19 outubro 2022

Medicina + ciências humanas

Saúde Coletiva: revoluções do passado e as que estão por vir

Debate da Abrasco rememora a história da criação de um conceito criado no Brasil que une a medicina e ciências humanas, no contexto da ditadura. Qual sua importância e por que é preciso resgatar suas transformações, em risco com a atual crise política
Gabriel Brito, OutraSaúde


Inovação brasileira, a noção de Saúde Coletiva começou a aparecer na virada dos anos 1960 para os 70, época  de diversos movimentos e lutas revolucionárias que marcaram a juventude de então. No último dia 5/10, a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) promoveu o debate Da Tropicália à Saúde Coletiva: as ‘revoluções’ dos anos 1960-70, que reuniu especialistas para falar dos conceitos que historicamente constituíram esse momento. 

Enquanto jovens tomavam as ruas para protestar contra Estados imperialistas, o capital e o patriarcado, com enorme reflexo na cultura e no comportamento, intelectuais como Michel Foucault, Giovanni Berlinguer, Erving Goffman e Frantz Fanon questionavam a medicina psicossocial que predominou no século 20, marcada pela patologização do paciente que não se encaixava na normatividade social e sua política manicomial brutal e desumana.

“Queríamos uma revolução psiquiátrica, e boa parte dos militantes ainda defende o modelo biomédico, que não tem fundamento epistemológico”, disse Paulo Amarante, que foi presidente de honra do recém-realizado 8º Congresso Brasileiro de Saúde Mental. “Até hoje a psiquiatria não tem uma teoria do sofrimento e da loucura. Isso se aproximou um pouco da epidemiologia quantitativa, usada para fundamentar o crescimento de transtornos mentais. Mas o que cresceu foi o diagnóstico, porque nem existe um conceito do que é transtorno mental.”

A conexão de Saúde Coletiva com mental é importante, pois foi chave na criação de interseccionalidades entre a área médica e as ciências humanas. Como explicou a mediadora Lilia Schraiber, médica e professora da Fiocruz, “Saúde Coletiva tem três grandes subáreas: epidemiologia; política de planejamento, gestão e avaliação; ciências sociais em saúde”.

E foi nesta época que começou a virada conceitual que desaguou na construção do conceito de Saúde Coletiva, hoje globalmente aceito, e fundamental na própria elaboração do SUS, como explicado por Jairnilson Paim, pesquisador da UFBA e um dos mais importantes sanitaristas brasileiros.

“Começamos com a crítica da saúde preventiva e comunitária, com Sérgio Arouca e Cecília Donnangelo”, analisou, relembrando os nomes dos grandes sanitaristas e pensadores da época. “Com o fim da perseguição a certos cientistas, há um descolamento da ciência política em relação à sociologia em algumas universidades. Mudamos o conceito social da medicina em vários sentidos e a área de Saúde Coletiva foi institucionalizada. Mas também perdemos espaço, vimos o projeto de uma mudança total na política sanitária se limitar, de certa forma, à institucionalização do SUS”.

Sua explicação tem a ver com o fato de que a promoção da saúde não caminha sozinha, daí a crítica à antiga medicina comunitária, que desenvolvia suas políticas sanitárias e conceitos epidemiológicos sem colocar em perspectiva o contexto socioeconômico dos pacientes.

“Não desenvolvemos a totalidade de mudanças elaboradas por Sérgio Arouca, que incluíam reformas agrária, urbana e universitária, que gerariam a conclusão real de uma verdadeira reforma sanitária. Não pudemos realizar toda essa ação intersetorial. E há um risco de a Saúde Coletiva, como projeto revolucionário, passar a uma possibilidade da restauração institucional”, explicou, em evidente alusão ao contexto político de avanço reacionário.

Como explicou Madel Luz, pesquisadora em saúde e membro da Abrasco, “a ideia de Saúde Coletiva não nasceu no sistema político, mas na universidade. E não foi nas faculdades de medicina, e sim nas pós-graduações de medicina social, como se chamava na época, que viviam em conflito com as faculdades. ‘Não quero essa socióloga na minha faculdade’, dizia um diretor do curso de medicina da UERJ na época em que eu fazia pesquisa. Saúde Coletiva pode ser chamada assim se contar com a participação de quem é atendido e quem atende. Devemos pensar no que é, afinal, saúde”. 

E devemos concluir que não existirá uma cidadania plenamente saudável sem uma transformação radical da realidade. “Devemos falar claramente em justiça e igualdade social se queremos concluir o projeto de Saúde Coletiva”, vaticinou Jairnilson Paim. 

Confira o debate completo aqui.

Leia também: Como a financeirização da saúde se apropria do SUS https://bit.ly/3SX98Vn

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