14 abril 2024

Entre o smartphone e o jogo da amarelinha

O exílio da infância

Os nascidos entre 1995 e 2010 sofreram uma reprogramação cerebral inédita na história, com consequências nefastas para sua saúde
Daniel Becker/O Globo


 

Ninguém hoje duvida que cigarro faz mal. Mas foram décadas até a ciência vencer o negacionismo propagado pela indústria, e até governos desenvolverem políticas de combate ao tabagismo. Muitas vidas foram perdidas nesse ínterim

A ciência atualmente trava uma batalha contra o negacionismo e a inação na questão climática. Para evitarmos catástrofes e reduzir o risco da extinção humana, precisamos criar um consenso que nos habilite a mudar de rumo.

Há uma terceira questão que precisa de nossa atenção coletiva: os danos causados pelo excesso de telas a crianças e adolescentes — e a necessidade de retomarmos uma infância rica em experiências no mundo real. 

Me parece que um consenso começa a surgir em torno desse tema. Pais, mães, educadores e até mesmo nossos jovens estão reconhecendo a importância desse movimento.

Jonathan Haidt, psicólogo social americano que leciona na New York University, há tempos escreve sobre o tema, equilibrando paixão com evidências científicas. Tenho uma forte afinidade com seus pontos de vista e propostas de soluções, as mesmas que venho procurando divulgar há tempos.

Num livro publicado esse ano, Haidt mostra que a geração Z, os nascidos entre 1995 e 2010, sofreram uma reprogramação cerebral inédita na história humana, com consequências nefastas para sua saúde.

Eles foram abalroados pelos celulares em plena puberdade, um período decisivo no amadurecimento cerebral. Nessa fase há uma grande mudança no córtex pré-frontal, responsável pelas funções executivas, como tomada de decisão, foco, controle de impulsos, julgamento e resolução de problemas. Surgem novos neurônios, 40% das sinapses são eliminadas, e muitas outras são criadas. Capacidades fundamentais para a vida adulta se desenvolvem e hábitos e vícios formados nessa época tendem a se tornar mais arraigados.

Desde os primórdios da humanidade até em torno de 2010, as crianças entravam na puberdade se relacionando com o mundo real, com seu corpo, com seus amigos e família. Nessa época, a velocidade da internet aumenta, surge a App Store e a câmera frontal, o Facebook cria o botão de like e os comentários (e com isso o algoritmo e seus direcionamentos), aparece o Instagram. Começa então uma maciça migração dos adolescentes para o mundo virtual. Dez anos depois, estão online quase o tempo todo.

Costumo dizer que essa mudança histórica cria um múltiplo exílio para a infância: de seu corpo, que perde o movimento; do seu território essencial, o ar livre e a natureza; da sua capacidade de atenção, raciocínio e criatividade; do sono, essencial para a vida; do brincar e da socialização, cruciais para o desenvolvimento humano. Em vez de passar o dia conhecendo e pensando o mundo, realizando tarefas, lendo, se movimentando, em contato com natureza e cultura, interagindo e brincando com seus pares, e assim aprendendo a se comunicar, discutir, se conhecer, brigar e se reconciliar, suportar frustrações, gastam seu tempo postando fotos, assistindo vídeos curtos e hiperestimulantes, fragmentando sua atenção, sendo interrompidos por notificações, esperando comentários, se comparando com imagens irreais de outros, desprovidos de experiências naturais e sociais. 

Os resultados são desastrosos: a partir de 2012, as notas do PISA global, que subiram por décadas consecutivas, iniciam uma queda abrupta. No mesmo período, as curvas de automutilação, ansiedade, depressão e suicídio em crianças e adolescentes começam uma ascensão violenta. A autolesão nos EUA aumenta cinco vezes em dez anos, a ansiedade e depressão quase triplicam. É espantoso e assustador.

Essa é uma sinalização de que precisamos prestar muita atenção ao problema e iniciar uma mudança de rumo coletiva com a mais absoluta urgência. Creio que a maioria de nós está preocupada: é hora de agir. 

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