05 agosto 2024

Melka: violência sexista

Culpar, responsabilizar e punir: a naturalização das violências contra as mulheres
Melka Pinto* 

Eu fico me perguntando até quando tudo que tem a ver com os corpos das mulheres será tão público, tão polêmico e tão pertencente aqueles que parecem que são os detentores dos nossos corpos, das nossas vidas. No patriarcado é assim. Ditam o que nós podemos e não podemos fazer e paradoxalmente é nessa mesma estrutura patriarcal e machista que todos os problemas que são comuns as mulheres são privados: é um problema dela, uma responsabilidade dela. 
 
Se ela engravida (em qualquer idade), não pode abortar porque é crime, se ela se torna mãe ainda que adolescente, "tudo bem, ela vai dar conta, vai ter que amadurecer cedo e se privar de algumas coisas". Se ela sai de casa e abandona o marido agressor, ela está destruindo a família e já que decidiu isso "ela que se resolva". Se ela fica em casa sendo violentada diariamente, é um problema do casal, "ela deve ter os motivos dela". E sempre será assim: a vida das mulheres (em todos os seus ciclos) é uma questão pública, mas os problemas que mais as afetam sempre serão tratados como questões do âmbito privado. É muita hipocrisia. Dá náuseas.
 
Nós vivemos em um país em que o que mais tem são as "faltas", falta educação básica, falta incentivo ao desenvolvimento de práticas esportivas, faltam equipamentos sociais de fomento ao lazer, à cultura, falta acesso aos serviços de saúde de qualidade, falta trabalho formal e renda e são nesses contextos principalmente nas periferias das nossas cidades que cada vez mais cedo meninas e meninos iniciam à vida sexual e engravidam. As meninas engravidam. E apenas as meninas são culpabilizadas, responsabilizadas e penalizadas por engravidarem. 
 
Muitas meninas das nossas periferias engravidam com 12, 13, 14 anos. São quase crianças, mesmo que elas não se reconheçam como crianças, que a comunidade em torno delas não as vejam mais como crianças devido as questões culturais, são quase crianças com corpos ainda infantis em desenvolvimento. E a maioria de nós de certa forma naturalizamos a gestação dessas meninas. No máximo a maioria das pessoas apenas exclama "caramba, 12 anos!" e as coisas seguem o curso como se não fosse um crime engravidar nessa idade, como se não precisasse de uma grande mobilização social e política sobre isso, como se não devêssemos buscar os responsáveis por essa realidade.
 
É uma sociedade tão hipócrita que não se mobiliza em torno do estupro de vulnerável e da gravidez na adolescência como uma grande questão de saúde pública e paradoxalmente condena as iniciativas de educação sexual nas escolas. Tão hipócrita que os "representantes do povo" colocam em pauta uma lei para punir crianças de abortarem (em casos de estupro), com uma punição maior que a do estuprador que a violentou. É uma realidade inacreditável para quem tem o mínimo de discernimento. Sabe o filme da Barbie? Para quem não viu é assim: A barbielândia, que é um lugar em que as mulheres comandam, são respeitadas, etc, começa a dar defeito e a Barbie vem para o mundo real saber o que tá acontecendo, quando ela chega aqui e se depara com a realidade cruel e constrangedora em que as mulheres vivem ela fica em choque e entra em crise.
 
E é essa sensação de choque que as pessoas da nossa sociedade deviam sentir sempre que nós mulheres somos lesadas, agredidas, violentadas e mortas. Mas estão quase todos anestesiados (menos o movimento de mulheres feministas e uma parcela da sociedade que luta para combater essa realidade), porque o patriarcado cria uma estrutura que faz isso, naturaliza as violências contra as mulheres e depois nos culpabiliza, nos responsabiliza e nos penaliza pelas ações que foram cometidas contra nós, contra nossos direitos, nossas vidas. É muita hipocrisia. 
 
O que cabe a nós, combatentes dessa estrutura e defensores e defensoras dos direitos das meninas e mulheres é enfrentar essa realidade de forma radical e revolucionária: lutar pela educação sexual nas escolas e nos bairros para meninas e meninos, lutar pela garantia do acesso livre e irrestrito a métodos contraceptivos de alta eficácia e de média e longa duração e lutar pelo direito ao aborto seguro para as mulheres que assim desejarem. As políticas públicas que dizem respeito aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres precisam avançar nesse país hipócrita, machista e misógino.
 
Somos nós mulheres que parimos a humanidade e o patriarcado fere nossa existência todos os dias e em todos os sentidos. É realmente inacreditável, mas seguimos atentas e fortes pelas nossas vidas e das que virão.
 
[Esse texto terá continuidade]

*Melka Pinto ex-líder estudantil, foi presidente da União dos Estudantes de Pernambuco; enfermeira na rede pública
 
Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/violencia-sexista.html

Um comentário:

Alice disse...

Texto muito bom o da Melka Pinto! Mas eu vou mais além no âmbito da origem desse cenário de patriarcado hipócrita ainda existente no Brasil. Enquanto não existir igualdade quantitativa DE FATO entre homens e mulheres nos poderes Judiciário e Legislativo, será inviável o sonho de uma sociedade que respeite as mulheres. PRECISAMOS LUTAR para que haja de fato mais mulheres ocupando o poder legislativo em nosso Brasil: é lá que as leis são feitas. A atual lei que temos obriga apenas um número de 30% das candidaturas para mulheres, mas não garante a nós a ocupação DE FATO de pelo menos 30% das cadeiras no Congresso Nacional, nas Assembléias e Câmara de vereadores.

Temos de exigir isso, exigir também uma penalidade devida aos congressistas que desrespeitam as mulheres (fator que impede que várias de nós nos candidatemos a uma vaga) e temos de exigir que o dinheiro do Fundo Eleitoral chegue cedo às mulheres que hoje se candidatam (que recebem tarde o dinheiro público destinado às campanhas).

E esse TEMOS engloba mulheres e homens bons que veem essa nítida hipocrisia ocorrer no Brasil.