Saúde Coletiva:
revoluções do passado e as que estão por vir
Debate da Abrasco rememora a história da criação de um conceito
criado no Brasil que une a medicina e ciências humanas, no contexto da
ditadura. Qual sua importância e por que é preciso resgatar suas
transformações, em risco com a atual crise política
Gabriel Brito, OutraSaúde
Inovação brasileira, a noção de Saúde Coletiva começou a
aparecer na virada dos anos 1960 para os 70, época de diversos movimentos
e lutas revolucionárias que marcaram a juventude de então. No último dia 5/10,
a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) promoveu o debate Da Tropicália à Saúde Coletiva: as ‘revoluções’ dos anos 1960-70, que
reuniu especialistas para falar dos conceitos que historicamente constituíram
esse momento.
Enquanto jovens tomavam as ruas para protestar contra Estados
imperialistas, o capital e o patriarcado, com enorme reflexo na cultura e no
comportamento, intelectuais como Michel Foucault, Giovanni Berlinguer, Erving
Goffman e Frantz Fanon questionavam a medicina psicossocial que predominou no
século 20, marcada pela patologização do paciente que não se encaixava na
normatividade social e sua política manicomial brutal e desumana.
“Queríamos uma revolução psiquiátrica, e boa parte dos
militantes ainda defende o modelo biomédico, que não tem fundamento
epistemológico”, disse Paulo Amarante, que foi presidente de honra do
recém-realizado 8º Congresso Brasileiro de Saúde Mental. “Até hoje a
psiquiatria não tem uma teoria do sofrimento e da loucura. Isso se aproximou um
pouco da epidemiologia quantitativa, usada para fundamentar o crescimento de
transtornos mentais. Mas o que cresceu foi o diagnóstico, porque nem existe um
conceito do que é transtorno mental.”
A conexão de Saúde Coletiva com mental é importante, pois foi
chave na criação de interseccionalidades entre a área médica e as ciências
humanas. Como explicou a mediadora Lilia Schraiber, médica e professora da
Fiocruz, “Saúde Coletiva tem três grandes subáreas: epidemiologia; política de
planejamento, gestão e avaliação; ciências sociais em saúde”.
E
foi nesta época que começou a virada conceitual que desaguou na construção do
conceito de Saúde Coletiva, hoje globalmente aceito, e fundamental na própria
elaboração do SUS, como explicado por Jairnilson Paim, pesquisador da UFBA e um
dos mais importantes sanitaristas brasileiros.
“Começamos com a crítica da saúde preventiva e comunitária, com
Sérgio Arouca e Cecília Donnangelo”, analisou, relembrando os nomes dos grandes
sanitaristas e pensadores da época. “Com o fim da perseguição a certos
cientistas, há um descolamento da ciência política em relação à sociologia em
algumas universidades. Mudamos o conceito social da medicina em vários sentidos
e a área de Saúde Coletiva foi institucionalizada. Mas também perdemos espaço,
vimos o projeto de uma mudança total na política sanitária se limitar, de certa
forma, à institucionalização do SUS”.
Sua explicação tem a ver com o fato de que a promoção da saúde
não caminha sozinha, daí a crítica à antiga medicina comunitária, que
desenvolvia suas políticas sanitárias e conceitos epidemiológicos sem colocar
em perspectiva o contexto socioeconômico dos pacientes.
“Não desenvolvemos a totalidade de mudanças elaboradas por
Sérgio Arouca, que incluíam reformas agrária, urbana e universitária, que
gerariam a conclusão real de uma verdadeira reforma sanitária. Não pudemos
realizar toda essa ação intersetorial. E há um risco de a Saúde Coletiva, como
projeto revolucionário, passar a uma possibilidade da restauração
institucional”, explicou, em evidente alusão ao contexto político de avanço
reacionário.
Como explicou Madel Luz, pesquisadora em saúde e membro da
Abrasco, “a ideia de Saúde Coletiva não nasceu no sistema político, mas na
universidade. E não foi nas faculdades de medicina, e sim nas pós-graduações de
medicina social, como se chamava na época, que viviam em conflito com as
faculdades. ‘Não quero essa socióloga na minha faculdade’, dizia um diretor do
curso de medicina da UERJ na época em que eu fazia pesquisa. Saúde Coletiva
pode ser chamada assim se contar com a participação de quem é atendido e quem
atende. Devemos pensar no que é, afinal, saúde”.
E devemos concluir que não existirá uma cidadania plenamente
saudável sem uma transformação radical da realidade. “Devemos falar claramente
em justiça e igualdade social se queremos concluir o projeto de Saúde
Coletiva”, vaticinou Jairnilson Paim.
Confira o debate completo aqui.
Leia também: Como a financeirização da saúde se apropria
do SUS https://bit.ly/3SX98Vn
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