A queda da hegemonia dos Estados
Unidos
Cláudio Carraly*
A hegemonia dos Estados Unidos, consolidada após a Segunda Guerra Mundial e ampliada com o colapso soviético em 1991, está em xeque, como bem observou o historiador Paul Kennedy no livro “Ascensão e Queda das Grandes Potências” de 1987. Impérios entram em declínio quando seus compromissos globais superam sua capacidade econômica. Hoje, em um mundo marcado por uma franca ascensão da China, desdolarização e fragmentação geopolítica, os EUA enfrentam desafios estruturais que apontam para o fim da sua hegemonia.
Para
entender o declínio estadunidense, é essencial recorrer a duas
perspectivas:
- Ciclos
de hegemonia global: cada ciclo hegemônico, seja espanhol, britânico ou
estadunidense, dura cerca de 100 anos e termina quando a potência dominante
prioriza a financeirização sobre a produção real. Os EUA seguem esse padrão: em
2023, o setor financeiro representava 20,4% do Produto Interno Bruto (PIB)
nacional, contra 12% em 1980.
- Soft
power e imperialismo cultural: A capacidade de moldar preferências globais via
cultura e valores estadunidenses está em declínio. O Soft Power 30
Index é um ranking anual que analisa e classifica o desempenho de
países em termos de “soft power” — ou seja, a capacidade de influenciar
preferências e comportamentos de outros atores no cenário internacional por
meio de valores culturais, políticos, diplomacia, educação, entre outros
fatores não coercitivos. Esse ranking em 2023 colocava os EUA em 3º lugar,
atrás de Alemanha e França, refletindo erosão na credibilidade diplomática e
diminuição gradual da sua influência cultural global.
A
economia estadunidense ainda lidera em termos nominais, US$ 26,8 trilhões em
2023, mas sua participação relativa no PIB global caiu de 31% em 2000, para 24%
em 2024. Paralelamente, a China, que em 2000 respondia por 3,6% do PIB mundial,
hoje alcança 18%, aproximando-se do parâmetro da armadilha de Tucídides —
cenário em que uma potência emergente desafia a dominante, como Atenas vs.
Esparta.
A Guerra
Comercial iniciada pelos EUA contra a China durante as administrações
Trump/Biden 2018 a 2024, a sobretaxa de produtos chineses, bem como dificultar
a compra de semicondutores e chips produzidos por Taiwan, visando refrear a
veloz modernização da base industrial de quinta geração na China. Essa taxação,
que incidiu em torno de US$ 370 bilhões nos produtos asiáticos, ao invés de
reduzir a aceleração econômica, surtiu um efeito contrário e acelerou ainda
mais a fragmentação da economia norte-americana. A China respondeu a essa
sobretaxa com subsídios estatais de US$ 300 bilhões para semicondutores,
reduzindo profundamente a dependência de chips taiwaneses. O
comércio bilateral caiu 12% de 2019 a 2023, enquanto o comércio China e ASEAN (Association
of Southeast Asian Nations), que é uma organização
intergovernamental fundada em 1967, composta por países do Sudeste Asiático com
o objetivo de promover a cooperação econômica, cultural e política na região,
cresceu 40% até 2024.
Além
disso, a desdolarização avançou, em 2023, 31% do comércio sino-russo foi feito
em yuan e rublos, e o BRICS estudam uma moeda comum lastreada em commodities,
que venha brevemente substituir os dólares no comércio desses e talvez a longo
prazo, até globalmente. O sistema de pagamento chinês CIPS (Cross-Border
Interbank Payment System) é o sistema de pagamentos interbancário
transfronteiriço da China, lançado em 2015 pelo Banco Popular da China (PBOC).
Ele foi desenvolvido para facilitar e agilizar transações em âmbito global,
contribuindo para a internacionalização da moeda chinesa, esse processou US$
12,6 trilhões em 2023, ante US$ 1,2 trilhão em 2015. O SWIFT, fundado em 1973,
é uma organização global que oferece serviços de mensagem financeira entre instituições
bancárias. Ainda é o principal meio de comunicação para transferências
internacionais de fundos e outras transações bancárias, mas vem perdendo espaço
rapidamente.
Os
limites do Hard Power e a Ascensão da Guerra Híbrida, o
orçamento militar dos EUA em torno de US$ 886 bilhões em 2024 é insustentável,
como alertou o general Mark Milley, "não podemos vencer guerras
infinitas". A retirada do Afeganistão expôs os pés de barro do ídolo de
ouro estadunidense, enquanto a China adota estratégias assimétricas e não opta
pela ação militar como tática, como Rússia e Estados Unidos. A invasão russa à
Ucrânia em 2022 revelou fissuras no modelo adotado no mundo no pós-guerra. A
Europa, dependente do gás russo, 40% do consumo em 2021, expôs a profundidade
da fragilidade das sanções lideradas pelos EUA, enquanto países importantes do
Sul Global, como Índia e África do Sul, abstiveram-se de condenar a Rússia na
ONU, sinalizando rejeição à atual ordem ocidental.
A
política externa estadunidense perdeu profundamente a coerência e o apoio
inclusive de aliados históricos, o unilateralismo do chamado "America
First" na era Trump que agora se reinicia, seja como farsa ou como
tragédia, minaram o que restava de confiança dos seus aliados, além da situação
interna de polarização que atinge níveis inconciliáveis, levando o país a uma
divisão só vista na Guerra da Secessão, o parlamento já não legisla, muito
menos discute com profundidade projetos, apenas se entrincheira contra o que
vem do outro lado. Em 2023, a obstrução legislativa custou US$ 1,2 trilhão em
possíveis projetos de infraestrutura paralisados. Após o ataque ao
Capitólio em 2021, a aprovação global da democracia interna e externamente caiu
para níveis do início do século XX.
Enquanto
isso, a China, que combina controle estatal e capitalismo tecnocrático,
desafiando o liberalismo ocidental, avança como o futuro player número
um do mundo, durante a COVID-19, doou 2,2 bilhões de doses a países em
desenvolvimento, conquistando apoio em 54 países. O TikTok domina 60% do
mercado global de redes sociais, enquanto a Huawei equipa 70% das redes 5G
africanas e o próximo passo dessa expansão é a América Latina. No
entanto, a China não busca hegemonia global nos moldes tradicionais, e sim uma
hegemonia sem responsabilidades, evitando custo de prover bens públicos
globais, nem utilizando força militar para intervenção nos países para impor
seu modo interno de política, amealhando apenas os bônus dessa liderança, sem o
ônus de uma ação imperialista clássica.
Cenários
Futuros diante desse, admirável mundo novo, três caminhos são
possíveis:
1. Guerra
Fria 2.0: EUA e China dividem o mundo em esferas de influência, com Europa e
BRICS como "balançeadores".
2.
Fragmentação caótica: A proliferação de moedas digitais, IA descentralizada,
implosão de mercados comuns e queda da importância dos organismos mundiais
multilaterais levam a um sistema sem líder claro, onde o poder do mais forte
voltará a prevalecer.
3.
Multilateralismo reformado: EUA aceitam poder relativo e reformam instituições
internacionais como a ONU, incluindo o Sul Global no Conselho de Segurança e
dividindo a governança global de forma mais equânime.
A
hegemonia estadunidense não desaparecerá nas próximas décadas, mas será
reconfigurada, como escreveu Henry Kissinger em World Order de
2014, "nenhuma potência pode ditar sozinha as regras do século XXI".
Para evitar o destino do Império Romano e tantos outros, os EUA precisam
combater a desigualdade interna, reinvestir na indústria, reverter a
financeirização, diminuir sua tendência belicista, aceitar a multipolaridade e
compartilhar poder de governança com a UE, BRICS, ASEAN e outros organismos
multipolares.
A
configuração multipolar do século XXI indica que o poder e a influência globais
não se concentrarão em apenas uma nação. Tendências como a aceleração
tecnológica, o fortalecimento de blocos regionais e a crescente
interdependência econômica sugerem que o protagonismo no cenário internacional
será distribuído entre diversos atores, cada qual com seus interesses e
estratégias. A pluralidade de visões e a complexidade dos desafios, como a
mudança climática e a cibersegurança, reforçam a ideia de que nenhum país
deterá sozinho o controle sobre os rumos do mundo. O século XXI não será
estadunidense, chinês ou russo, será plural e, por enquanto, imprevisível
* Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco
Leia: Como a IA chinesa desafia a geopolítica mundial https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/ia-chinesa-geopolitica.html
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