, 1975.
4 Cf. Riah Pryor, “Mind your wallet –
thieves operate here” [Fique de olho em sua carteira – ladrões agem
aqui], The Art
Newspaper, Londres e Nova York, mar. 2022.
5 The
Guardian, Londres, 18 jun. 2022.
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