29 janeiro 2025

Cláudio Carraly opina

A queda da hegemonia dos Estados Unidos
Cláudio Carraly*  

A hegemonia dos Estados Unidos, consolidada após a Segunda Guerra Mundial e ampliada com o colapso soviético em 1991, está em xeque, como bem observou o historiador Paul Kennedy no livro “Ascensão e Queda das Grandes Potências” de 1987. Impérios entram em declínio quando seus compromissos globais superam sua capacidade econômica. Hoje, em um mundo marcado por uma franca ascensão da China, desdolarização e fragmentação geopolítica, os EUA enfrentam desafios estruturais que apontam para o fim da sua hegemonia.

Para entender o declínio estadunidense, é essencial recorrer a duas perspectivas:  

- Ciclos de hegemonia global: cada ciclo hegemônico, seja espanhol, britânico ou estadunidense, dura cerca de 100 anos e termina quando a potência dominante prioriza a financeirização sobre a produção real. Os EUA seguem esse padrão: em 2023, o setor financeiro representava 20,4% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, contra 12% em 1980.  

- Soft power e imperialismo cultural: A capacidade de moldar preferências globais via cultura e valores estadunidenses está em declínio. O Soft Power 30 Index é um ranking anual que analisa e classifica o desempenho de países em termos de “soft power” — ou seja, a capacidade de influenciar preferências e comportamentos de outros atores no cenário internacional por meio de valores culturais, políticos, diplomacia, educação, entre outros fatores não coercitivos. Esse ranking em 2023 colocava os EUA em 3º lugar, atrás de Alemanha e França, refletindo erosão na credibilidade diplomática e diminuição gradual da sua influência cultural global.  

A economia estadunidense ainda lidera em termos nominais, US$ 26,8 trilhões em 2023, mas sua participação relativa no PIB global caiu de 31% em 2000, para 24% em 2024. Paralelamente, a China, que em 2000 respondia por 3,6% do PIB mundial, hoje alcança 18%, aproximando-se do parâmetro da armadilha de Tucídides — cenário em que uma potência emergente desafia a dominante, como Atenas vs. Esparta.  

A Guerra Comercial iniciada pelos EUA contra a China durante as administrações Trump/Biden 2018 a 2024, a sobretaxa de produtos chineses, bem como dificultar a compra de semicondutores e chips produzidos por Taiwan, visando refrear a veloz modernização da base industrial de quinta geração na China. Essa taxação, que incidiu em torno de US$ 370 bilhões nos produtos asiáticos, ao invés de reduzir a aceleração econômica, surtiu um efeito contrário e acelerou ainda mais a fragmentação da economia norte-americana.  A China respondeu a essa sobretaxa com subsídios estatais de US$ 300 bilhões para semicondutores, reduzindo profundamente a dependência de chips taiwaneses.  O comércio bilateral caiu 12% de 2019 a 2023, enquanto o comércio China e ASEAN (Association of Southeast Asian Nations), que é uma organização intergovernamental fundada em 1967, composta por países do Sudeste Asiático com o objetivo de promover a cooperação econômica, cultural e política na região, cresceu 40% até 2024.  

Além disso, a desdolarização avançou, em 2023, 31% do comércio sino-russo foi feito em yuan e rublos, e o BRICS estudam uma moeda comum lastreada em commodities, que venha brevemente substituir os dólares no comércio desses e talvez a longo prazo, até globalmente. O sistema de pagamento chinês CIPS (Cross-Border Interbank Payment System) é o sistema de pagamentos interbancário transfronteiriço da China, lançado em 2015 pelo Banco Popular da China (PBOC). Ele foi desenvolvido para facilitar e agilizar transações em âmbito global, contribuindo para a internacionalização da moeda chinesa, esse processou US$ 12,6 trilhões em 2023, ante US$ 1,2 trilhão em 2015. O SWIFT, fundado em 1973, é uma organização global que oferece serviços de mensagem financeira entre instituições bancárias. Ainda é o principal meio de comunicação para transferências internacionais de fundos e outras transações bancárias, mas vem perdendo espaço rapidamente.  

Os limites do Hard Power e a Ascensão da Guerra Híbrida, o orçamento militar dos EUA em torno de US$ 886 bilhões em 2024 é insustentável, como alertou o general Mark Milley, "não podemos vencer guerras infinitas". A retirada do Afeganistão expôs os pés de barro do ídolo de ouro estadunidense, enquanto a China adota estratégias assimétricas e não opta pela ação militar como tática, como Rússia e Estados Unidos. A invasão russa à Ucrânia em 2022 revelou fissuras no modelo adotado no mundo no pós-guerra. A Europa, dependente do gás russo, 40% do consumo em 2021, expôs a profundidade da fragilidade das sanções lideradas pelos EUA, enquanto países importantes do Sul Global, como Índia e África do Sul, abstiveram-se de condenar a Rússia na ONU, sinalizando rejeição à atual ordem ocidental.   

A política externa estadunidense perdeu profundamente a coerência e o apoio inclusive de aliados históricos, o unilateralismo do chamado "America First" na era Trump que agora se reinicia, seja como farsa ou como tragédia, minaram o que restava de confiança dos seus aliados, além da situação interna de polarização que atinge níveis inconciliáveis, levando o país a uma divisão só vista na Guerra da Secessão, o parlamento já não legisla, muito menos discute com profundidade projetos, apenas se entrincheira contra o que vem do outro lado. Em 2023, a obstrução legislativa custou US$ 1,2 trilhão em possíveis projetos de infraestrutura paralisados. Após o ataque ao Capitólio em 2021, a aprovação global da democracia interna e externamente caiu para níveis do início do século XX.  

Enquanto isso, a China, que combina controle estatal e capitalismo tecnocrático, desafiando o liberalismo ocidental, avança como o futuro player número um do mundo, durante a COVID-19, doou 2,2 bilhões de doses a países em desenvolvimento, conquistando apoio em 54 países. O TikTok domina 60% do mercado global de redes sociais, enquanto a Huawei equipa 70% das redes 5G africanas e o próximo passo dessa expansão é a América Latina.  No entanto, a China não busca hegemonia global nos moldes tradicionais, e sim uma hegemonia sem responsabilidades, evitando custo de prover bens públicos globais, nem utilizando força militar para intervenção nos países para impor seu modo interno de política, amealhando apenas os bônus dessa liderança, sem o ônus de uma ação imperialista clássica.  

Cenários Futuros diante desse, admirável mundo novo, três caminhos são possíveis:  

1. Guerra Fria 2.0: EUA e China dividem o mundo em esferas de influência, com Europa e BRICS como "balançeadores".  

2. Fragmentação caótica: A proliferação de moedas digitais, IA descentralizada, implosão de mercados comuns e queda da importância dos organismos mundiais multilaterais levam a um sistema sem líder claro, onde o poder do mais forte voltará a prevalecer.  

3. Multilateralismo reformado: EUA aceitam poder relativo e reformam instituições internacionais como a ONU, incluindo o Sul Global no Conselho de Segurança e dividindo a governança global de forma mais equânime.  

A hegemonia estadunidense não desaparecerá nas próximas décadas, mas será reconfigurada, como escreveu Henry Kissinger em World Order de 2014, "nenhuma potência pode ditar sozinha as regras do século XXI". Para evitar o destino do Império Romano e tantos outros, os EUA precisam combater a desigualdade interna, reinvestir na indústria, reverter a financeirização, diminuir sua tendência belicista, aceitar a multipolaridade e compartilhar poder de governança com a UE, BRICS, ASEAN e outros organismos multipolares.  

A configuração multipolar do século XXI indica que o poder e a influência globais não se concentrarão em apenas uma nação. Tendências como a aceleração tecnológica, o fortalecimento de blocos regionais e a crescente interdependência econômica sugerem que o protagonismo no cenário internacional será distribuído entre diversos atores, cada qual com seus interesses e estratégias. A pluralidade de visões e a complexidade dos desafios, como a mudança climática e a cibersegurança, reforçam a ideia de que nenhum país deterá sozinho o controle sobre os rumos do mundo. O século XXI não será estadunidense, chinês ou russo, será plural e, por enquanto, imprevisível

* Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

 
Leia: Como a IA chinesa desafia a geopolítica mundial https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/ia-chinesa-geopolitica.html  

Nenhum comentário: