Os carnavais de antigamente
Rubem
Braga
Para responder, há tempos, a uma enquete de
jornal, fiz um esforço para apurar minhas primeiras lembranças carnavalescas.
Vi-me a mim mesmo e a meu irmão» muito pequenos mas de calças compridas, uma
faixa vermelha na cintura, com bigodes e costeletas pintados a rolha queimada…
De pouco mais me lembro, mas creio que éramos nada menos do que mexicanos.
Também tenho uma vaga noção de que cheguei a apache, mas não estou muito
seguro.
O
que me encantava, e até hoje me seduz no.carnaval, era a transfiguração das
pessoas. As pessoas grandes que eu via todo dia em Cachoeiro, sérias, em seus
trajes vulgares, de repente viravam piratas, cowboy s, esqueletos, cossacos,
índios, sultões, mosqueteiros, palhaços, cozinheiros, almirantes. De um certo
ponto de vista parece que eu “acreditava” um pouco nas fantasias, isto é,
passava a associar aquelas pessoas às fantasias que tinham usado no carnaval,
como sé essas fantasias fossem a sua verdade secreta. O disfarce era uma
revelação, eis o que eu sentia inconscientemente.
*
O
cheiro dos lança-perfumes, os confetes, as serpentinas, a música, tudo era
transfiguração. Para o adolescente tímido, as mocinhas deixavam de ser intocáveis
ao mesmo tempo que ficavam muito mais maravilhosas — ciganas, piratas de coxas
nuas, odaliscas, bailarinas, pierretes.
Só
no carnaval eu tinha coragem de dançar; ele é a grande festa dos tímidos. Moças
que passavam por mim na rua apenas murmurando um “bom-dia”, com um rápido olhar
— que milagre! — no carnaval sorriam, cantavam para mim, olhos nos olhos, se
deliciavam com o jato de meu lança-perfume, deixavam que eu enchesse seus
cabelos de confetes, que as prendesse eternamente com voltas de serpentina — e
havia momentos de quase êxtase no tumulto das danças.
*
Havia
uma instituição espantosa para nossa cidade pudica: era, digamos assim, o carro
das mulheres. Naturalmente um grande carro aberto cheio de mulheres
fantasiadas, a jogar serpentinas, empunhando bisnagas de cem gramas,
pintadíssimas, alegríssimas, passeando escandalosamente no meio da gente e dos
carros familiares, entre blocos de mocinhas. E todo ano havia um rapazinho que
se embriagava e saía no carro das mulheres. Ia ali abraçado a duas gordas,
empunhando uma garrafa de cerveja, enfrentando a censura das famílias,
mostrando que já era homem, que era farrista, que era um perdido.
O
moço de família que tinha a coragem suprema de fazer essa exibição me parecia
um herói do vício. Moças recusavam-se a dançar com ele na noite seguinte, no
baile dos Caçadores; era, durante algum tempo, um intocável, um imundo. Mas os
homens mais velhos comentavam aquilo sorrindo, com simpatia : rapaziadas… [Ilustração:
Pierrôs e Colombinas são para sempre https://bit.ly/3Ye45TD
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