Nem
sempre a tempestade dá lugar, de imediato, à bonança
A ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo dialoga com as marcas de
continuidade com o passado autoritário e com a tradição do anticomunismo.
Porém, é importante destacar que não se reduzem à reprodução desse passado,
sendo também construções do tempo presente, reações a mudanças políticas
que ocorreram após a Constituição de 1988 e durante os governos do PT
Fernando Perlatto e Odilon Caldeira Neto, Le Monde Diplomatique
Momentos após a divulgação do resultado da eleição
presidencial pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que confirmou a vitória do
candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), diversos analistas buscaram construir
interpretações sobre os significados da derrota do presidente Jair Bolsonaro
(PL) e as permanências do bolsonarismo no país. A dificuldade para a elaboração
de diagnósticos mais precisos sobre essa questão advém, em grande medida, do
desafio em analisar se Bolsonaro e o bolsonarismo são acontecimentos passageiros e fugazes ou
se se conformam como fenômenos estruturais e, portanto, contínuos do
cenário político brasileiro. Ainda que a primeira tese – da efemeridade – tenha
certo sentido, na medida em que a eleição presidencial de Bolsonaro em 2018,
derrotando o candidato Fernando Haddad (PT), se deu em uma conjuntura política
muito particular, caracterizada pelo desmoronamento do sistema partidário que
havia se estruturado desde a redemocratização, nossa hipótese é de que
fenômenos como Bolsonaro e o bolsonarismo se ancoram em elementos mais
estruturais e contínuos da sociedade brasileira, que se conformaram ao longo de
nossa história republicana.
Ainda que não seja possível no espaço deste texto destrinchar
todos esses aspectos estruturais e contínuos, gostaríamos de destacar
especialmente dois elementos que fazem parte da sociedade brasileira ao longo
da história – a saber, o autoritarismo e o anticomunismo –,
que ajudam a explicar de que maneira o passado do Brasil se fez presente na
ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo, e de que forma ele permanece, ainda
que reconfigurado, a despeito da derrota eleitoral de Bolsonaro. No que
concerne mais especificamente ao autoritarismo, se olharmos apenas
para o Brasil República, veremos que parte significativa de nosso passado foi
marcada por experiências autoritárias. A despeito de tendermos muitas vezes a
falar de ditadura, no singular, para nos referirmos ao regime iniciado com o
golpe civil-militar de 1964, na verdade tivemos em nossa história duas ditaduras
abertamente autoritárias, considerando o período do Estado Novo, inaugurado em
1937.
Quando somamos os oito anos do regime varguista estadonovista mais os 21 anos
da ditadura de 1964, constatamos que o Brasil permaneceu durante mais de três
décadas em regimes abertamente autoritários.
E, mesmo no período democrático de 1946 a 1964, o Partido
Comunista Brasileiro (PCB) foi colocado na ilegalidade, com o apoio de parte
expressiva de setores “democráticos”. A legitimidade para a cassação da legenda
e para a perseguição dos comunistas se deu em decorrência da força do anticomunismo,
que, como bem destacado pelo historiador Rodrigo Patto Sá Motta em seu
livro Em guarda contra o perigo vermelho, se conforma em “ondas”,
que ganham impulso em contextos políticos muito específicos no Brasil, como
ocorreu após a tentativa de tomada de poder pelos comunistas em 1935, no início
da Guerra Fria em 1946 e no começo dos anos 1960, sob o temor dos impactos da
Revolução Cubana de 1959. O anticomunismo se constituiu como um discurso com
desdobramentos práticos concretos, que, efetivamente, teve mais importância do
que o próprio comunismo ao longo da história republicana, na medida em que deu
o substrato ideológico para que mudanças políticas importantes pudessem ocorrer
no país, como os golpes de 1937 e 1964, e, ainda que de modo mais periférico do
que nesses dois contextos, para a ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo no
período recente.
As experiências autoritárias e o anticomunismo não estiveram
presentes apenas nos governos autoritários de 1937 e 1964, mas também em
movimentos da sociedade civil. É importante ressaltar, nesse contexto, a
formação do movimento integralista e dos eventos realizados no âmbito das
Marchas da Família com Deus pela Liberdade. No caso do integralismo, tratou-se
de um movimento de massa de amplitude nacional, que criou uma organização
inspirada nos modelos do fascismo internacional, assim como de outros
movimentos e regimes autoritários. Com base em uma rígida e hierarquizada
estrutura e com a forte presença de um discurso de fundo religioso, o
integralismo promoveu uma ideia de Brasil, amparada também em um imaginário
político calcado na anteposição entre o Brasil fascista imaginado e seus
inimigos.
Em relação às Marchas da Família com Deus pela Liberdade,
foram movimentos de fundamental importância no contexto civil, organizados na
véspera do golpe de 1964, que desencadearam a fragilização democrática. O
discurso anticomunista, impulsionado pelo contexto da Guerra Fria, pavimentou a
aliança entre grupos políticos tradicionais e setores conservadores, além de
uma premissa de intervenção dos militares na República brasileira. Não
curiosamente, esses movimentos impulsionavam um discurso com forte componente
religioso, assim como a suposta defesa da democracia. Ao fim, foram dias de
exceção que levaram longos anos.
O argumento que destacamos é que tanto as experiências
autoritárias quanto o anticomunismo deixaram marcas profundas no país, mesmo
após o término das ditaduras de 1937 e 1964. Muitas vezes, quando lemos um
livro didático de História, temos a impressão de que, uma vez terminado um
período histórico, tudo o que antes estava em vigência é finalizado,
inaugurando-se uma nova era. Porém, na história real, não é isso o que
acontece. Nem sempre a tempestade dá lugar, de imediato, à bonança. Da mesma
maneira que a experiência democrática de 1946 a 1964 teve de lidar com as
continuidades do Estado Novo, mesmo após seu fim, em 1945, o regime democrático
inaugurado com a Constituição de 1988 teve também de enfrentar os legados da
ditadura de 1964. Se esses elementos de permanência do passado se fazem notar
em qualquer mudança histórica, eles estão ainda mais presentes em experiências
históricas como a brasileira, na qual as transições dos regimes autoritários
para os democráticos se deram mais na lógica da conciliação do que do
enfrentamento e da ruptura – a exemplo da aprovação da Lei da Anistia de 1979
–, fazendo que o passado deixasse marcas consistentes nos regimes futuros, seja
nas instituições, seja na cultura política.
Um tempo novo no Brasil com o novo governo Lula: possível,
sim; mas nada está previamente garantido https://bit.ly/3Y6nLZF
A ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo no Brasil recente
dialoga diretamente com essas marcas de continuidade com o passado autoritário
e com a tradição do anticomunismo. Mas é importante destacar que eles não se
reduzem à reprodução desse passado, mas são também construções do tempo
presente, conformadas, em grande medida, como reações a mudanças
políticas que ocorreram no país após a Constituição de 1988 e, sobretudo,
durante os anos dos governos do PT. Ao longo desses anos, no bojo da agenda de
direitos aberta pela Carta de 1988, testemunhamos o avanço de pautas
importantes vinculadas às agendas das mulheres, dos movimentos antirracistas e
LGBTQIA+, bem como à adoção de políticas públicas importantes – a exemplo da
criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012.
A contrariedade a essas
agendas impulsionou reações por parte de grupos que deram guarida à ascensão de
Bolsonaro. Não é um mero detalhe que o “início” da campanha de Bolsonaro à
Presidência tenha sido durante o impeachment de Dilma Rousseff, quando proferiu
elogios a um torturador. Da mesma maneira, a utilização de temas como o “kit
gay” e os teores religiosos na campanha presidencial exemplificam como
Bolsonaro moldou seu discurso a temas candentes do campo conservador e
autoritário brasileiro. Nesse sentido, Bolsonaro e o bolsonarismo estão vinculados
ao passado, mas também são atualizações reacionárias a
movimentos progressistas importantes que ocorreram no tempo presente.
É com base nessas tensões e
contribuições entre tradições do autoritarismo e do anticomunismo que o
bolsonarismo é construído como um fenômeno plural. Por isso, é importante
observar algumas de suas características fundamentais. Mais que um instrumento
político formal, atrelado a partidos políticos – ou um projeto de criação de
legendas próprias –, o bolsonarismo se articulou por meio de um movimento de concentração e diversificação.
Em relação à concentração, essa característica foi forjada pela capacidade em
aglutinar pautas conservadoras e radicais, fornecendo um sentido de coesão
entre grupos diversos, que convergiam em um núcleo oriundo de um modelo de
nacionalismo autoritário, religioso, conservador e armamentista.
Isso forneceu, em um primeiro
momento, a capacidade de representação e atuação política para grupos com baixo
índice de formalização, inclusive por serem oriundos das facetas e demandas das
chamadas “novas direitas”. Além disso, outros grupos encontraram, nesse espaço,
uma possibilidade de super-representação, a exemplo de setores ligados à
bancada “Boi, Bala e Bíblia”, que aumentaram significativamente sua
interlocução e poderio político. No entanto, além de segmentos que efetivamente
se “tornam” bolsonaristas graças a um cálculo ou oportunidade específica, há um
sentido de articulação com tendências que retornam a um ligeiro protagonismo
após um período de ostracismo desde a transição democrática que dá início à
chamada Nova República.
Por mais que tendências da
extrema direita tenham se articulado desde a redemocratização, seja por meio de
candidaturas individuais (como a do próprio Bolsonaro) ou de iniciativas
convergentes a projetos de baixa ressonância, como o Prona de Enéas Carneiro, o
bolsonarismo preencheu um vazio que aparentemente necessitava ser ocupado. Esse
foi outro traço fundamental, particularmente para os grupos de natureza
antidemocrática, na caracterização de concentração do bolsonarismo.
Diversas tendências da extrema
direita ocuparam um espaço, impulsionando as bandeiras antidemocráticas e
auxiliando no processo de tensão institucional característica da tendência de
crise democrática do país nos últimos anos. Não raramente, essas tendências
criam processos de resgates estratégicos das experiências autoritárias
pretéritas, tanto no campo dos regimes ditatoriais quanto no do extremismo de direita
que orbita setores da sociedade civil.
Já a segunda característica
importante do bolsonarismo, nesse contexto, é a diversificação. Mais que a
existência de vários grupos no entorno da prática bolsonarista, atrelados à sua
perspectiva “concêntrica”, a diversificação diz respeito à capacidade do
bolsonarismo em mobilizar setores de suas próprias bases, justamente por meio
de pautas e mitologias políticas oriundas dessa relação entre o passado e o
presente.
Além do resgate cotidiano de
lemas da extrema direita brasileira, como “Deus, Pátria, Família” ou variações
de clichês anticomunistas, essa comemoração do passado é uma reivindicação de
natureza política própria e de uma disputa dentro do fenômeno bolsonarista.
Logo, a característica de concentração leva a uma disputa de capital político
entre os grupos que garantem essa diversidade. Afinal, o bolsonarismo não é
apenas um projeto de resgate unilateral do autoritarismo militar ou de
elementos do projeto integralista, tampouco de uma reprodução dos modelos
internacionais mais recentes, mas eventualmente pode ter essas nuances como
características fundamentais.
Após a derrota eleitoral de
Bolsonaro, são essas tendências mais radicais que fornecem processos de
mobilização das bases – também radicais – do bolsonarismo. O que se configura,
a princípio, é uma tensão entre esse bolsonarismo mais voltado às ruas, em
contraposição daquelas tendências que garantiram uma boa presença no Congresso
e no Senado. Este será, possivelmente, um ponto de tensão. Afinal, os grupos de
tendência militarizada e fascista talvez não aceitem a existência de uma
tendência menos radical, mais profissional e afeiçoada ao sistema político que
o discurso bolsonarista jurou combater. Em síntese, o
bolsonarismo pode proporcionar um fenômeno de capilaridade das reivindicações
da extrema direita brasileira, gerando grupos organizados e multifacetados.
Para lidar com essas tensões,
será fundamental fortalecer as instituições democráticas. Isso é um aparente
consenso, mas é preciso ir além. A lógica de conciliação, muitas vezes,
prefigura um dos argumentos basilares de uma prática política conservadora, que
tende a minimizar os impactos dessas estruturas autoritárias. O autoritarismo,
a lógica de perseguição ou mesmo os regimes de exceção seriam espécies de
desvios de uma tendência democrática da sociedade brasileira. Lidar com essas
estruturas é criar, por extensão, mecanismos para que o discurso intolerante e
antidemocrático não tenha possibilidade de projeção. Porém, para isso, é necessário
confrontar o discurso conservador representado pela busca da eterna conciliação
de uma sociedade marcada por experiências autoritárias e uma profunda
desigualdade.
*Fernando Perlatto e Odilon
Caldeira Neto são professores do Departamento de História
da Universidade Federal de
Juiz de Fora.
Suplantar a cultura do ódio é uma luta de longo curso https://bit.ly/3Us8tfj
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