09 dezembro 2022

Bolsonarismo versus democracia

Nem sempre a tempestade dá lugar, de imediato, à bonança

A ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo dialoga com as marcas de continuidade com o passado autoritário e com a tradição do anticomunismo. Porém, é importante destacar que não se reduzem à reprodução desse passado, sendo também construções do tempo presente, reações a mudanças políticas que ocorreram após a Constituição de 1988 e durante os governos do PT
Fernando Perlatto e Odilon Caldeira Neto, Le Monde Diplomatique


Momentos após a divulgação do resultado da eleição presidencial pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que confirmou a vitória do candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), diversos analistas buscaram construir interpretações sobre os significados da derrota do presidente Jair Bolsonaro (PL) e as permanências do bolsonarismo no país. A dificuldade para a elaboração de diagnósticos mais precisos sobre essa questão advém, em grande medida, do desafio em analisar se Bolsonaro e o bolsonarismo são acontecimentos passageiros e fugazes ou se se conformam como fenômenos estruturais e, portanto, contínuos do cenário político brasileiro. Ainda que a primeira tese – da efemeridade – tenha certo sentido, na medida em que a eleição presidencial de Bolsonaro em 2018, derrotando o candidato Fernando Haddad (PT), se deu em uma conjuntura política muito particular, caracterizada pelo desmoronamento do sistema partidário que havia se estruturado desde a redemocratização, nossa hipótese é de que fenômenos como Bolsonaro e o bolsonarismo se ancoram em elementos mais estruturais e contínuos da sociedade brasileira, que se conformaram ao longo de nossa história republicana.

Ainda que não seja possível no espaço deste texto destrinchar todos esses aspectos estruturais e contínuos, gostaríamos de destacar especialmente dois elementos que fazem parte da sociedade brasileira ao longo da história – a saber, o autoritarismo e o anticomunismo –, que ajudam a explicar de que maneira o passado do Brasil se fez presente na ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo, e de que forma ele permanece, ainda que reconfigurado, a despeito da derrota eleitoral de Bolsonaro. No que concerne mais especificamente ao autoritarismo, se olharmos apenas para o Brasil República, veremos que parte significativa de nosso passado foi marcada por experiências autoritárias. A despeito de tendermos muitas vezes a falar de ditadura, no singular, para nos referirmos ao regime iniciado com o golpe civil-militar de 1964, na verdade tivemos em nossa história duas ditaduras abertamente autoritárias, considerando o período do Estado Novo, inaugurado em 1937.

Quando somamos os oito anos do regime varguista estadonovista mais os 21 anos da ditadura de 1964, constatamos que o Brasil permaneceu durante mais de três décadas em regimes abertamente autoritários.


E, mesmo no período democrático de 1946 a 1964, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi colocado na ilegalidade, com o apoio de parte expressiva de setores “democráticos”. A legitimidade para a cassação da legenda e para a perseguição dos comunistas se deu em decorrência da força do anticomunismo, que, como bem destacado pelo historiador Rodrigo Patto Sá Motta em seu livro Em guarda contra o perigo vermelho, se conforma em “ondas”, que ganham impulso em contextos políticos muito específicos no Brasil, como ocorreu após a tentativa de tomada de poder pelos comunistas em 1935, no início da Guerra Fria em 1946 e no começo dos anos 1960, sob o temor dos impactos da Revolução Cubana de 1959. O anticomunismo se constituiu como um discurso com desdobramentos práticos concretos, que, efetivamente, teve mais importância do que o próprio comunismo ao longo da história republicana, na medida em que deu o substrato ideológico para que mudanças políticas importantes pudessem ocorrer no país, como os golpes de 1937 e 1964, e, ainda que de modo mais periférico do que nesses dois contextos, para a ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo no período recente.

As experiências autoritárias e o anticomunismo não estiveram presentes apenas nos governos autoritários de 1937 e 1964, mas também em movimentos da sociedade civil. É importante ressaltar, nesse contexto, a formação do movimento integralista e dos eventos realizados no âmbito das Marchas da Família com Deus pela Liberdade. No caso do integralismo, tratou-se de um movimento de massa de amplitude nacional, que criou uma organização inspirada nos modelos do fascismo internacional, assim como de outros movimentos e regimes autoritários. Com base em uma rígida e hierarquizada estrutura e com a forte presença de um discurso de fundo religioso, o integralismo promoveu uma ideia de Brasil, amparada também em um imaginário político calcado na anteposição entre o Brasil fascista imaginado e seus inimigos.

Em relação às Marchas da Família com Deus pela Liberdade, foram movimentos de fundamental importância no contexto civil, organizados na véspera do golpe de 1964, que desencadearam a fragilização democrática. O discurso anticomunista, impulsionado pelo contexto da Guerra Fria, pavimentou a aliança entre grupos políticos tradicionais e setores conservadores, além de uma premissa de intervenção dos militares na República brasileira. Não curiosamente, esses movimentos impulsionavam um discurso com forte componente religioso, assim como a suposta defesa da democracia. Ao fim, foram dias de exceção que levaram longos anos.

O argumento que destacamos é que tanto as experiências autoritárias quanto o anticomunismo deixaram marcas profundas no país, mesmo após o término das ditaduras de 1937 e 1964. Muitas vezes, quando lemos um livro didático de História, temos a impressão de que, uma vez terminado um período histórico, tudo o que antes estava em vigência é finalizado, inaugurando-se uma nova era. Porém, na história real, não é isso o que acontece. Nem sempre a tempestade dá lugar, de imediato, à bonança. Da mesma maneira que a experiência democrática de 1946 a 1964 teve de lidar com as continuidades do Estado Novo, mesmo após seu fim, em 1945, o regime democrático inaugurado com a Constituição de 1988 teve também de enfrentar os legados da ditadura de 1964. Se esses elementos de permanência do passado se fazem notar em qualquer mudança histórica, eles estão ainda mais presentes em experiências históricas como a brasileira, na qual as transições dos regimes autoritários para os democráticos se deram mais na lógica da conciliação do que do enfrentamento e da ruptura – a exemplo da aprovação da Lei da Anistia de 1979 –, fazendo que o passado deixasse marcas consistentes nos regimes futuros, seja nas instituições, seja na cultura política.

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A ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo no Brasil recente dialoga diretamente com essas marcas de continuidade com o passado autoritário e com a tradição do anticomunismo. Mas é importante destacar que eles não se reduzem à reprodução desse passado, mas são também construções do tempo presente, conformadas, em grande medida, como reações a mudanças políticas que ocorreram no país após a Constituição de 1988 e, sobretudo, durante os anos dos governos do PT. Ao longo desses anos, no bojo da agenda de direitos aberta pela Carta de 1988, testemunhamos o avanço de pautas importantes vinculadas às agendas das mulheres, dos movimentos antirracistas e LGBTQIA+, bem como à adoção de políticas públicas importantes – a exemplo da criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012.

A contrariedade a essas agendas impulsionou reações por parte de grupos que deram guarida à ascensão de Bolsonaro. Não é um mero detalhe que o “início” da campanha de Bolsonaro à Presidência tenha sido durante o impeachment de Dilma Rousseff, quando proferiu elogios a um torturador. Da mesma maneira, a utilização de temas como o “kit gay” e os teores religiosos na campanha presidencial exemplificam como Bolsonaro moldou seu discurso a temas candentes do campo conservador e autoritário brasileiro. Nesse sentido, Bolsonaro e o bolsonarismo estão vinculados ao passado, mas também são atualizações reacionárias a movimentos progressistas importantes que ocorreram no tempo presente.

É com base nessas tensões e contribuições entre tradições do autoritarismo e do anticomunismo que o bolsonarismo é construído como um fenômeno plural. Por isso, é importante observar algumas de suas características fundamentais. Mais que um instrumento político formal, atrelado a partidos políticos – ou um projeto de criação de legendas próprias –, o bolsonarismo se articulou por meio de um movimento de concentração e diversificação. Em relação à concentração, essa característica foi forjada pela capacidade em aglutinar pautas conservadoras e radicais, fornecendo um sentido de coesão entre grupos diversos, que convergiam em um núcleo oriundo de um modelo de nacionalismo autoritário, religioso, conservador e armamentista.

Isso forneceu, em um primeiro momento, a capacidade de representação e atuação política para grupos com baixo índice de formalização, inclusive por serem oriundos das facetas e demandas das chamadas “novas direitas”. Além disso, outros grupos encontraram, nesse espaço, uma possibilidade de super-representação, a exemplo de setores ligados à bancada “Boi, Bala e Bíblia”, que aumentaram significativamente sua interlocução e poderio político. No entanto, além de segmentos que efetivamente se “tornam” bolsonaristas graças a um cálculo ou oportunidade específica, há um sentido de articulação com tendências que retornam a um ligeiro protagonismo após um período de ostracismo desde a transição democrática que dá início à chamada Nova República.

Por mais que tendências da extrema direita tenham se articulado desde a redemocratização, seja por meio de candidaturas individuais (como a do próprio Bolsonaro) ou de iniciativas convergentes a projetos de baixa ressonância, como o Prona de Enéas Carneiro, o bolsonarismo preencheu um vazio que aparentemente necessitava ser ocupado. Esse foi outro traço fundamental, particularmente para os grupos de natureza antidemocrática, na caracterização de concentração do bolsonarismo.

Diversas tendências da extrema direita ocuparam um espaço, impulsionando as bandeiras antidemocráticas e auxiliando no processo de tensão institucional característica da tendência de crise democrática do país nos últimos anos. Não raramente, essas tendências criam processos de resgates estratégicos das experiências autoritárias pretéritas, tanto no campo dos regimes ditatoriais quanto no do extremismo de direita que orbita setores da sociedade civil.

Já a segunda característica importante do bolsonarismo, nesse contexto, é a diversificação. Mais que a existência de vários grupos no entorno da prática bolsonarista, atrelados à sua perspectiva “concêntrica”, a diversificação diz respeito à capacidade do bolsonarismo em mobilizar setores de suas próprias bases, justamente por meio de pautas e mitologias políticas oriundas dessa relação entre o passado e o presente.

Além do resgate cotidiano de lemas da extrema direita brasileira, como “Deus, Pátria, Família” ou variações de clichês anticomunistas, essa comemoração do passado é uma reivindicação de natureza política própria e de uma disputa dentro do fenômeno bolsonarista. Logo, a característica de concentração leva a uma disputa de capital político entre os grupos que garantem essa diversidade. Afinal, o bolsonarismo não é apenas um projeto de resgate unilateral do autoritarismo militar ou de elementos do projeto integralista, tampouco de uma reprodução dos modelos internacionais mais recentes, mas eventualmente pode ter essas nuances como características fundamentais.

Após a derrota eleitoral de Bolsonaro, são essas tendências mais radicais que fornecem processos de mobilização das bases – também radicais – do bolsonarismo. O que se configura, a princípio, é uma tensão entre esse bolsonarismo mais voltado às ruas, em contraposição daquelas tendências que garantiram uma boa presença no Congresso e no Senado. Este será, possivelmente, um ponto de tensão. Afinal, os grupos de tendência militarizada e fascista talvez não aceitem a existência de uma tendência menos radical, mais profissional e afeiçoada ao sistema político que o discurso bolsonarista jurou combater. Em síntese, o bolsonarismo pode proporcionar um fenômeno de capilaridade das reivindicações da extrema direita brasileira, gerando grupos organizados e multifacetados.

Para lidar com essas tensões, será fundamental fortalecer as instituições democráticas. Isso é um aparente consenso, mas é preciso ir além. A lógica de conciliação, muitas vezes, prefigura um dos argumentos basilares de uma prática política conservadora, que tende a minimizar os impactos dessas estruturas autoritárias. O autoritarismo, a lógica de perseguição ou mesmo os regimes de exceção seriam espécies de desvios de uma tendência democrática da sociedade brasileira. Lidar com essas estruturas é criar, por extensão, mecanismos para que o discurso intolerante e antidemocrático não tenha possibilidade de projeção. Porém, para isso, é necessário confrontar o discurso conservador representado pela busca da eterna conciliação de uma sociedade marcada por experiências autoritárias e uma profunda desigualdade.
 
*Fernando Perlatto e Odilon Caldeira Neto são professores do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Suplantar a cultura do ódio é uma luta de longo curso https://bit.ly/3Us8tfj

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