"ESCREVER É O QUE ME SALVA"
Discurso da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB) na Câmara Municipal do Recife, em sessão solene a propósito dos 103 anos de Clarice Lispector
Subir nesta plenária é sempre uma grande felicidade. Quero, antes de tudo, saudar as escritoras que nos antecederam. As que mesmo contra tudo e todos, deram asas às suas palavras e conseguiram criar ninhos nas nossas almas. Às que nos inspiram, que nos alavancam, foram e são sementes que nos constituíram gentes e artistas da palavra. Às que fizeram de suas obras molas propulsoras para nossas revoluções internas e coletivas. À Clarice que me ensinou a escrever como quem vive à beira.
Quero saudar todas vocês presentes! Muito obrigada por aceitarem nosso convite e estarem aqui ocupando estas cadeiras para celebrarmos a palavra, a escrita, a produção literária de mulheres. Esta solene é importantíssima para mim. Antes de vereadora, sou poeta. Escrever é o que me salva, é o que tenho de mais genuíno para oferecer ao mundo. É condição de habitar-me. Tê-las aqui é uma honra e renova a certeza de que não ando só.
Como vereadora, também quero dar-lhes boas vindas e reafirmar o compromisso do nosso mandato na abertura deste parlamento para artistas, das mais variadas áreas. Ao longo destes anos, ocupamos a câmara com trabalhadores e trabalhadoras da cultura, fomentando leis e políticas públicas que promovam acesso às artes e garantam o fazer artístico como um direito de todos, todas e todes. Contem comigo e com minha equipe para fazer do recife um celeiro cada vez mais pulsante de manifestações artísticas.
Esta sessão solene homenageia os 103 anos de clarice lispector, escritora que tinha uma intimidade ímpar com as palavras. Clarice se embrenhava nas letras para respirar, se entregava à poesia para viver. Nos mostrou as vísceras de ser quem somos, escrevia “na hora mesma de si própria”. É um orgulho celebrar seu legado e sua importância para a literatura.
Embebidas com sua imensidão, homenageamos também vocês, 103 escritoras pernambucanas, das mais variadas vertentes, que ecoam as vozes das mulheres, com representatividade, pluralidade e poética.
Escrever dá trabalho, requer muita coragem. É um tal de vasculhar sempre. A si, o outro, o todo. Quem aqui nunca perdeu o sono por conta de uma estrofe incompleta? E a falta de ar que dá com palavra presa na costela? Quem nunca se entupiu de verso para passar a dor? Escrever é para quem tem fome. De tudo.
Pela bravura e imensidão de vocês, queremos celebrá-las. Por tornarem-se travessias ao se derramarem em letras. Por se unirem em clubes de leitura e coletivos de mulheres estudando, reverberando e agigantando nosso potencial artístico, rescrevendo memórias e papéis sociais. Somos parte fundante da literatura brasileira e esta solene é também para reconhecer institucionalmente este legado.
Aqui, está apenas uma parte das escritoras do recife. Existem muitas outras. Somos uma amostra de pessoas que emprestam suas vozes, dedos e a alma de artista para dizer de nós, das outras, dos outros. Que um dia, cada vez mais escritoras possam ser homenageadas por suas literaturas que arvoram.
Durante muitos anos, foi vedada a nós mulheres a escolaridade, a escrita e a fala. Estivemos de fora do discurso público e, por isso, nossa produção artística, no Brasil, data de tão pouco tempo. Tenho uma mania de sempre olhar para minha biblioteca e me perguntar: Quantas escritoras são negras? Quantas são indígenas? Têm autoras trans?
Livro é uma espécie de trilha, tem caminho pra dentro e pra fora, uns você escolhe, outros te levam. Palavra tem poder de conduzir e quem escreve guia. Por isso mesmo, nossa produção literária deve ofertar cada vez mais visões de mundos distintas, alargando formas de existir, reverberando lutas. Não podemos mais ser moldadas apenas por cânones literários que traduzem as perspectivas dos homens brancos europeizados. Sigamos Clarice que escrevia porque tinha muito o que falar.
Já não precisamos mais guardar nossas obras em gavetas, nem criarmos codinomes com medo de sermos descobertas. Fincamos nossa literatura - plural, gigante, diversa - na história. Sigamos unidas, abençoadas pelas griots, mulheres africanas que contavam e recontavam histórias, afetos, dias, através da literatura oral e que ajudaram a nos construir, inclusive, como voz poética.
Aqui quero fazer uma grande homenagem às mulheres cordelistas, repentistas e cantoras de viola do recife, de Pernambuco e do nordeste brasileiro. Às que produziram os sons ancestrais que me consomem, as minhas griots do sertão. A poesia popular entrou na minha vida antes de eu saber com que letra começa o meu nome, marcou minha infância e me fez poeta. No meu livro claranã, me arrisquei em métricas e rimas para reverenciar esse gênero literário que tanto me inspirou. Hoje também faço questão de louvar vocês. Gratidão imensa por ofertarem mergulhos, fachos de luz e fontes de água a jorrar.
Encher esse plenário de mulheres é também relembrar a importância de ocuparmos espaços institucionais. Precisamos de Conceição Evaristo na Academia Brasileira de Letras e, junto com sua imensa representatividade, preenchermos mais cadeiras com mulheres. Somente em 1977 esta instituição começou a aceitar nossa entrada com a imortalização da escritora Rachel de Queiroz. Dos 39 imortais, apenas quatro são mulheres.
Que as academias do Brasil afora perpetuem a nossa produção artística, reconhecendo nosso trabalho como fundamental na construção do saber literário. Que possamos ser cada vez mais reconhecidas por nossas trajetórias. Aqui quero saudar a academia pernambucana de letras que já foi presidida por duas mulheres incríveis e exímias escritoras aqui presentes: Fátima Quintas e Margarida Cantarelli.
Também fica aqui minha homenagem à eterna Edwiges Sáá Pereira, primeira mulher a entrar na instituição, uma sufragista que lutou pelo nosso acesso à educação, com uma imensa contribuição na conquista dos direitos que temos hoje.
Um viva a todas vocês!
Para tentar estimular o acesso e aumentar a representatividade de mulheres, elaboramos o programa leitura pernambucana, um projeto de lei, em tramitação nesta Casa, que visa incentivar a literatura do nosso estado nas escolas e bibliotecas públicas do Recife. A ideia é que nossas crianças cresçam, aprendam e se inspirem com livros produzidos aqui, criados por nossos e nossas artistas da palavra, semeando novos leitores e futuros escritores e escritoras.
Que as obras de vocês possam povoar as bibliotecas de todos os bairros, falando de um Recife vivo, de uma cidade-fêmea que, por muitas vezes, é musa dos meus poemas e palco para minhas récitas. Aprová-lo é uma forma de estimular a cultura local e reconfigurar a importância da nossa literatura para o Brasil.
Também foram inúmeros os requerimentos e votos de aplausos para escritores e escritoras, festivais de literatura do e no Recife que produzimos. Como uma artista no parlamento, me sinto imbuída em transformar este espaço em ponte para fomento da arte.
Sonho também com o dia que teremos a livraria do escritor e da escritora pernambucana. Minha ideia sempre foi cravar no Recife Antigo, na Rio Branco, um espaço de fruição e estímulo ao desenvolvimento da nossa literatura. Um lugar que borbulhe arte, aberto a novos e novas autoras, leitores, admiradores. Este projeto está na Fundação de Cultura da cidade e espero que, um dia, possamos todos e todas vê-lo de pé.
Assim como aguardo o momento da casa Clarice Lispector, localizada na rua Manoel Borba, no centro da nossa cidade, floresça como ela. Ainda quando estava na Secretaria da Mulher do Recife, elaboramos dois projetos arquitetônicos que buscam lhe transformar em um centro cultural pulsante, aberto às manifestações artísticas, celeiro de novas ideias. Já como vereadora, os entreguei em mãos à Fundação de Cultura e coloquei nosso mandato à disposição para ajudar no que fosse preciso para que mais espaços culturais surjam no Recife.
Fica aqui também um convite para construirmos juntas um projeto de felicidade. Com a força da poesia podemos reconstruir mundos. Ajudamos a coordenar o movimento nacional de escritoras, reunindo diversas mulheres, no teatro Santa Isabel. Com este espírito de coletividade, chamo vocês para estimularmos umas às outras a soltar a mão, abrir-se para a palavra, com suas dores e delícias. Vamos nos unir em rede para conversarmos sobre nossas escritas, lutas, marchas. Nós temos as potências das encruzilhadas: cruzamos gentes, encantos e caminhos.
Somos um grande pelotão de afetos. As que estão aqui, as que não estão, as que ainda nem conhecemos e as que virão. Somos muitas e ainda podemos ser mais mulheres que escrevem, que fazem de suas artes elos para o porvir. Por isso, neste momento, queria convidá-las para, juntas, nos olharmos. Quantos corações de Clarice temos aqui? Quantos estão fora desta sala? Que tal abrirmos os nossos corações para a troca, neste instante que é semente? Que tal nos conectarmos umas com as outras e compartilharmos coragem, afeto, poesia? Fica aqui, nesta singela homenagem, a minha gratidão, meu orgulho e meu pedido para que não desistam das letras. Sigam trilhando seus caminhos, honrem esse talento, se entreguem às palavras. Escrever é sobre estar viva. Celebremos! Um beijo no coração de cada um e cada uma de vocês!
As emoções dão cor à vida https://bit.ly/3Ye45TD
Nenhum comentário:
Postar um comentário