Juros e austeridade
Ao contrário do que pretendem nos convencer os arautos do financismo, o desempenho nas contas governamentais, com déficit primário em setembro, não representa nenhum desastre
Paulo Kliass/Vermelho
O Banco Central (BC) divulgou recentemente a versão mais atualizada da situação das contas fiscais do País. De acordo com a Nota sobre as Estatísticas Fiscais divulgada para a imprensa em 08 de novembro, o resultado das contas públicas para o mês de setembro registrou um déficit primário de R$ 102 bilhões para o total acumulado dos últimos 12 meses. Isso significa que o conjunto das despesas não-financeiras superou o total das receitas não-financeiras em um valor equivalente a 1% do PIB para esse período.
No entanto, ao contrário do que pretendem nos convencer os arautos do financismo, esse desempenho nas contas governamentais não representa nenhum desastre no manejo da política fiscal e tampouco significa que a economia brasileira estaria penetrando em alguma zona perigosa da antevéspera do apocalipse. De forma alguma! A grande maioria dos países mais desenvolvidos do mundo capitalista vem apresentando igualmente resultados deficitários no balanço de suas contas.
Austeridade fiscal é coisa do passado
Essa abordagem catastrofista em prol da austeridade burra e assassina, mantida a ferro e fogo pela elite parasitária de nosso sistema financeiro, não encontra eco nem mesmo nos espaços de debate internacional dos formuladores de política econômica. Como se sabe, trata-se de uma abordagem ultrapassada. Afinal, até mesmo o establishment das organizações multilaterais sabe disso. Este é o caso, por exemplo, de uma publicação recente do renomeado economista francês Olivier Blanchard, que ocupou o estratégico cargo de economista chefe do FMI entre 2008 e 2015. Interessante o fato de que ele não foi entrevistado por esses órgãos da nossa grande imprensa, quase todos comprometidos com a defesa dos interesses do financismo.
(…) “Hoje, a maioria dos países avançados registra déficits primários. Eliminá-los seria provavelmente catastrófico, pois levaria a graves recessões e provavelmente à ascensão de partidos populistas. Assim, o plano deve ser fazê-lo lentamente, mas de forma constante e com credibilidade.” (…) [GN]
Infelizmente não parece ser esta a opinião do nosso Ministro da Fazenda. Afinal, ele tem se revelado um entusiasta militante das causas austeras, como ficou bem evidenciado com o desenho final do Novo Arcabouço Fiscal, que foi aprovado sob a forma da Lei Complementar nº 200/23. Além disso, ele também sugeriu ao Presidente Lula o envio ao Congresso Nacional de um Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2024 na mesma direção. O texto contém um dispositivo que propõe exatamente o oposto daquilo que o próprio Blanchard recomenda aos responsáveis pela política econômica dos países desenvolvidos. Em seu injustificável afã de incorporar o espírito do bom m ocismo na condução da nossa política fiscal, Haddad incluiu no projeto encaminhado no mês de abril um artigo que estabelece, literal e textualmente, que o resultado primário para o ano que vem seja igual a zero. Uma loucura!
(…) “Art. 2º A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2024 e a execução da respectiva Lei deverão ser compatíveis com a meta de resultado primário de R$ 0,00 (zero real) para os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, conforme demonstrado no Anexo de Metas Fiscais constante do Anexo IV a esta Lei.” (…) [GN]
Os riscos para economia e para a sociedade brasileiras podem ser enormes caso esta estratégia para a política fiscal não seja alterada em sua essência. Aprofundar as dificuldades para que o Estado consiga recuperar o seu protagonismo na atividade econômica significa deixar apenas nas mãos das chamadas “soluções de mercado” alguma possibilidade de superar a crise e a estagnação. Nesse caso, sim, podemos dizer que as chances de se obter algum êxito estão zeradas.
Austeridade fiscal e arrocho monetário: coquetel explosivo
Ao forçar o equilíbrio das contas primárias, o responsável pela Fazenda nada mais faz senão apontar para a compressão das despesas da área social e dos investimentos. Afinal, de acordo com esta abordagem restritiva das contas orçamentárias, as despesas financeiras (exatamente aquelas que são classificadas como “não-primárias”) não merecem nenhum limite nem teto. Assim, insistir na busca irracional de resultados equilibrados ou superavitários em momentos como o atual não contribuem para que o programa eleitoral de Lula possa ser cumprido a contento. Pior do que isso, a obstinação com a eliminação do déficit primário deverá trazer perigosas consequências recessivas para nossa economia.
Esse quadro ganha coloração ainda mais dramática se adicionarmos à política fiscal as dificuldades na política monetária. Já faz mais de um ano que o resultado das eleições presidenciais de 2022 passaram a ser conhecidos. Mas a independência do BC, aprovada por Guedes e Bolsonaro ainda em 2021, manteve a composição majoritária do Comitê de Política Monetária (COPOM) com os diretores do órgão indicados pelo governo anterior, ou seja, apoiadores entusiastas do financismo e do genocida. Assim, a SELIC ficou mantida em 13,75% por 8 longos meses e só recentemente experimentou reduções homeopáticas que não chegaram a alterar o juro real no Brasil.
Aliás, muito pelo contrário. Com a redução no ritmo de crescimento dos preços observada desde o início do ano, o País volta a ocupar o primeiro lugar no pódio do triste campeonato mundial de taxa real de juros. Essa medida é realizada subtraindo-se do valor nominal da SELIC a perda com a inflação. De acordo com o levantamento mais recente elaborado pela página Moneyou, estamos com a maior taxa real de juros do planeta. Além de realimentar a dinâmica de elevação de gastos públicos pelo pagamento de juros da dívida pública, o custo financeiro elevado prejudica a atividade econômica em todos os níveis e compromete os investimentos na ampliação da capacidade produtiva de forma geral.
Despesas com juros chegam a R$ 700 bi: sem teto nem limite
Por outro lado, a mesma Nota do BC apresenta os valores de despesas do governo federal com o pagamento de juros aos detentores de títulos públicos. Foram R$ 82 bi apenas no mês de setembro, elevando para um total de R$ 700 bi o acumulado dos últimos 12 meses. Ocorre que pouca gente da grande imprensa, sempre comprometida com os interesses do financismo, chama atenção para esse tipo de despesa. Aliás, termos como “gastança”, “irresponsabilidade fiscal”, “populismo”, “farra com dinheiro público” e que-tais são expressões que esse pessoal dedica apenas e tão somente para sugerir cortes radicais em rubricas fundamentais como educação, previdência social, saúde, assistência social, saneamento, segurança pública, salários de servidores, investimentos em infraestrutura e outros. Cortar gastos com juros ser ia considerado uma verdadeira heresia, uma inaceitável ruptura dos contratos (sic).
A defesa aguerrida que Haddad faz de um resultado zero para as contas primárias no ano que vem não se sustenta nem mesmo quando se verificam as publicações dos órgãos oficias. Tanto que algumas lideranças do próprio governo já sugerem considerar a hipótese de uma alteração cosmética, para um déficit de 0,5%. Porém, essa meta ainda é insuficiente e só reflete a perpetuação do regime da desigualdade social e econômica que nos acompanha desde sempre. Esse percentual corresponderia, segundo as estimativas do PLDO, a R$ 55 bi. Ou seja, apenas no mês de setembro passado o governo gastou com o pagamento de juros um valor 50% maior do este percentual que alguns pretendem estabelecer como meta de resultado primário para todo o exercício de 2024.
Alterar a meta para déficit primário: 1% do PIB
As necessidades do Brasil são muito superiores a qualquer intento mesquinho de austeridade. As entidades representativas dos economistas aprovaram um documento em seu mais recente congresso nacional, onde deixaram claras as oportunidades abertas para a retomada de um projeto de desenvolvimento:
(…) “Neste sentido, o cenário econômico permite uma ampliação do gasto público na direção dos comandos constitucionais que impõem saúde, educação, reforma agrária, regularização de terras indígenas e quilombolas, entre outras políticas públicas. Elementos estes que estão refletidos, explícita ou implicitamente, nas “quatro ‘frentes de expansão’” previstas no PPA 2024-27: i) o consumo popular; ii) os serviços sociais; iii) os investimentos em infraestrutura; e, iv) o uso sustentável dos recursos naturais.” (…) [GN]
A Comissão Mista do Orçamento do Congresso Nacional estendeu para o dia 17 de novembro o prazo para apresentação de emendas ao PLDO. É fundamental que a base do governo Lula se comprometa com a substituição do texto do referido art. 2º, sugerindo que a meta do resultado fiscal para o ano que vem seja o equivalente a 1% do PIB.
Armas do neoliberalismo contra a civilização https://abrir.link/F0sgL
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