Lula vetou mesmo a memória de 64?
Presidente opta por cautela nos 60 anos do golpe, focando no futuro e na estabilidade política, enquanto o Brasil enfrenta polarização e desafios democráticos.
Edilson Silva/Vermelho
Os 60 anos do golpe de 64 estão marcados pelo “veto” do presidente Lula a manifestações de seu governo acerca do tema. Viralizou. Porém, como acontece com outros fenômenos, também neste existe a superfície e a profundidade, a aparência e a essência. E a dialética nos ensina que a primeira pode sim expressar contradições com a segunda, e mesmo assim conviverem em harmonia.
O presidente diz que quer olhar pra frente, em detrimento da memória de 64. A aparência. Os fatos, a conjuntura mais estrutural, e providências concretas em curso, porém, fazem um barulho ensurdecedor em torno do tema. Eis a essência. O liame que conecta e harmoniza os supostos opostos é a política, a correlação de forças, a luta ideológica, e a devida e consequente hierarquia que se deve dar às prioridades quando se está a fazer ajustes finíssimos de localização política nesta arena, notadamente na batalha da comunicação.
Os fatos e a conjuntura mais estrutural nos mostram uma sociedade polarizada e uma extrema direita que saiu do armário e se transformou em fenômeno de massas. A luta política e as articulações necessárias, amplas e elásticas, para derrotar eleitoralmente Bolsonaro não podem sair de qualquer equação política séria. Donald Trump nos EUA e Milei na Argentina, para ficar em apenas dois exemplos mais midiatizados, tão pouco podem sair de nosso radar. Uma duríssima luta civilizatória segue e seguirá em curso. Não é irrelevante neste contexto o fato de pesquisas apontarem empate técnico entre os que aprovam e desaprovam o governo Lula. O céu não está perto.
A cautela do Presidente Lula, que se travestiu de veto, funcionou na verdade como “boi de piranha” para os menos atentos, pois foi acompanhada de manifestações públicas críticas ao golpe de ao menos seis de seus ministros, incluídos o da Secretaria de Comunicação e dos Direitos Humanos. Nas Forças Armadas, segue o silêncio, pois vetada está qualquer manifestação de apologia ao golpe, desde a terceira posse do habilidoso presidente em janeiro de 2023.
No momento em que escrevo este texto, o STF está votando a interpretação constitucional do artigo 142 da Constituição Federal, que trata do papel institucional das Forças Armadas. Já se tem maioria em favor da obviedade de que não cabe aos militares qualquer poder moderador, um contorcionismo hermenêutico de golpistas delirantes. Militares da alta cúpula estão sendo presos pelos atos golpistas de 08 de janeiro de 23, e os processos abertos cercam Bolsonaro que, além de já inelegível, pelo andar da carruagem também será preso, em ato jurídico perfeito e portanto politicamente seguro.
O judiciário, nas suas várias instâncias e especialidades, está dando conta de jogar na lata do lixo dois ícones do lavajatismo, Dalagnol e Moro. A Polícia Federal está desvendando o assassinato de Marielle Franco, um crime que atingiu nossa democracia na alma. Zanin e Flávio Dino estão ministros do STF.
Quero crer que nosso Presidente está sabendo dividir responsabilidades, evitando chamar demais a atenção para si em tantos temas, cumprindo assim, além do papel de chefe de Estado e líder de um campo político, o papel de mediador em temas sensíveis. Ninguém poderia substitui-lo, por exemplo, na denúncia do genocídio que o Estado de Israel comete na Faixa de Gaza, e Lula não temeu cumprir seu papel, mesmo com a fortíssima campanha articulada contra sua corajosa postura humanitária e civilizatória. Nosso Presidente é um “velho marinheiro”, e aprendeu a lição de Paulinho da Viola: durante o nevoeiro, leva o barco devagar.
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