Dia não tão santo assim
Luciano Siqueira
Guardo vaga lembrança dos dias santificados da minha infância, num tempo tão contrito e comedido que minha avó Neném chegou a se espantar diante de mulheres que passaram a usar calça comprida — sinal de que o fim do mundo estava próximo!
O fato é que no Recife se celebra hoje o dia de Nossa Senhora da Conceição, tão importante e consagrada que rivaliza com a padroeira da cidade, Nossa Senhora do Carmo.
(Ambas são a mesma mãe de Jesus, né? Ainda criança tentei entender, e não consegui, por que a santa madre se assume com tantos nomes distintos mundo afora.)
Pois bem. Dia santo tinha ares e clima de sagrado. Contrito. Respeitoso. Pois comportava tão somente celebrações religiosas em ambiente de aparente paz, inclusive o comércio fechado.
Hoje, a despeito da romaria ao Morro da Conceição, que acontece desde a madrugada e envolve alguns milhares de habitantes do Recife, a cidade tem jeito de sexta-feira comum. Nada solene.
Numa loja de grande rede varejista, encontro movimento tão intenso — e a moça do caixa diz que irá até às 7 da noite — que me senti cúmplice de uma espécie de blasfêmia coletiva!
— Aqui está parecendo a subida ao morro, onde hoje tudo se vende e tudo se compra, inclusive a gloriosa cerveja gelada, que ninguém é de ferro — garante a amiga que aqui também compra produtos de limpeza e abridor de lata.
— Coisa de cidade grande em pleno século 21!
E assim caminhamos todos entre o místico e o sagrado e as coisas triviais do cotidiano. Com ou sem fé, a vida segue como é possível.
[Foto: Pedro Caldas]
As voltas que o mundo dá https://bit.ly/3Ye45TD
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