O trabalho invisível da literatura: tradutoras reivindicam protagonismo na Flip
Coletivo “Quem traduziu?” pede por melhores condições de trabalho e maior reconhecimento para tradutoras
Carolina Azevedo/Le Monde Diplomatique
A ouvidos atentos, chama a atenção uma menção que era escassa nas mesas de discussão da Festa Literária Internacional de Paraty: os nomes dos tradutores. As tradutoras do coletivo “Quem Traduziu?” reivindicam o reconhecimento desse “trabalho invisível” do mercado editorial através de uma campanha, que vai desde comentar nas páginas de jornalistas e críticos literários que falham em mencioná-las até exigir a impressão de seus nomes nas capas das edições traduzidas. Afinal, quando se elogia a escrita de um autor estrangeiro traduzido para o português, são as palavras do tradutor que estão sendo elogiadas.
Lançamento de destaque desta Flip, “Viver e traduzir”, da poeta, ensaísta e tradutora argentina Laura Wittner – na tradução de Maria Cecilia Brandi e Paloma Vidal – viaja pela poética da tradução. Em uma espécie de diário, Wittner mistura cenas do cotidiano com ponderações sobre o ofício de tradutora, um trabalho que por si só não paga as contas, “dá dor nas costas, escraviza” mas, como a escrita, movimenta um desejo que Wittner chega a comparar com o desejo sexual.
Em um exercício de metalinguagem, as tradutoras brasileiras propõem um diálogo com a autora através das notas de rodapé, concordando quando Wittner diz que precisa traduzir por “muitas horas por dia, todos os dias.” Elas acrescentam: “Ao traduzir nos lançamos em outro tempo-espaço… É preciso viver a rotina de uma nova vida, sem deixar a nossa.” É pensando neste trabalho custoso que as tradutoras se juntaram em mesas paralelas à programação principal da Flip para discutir o ofício e chamar a atenção das pequenas e grandes editoras em relação à baixa remuneração e à falta de reconhecimento.
Gisele Eberspächer é pesquisadora e tradutora – no último ano, traduziu George Orwell, Elfriede Jelinek e Ulrich Alexander Boschwitz. Ela explica que são poucas as pessoas que conseguem viver apenas de tradução. “Muitas pessoas fazem em paralelo com atividades de docência, ensino ou pesquisa; autoria (de literatura ou materiais didáticos e outros); atividades na área de comunicação, organização de eventos. Além de precisar estar bem estabelecida para ter traduções de forma ininterrupta, a pessoa precisa ter um bom ritmo de tradução.”
Para ela, o diálogo com as editoras é a melhor forma de entender quais caminhos são viáveis para a melhoria das condições de trabalho dos tradutores. Ela propõe algumas dessas veredas. “Além do aumento do preço da lauda, que em muitas editoras se encontra defasado, podemos conversar sobre o recebimento de royalties das traduções, principalmente no caso de obras de direito autoral aberto; melhora do prazo de entrega de trabalhos; valorização das outras pessoas que trabalham no livro, como preparadoras e revisoras; cessão dos direitos autorais de uma tradução por um prazo definido (e não indeterminado como é na maioria dos contratos).”
Questões de gênero
Também destaca-se o fato de que foram, quase exclusivamente, mulheres que movimentaram esse levante de tradutores em busca de reconhecimento nas mesas da Flip, o que traz à tona o papel do gênero na tradução. Na mesa “A tarefa da tradutora”, que ocorreu na última quinta-feira (23), na Casa Sete Selos, Mariana Delfini, Jamille Pinheiro Dias, Maria Cecilia Brandi e Sofia Mariutti promoveram uma conversa sobre o assunto. O nome da mesa faz referência ao célebre texto de Walter Benjamin, “A tarefa do tradutor”, porém chamando atenção justamente para o papel da mulher que exerce o ofício. Durante a discussão, as tradutoras lembraram o que disse Wittner em seu livro, pensando na dificuldade de articular as vidas de mãe, editora, pesquisadora ou jornalista e as dores nas costas e nos punhos causadas pelo trabalho na tradução.
Em vários momentos, nessa e na outra mesa paralela que o coletivo “Quem Traduziu?” movimentou, as tradutoras chamam atenção para a questão da linguagem: para que usar palavras no masculino ao traduzir Silvia Federici se seu público é majoritariamente feminino? Como traduzir um livro em linguagem não-binária se as editoras ainda não a consideram correta? Enquanto feminista, como traduzir um livro historicamente machista? Esta última é a questão que chegou a Emanuela Siqueira quando propôs-se a traduzir Charles Bukowski para as novas edições da Harper Collins no Brasil.
O objetivo das novas edições, segundo a tradutora de “Factótum”, era ser diferente das edições anteriores, que circulam no Brasil desde a década de 1980, optando pela fidelidade completa ao texto, sem eufemismos ao reproduzir comentários racistas ou a misoginia omnipresente na obra do autor. Para ela, quem descreveu o livro apenas como uma tradução perpassada por um “olhar feminino” não pode ter de fato o lido, pois passa longe disso: “me parece que há dificuldade em aceitar — sem ler a tradução — o que seria uma tradutora e pesquisadora feminista operando sobre esse texto,” ela escreve em artigo no Suplemento Literário Pernambuco.
Como pesquisadora de tradução e estudos feministas na Universidade Federal do Paraná, Emanuela acha importante trabalhar com textos que normalmente estão fora do seu escopo, pois, enquanto agente ativa de criação, a tradutora é responsável por uma nova leitura da obra. “Eu vejo que muitas feministas me condenaram por ter traduzido ele. Mas, pelo contrário, eu acho que pro feminismo foi muito importante entender aquela masculinidade.” Ela conta que, por exemplo, na tradução, pôde perceber o quanto os leitores vêm amplificando a figura de masculinidade de Bukowski, usando termos que ele mesmo não usa senão para autodepreciar-se. Para ela, essa é uma chance de entender aqueles a quem a obra do autor ainda apela e “fazer algo com isso, passando longe da censura que apaga e não amplia as discussões.”
A tarefa da tradutora, portanto, mostra-se mais complexa e importante do que o mercado editorial parece reconhecer. Atender aos pedidos das tradutoras não diz respeito a um reconhecimento apenas pelo ego, mas sobretudo à melhoria na qualidade do trabalho final para o público leitor: Gisele finaliza dizendo que “são vários os caminhos que podem melhorar as condições de trabalho. E tudo isso melhora também o resultado das traduções – que ficam menos apressadas e mais cuidadas.”
[Foto: Da esquerda para a direita, Sofia Mariutti, Mariana Delfini, Maria Cecilia Brandi e Jamille Pinheiro Dias na mesa “A tarefa da tradutora” durante a Flip (Foto: Pedro Vidal)]
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