A mulher
que ia navegar
Rubem Braga
O anúncio luminoso de um edifício em
frente, acendendo e apagando, dava banhos intermitentes de sangue na pele de
seu braço repousado, e de sua face. Ela estava sentada junto à janela e havia
luar; e nos intervalos desse banho vermelho ela era toda pálida e suave.
Na roda havia um homem muito
inteligente que falava muito; havia seu marido, todo bovino; um pintor louro e
nervoso; uma senhora morena de riso fácil e engraçado; um físico, uma senhora
recentemente desquitada, e eu. Para que recensear a roda que falava de política
ou de pintura? Ela não dava atenção a ninguém. Quieta, às vezes sorrindo quando
alguém lhe dirigia a palavra, ela apenas mirava o próprio braço, atenta à mudança
da cor. Senti que ela fruía nisso um prazer silencioso e longo. “Muito!”, disse
quando alguém lhe perguntou se gostara de um certo quadro — e disse mais
algumas palavras; mas mudou um pouco a posição do braço e continuou a se mirar,
interessada em si mesma, com um ar sonhador.
Quando começou a discussão sobre
pintura figurativa, abstrata e concreta, houve um momento em que seu marido
classificou certo pintor com uma palavra forte e vulgar; ela ergueu os olhos
para ele, com um ar de censura; mas nesse olhar havia menos zanga do que tédio.
Então senti que ela se preparava para o enganar.
Ela se preparava devagar, mas sem
dúvida e sem hesitação íntima nenhuma; devagar, como um rito. Talvez nem
tivesse pensado ainda que homem escolheria, talvez mesmo isso no fundo pouco
lhe importasse, ou seria, pelo menos, secundário. Não tinha pressa. O primeiro
ato de sua preparação era aquele olhar para si mesma, para seu belo braço que
lambia devagar com os olhos, como uma gata se lambe no corpo; era uma lenta
preparação. Antes de se entregar a outro homem, ela se entregaria longamente ao
espelho, olhando e meditando seu corpo de 30 anos com uma certa satisfação e
uma certa melancolia, vendo as marcas do maio e da maternidade e se sorrindo
vagamente, como quem diz: eis um belo barco prestes a se fazer ao mar; é tempo.
Talvez tenha pensado isso naquele
momento mesmo; olhou-me, quase surpreendendo o olhar com que eu a estudava; não
sei; em todo caso, me sorriu e disse alguma coisa, mas senti que eu não era o
navegador que ela buscava.
Então, como se estivesse despertando,
passou a olhar uma a uma as pessoas da roda; quando se sentiu olhado, o homem
inteligente que falava muito continuou a falar encarando-a, a dizer coisas
inteligentes sobre homem e mulher; ela ia voltar os olhos para outro lado, mas
ele dizia logo outra coisa inteligente, como quem joga depressa mais quirera de
milho a uma pomba. Ela sorria, mas acabou se cansando daquele fluxo de
palavras, e o abandonou no meio de uma frase.
Seus olhos passaram pelo marido e
pelo pequeno pintor louro e então senti que pousavam no físico. Ele dizia
alguma coisa à mulher recentemente desquitada, alguma coisa sobre um filme do
festival. Era um homem moreno e seco, falava devagar e com critério sobre arte
e sexo. Falava sem pose, sério; senti que ela o contemplava com uma vaga
surpresa e com agrado. Estava gostando de ouvir o que ele dizia à outra. O
homem inteligente que falava muito tentou chamar-lhe a atenção com uma coisa
engraçada, e ela lhe sorriu; mas logo seus olhos se voltaram para o físico. E
então ele sentiu esse olhar e o interesse com que ela o ouvia, e disse com
polidez: — A senhora viu o filme?
Ela fez que sim com a cabeça,
lentamente, e demorou dois segundos para responder apenas: vi. Mas senti que
seu olhar já estudava aquele homem com uma severa e fascinada atenção, como se
procurasse na sua cara morena os sulcos do vento do mar e, no ombro largo, a
secreta insígnia do piloto de longo, longo curso.
Aborrecido e inquieto, o marido
bocejou — era um boi esquecido, mugindo, numa ilha distante e abandonada para
sempre. É estranho: não dava pena.
Ela ia navegar.
Leia também: ‘Bonequinha de louça’ https://bit.ly/3o1UX3t
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