Acordo Mercosul-União Europeia: liberalização em tempos de protecionismo
Acordo aprovado possui pontos diferentes daqueles negociados em 2019, refletindo mudanças nos contextos domésticos dos países dos dois blocos
Tuany Nascimento, Gustavo Botão, Leticia Lelis e Rebeca Borges/Jornal GGN
Após mais de 25 anos de negociações, o Acordo Mercosul-União Europeia teve suas negociações concluídas durante a 65ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados Associados, sendo um dos maiores acordos de comércio e investimento do mundo, abrangendo 718 milhões de pessoas e um PIB de 22 trilhões de dólares. O Acordo arrematado em 6 de dezembro é resultado de revisões nos termos estabelecidos no texto negociado em 2019 e visou diminuir assimetrias entre o Mercosul e a União Europeia. A obtenção de termos relativamente mais favoráveis para os países-membros do Mercosul foi possível em um contexto singular que envolve recrudescimento do protecionismo, ascensão da China, guerras, conflitos geoeconômicos e avanço da extrema-direita no mundo. A conclusão do acordo, no entanto, não agradou a todos, tendo na su a etapa de ratificação o próximo desafio a ser superado nessa longa história.
A 65ª Cúpula do Mercosul e o histórico das negociações para o Acordo
Entre os dias 5 e 6 de dezembro foi realizada a 65ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, em Montevidéu, no Uruguai. Com o encerramento da presidência pró-tempore do Uruguai, a Argentina assumiu a presidência do bloco pelos próximos seis meses. O evento também marcou a primeira participação da Bolívia como membro pleno do bloco. No entanto, foi o anúncio da conclusão das negociações do Acordo Mercosul-União Europeia que chamou a atenção de todos.
O anúncio veio após 25 anos de negociações, marcadas por idas e vindas. Considerando a longa duração das tratativas, é possível dividir o processo em quatro fases principais: de 1999 a 2004, de 2010 a 2012, de 2016 a 2020 e, finalmente, de 2023 a 2024, ano em que ocorreu a mais recente conclusão das negociações. Acompanhe a linha do tempo aqui.
Os novos termos do Acordo assinado
Durante o seu discurso na 65ª Cúpula do Mercosul, o presidente Lula afirmou que “o Acordo que finalizamos hoje é bem diferente daquele anunciado em 2019”. Isso porque, desde a sua posse, o presidente brasileiro passou a reivindicar que alguns termos do acordo concluído em 2019 fossem reabertos para negociação, por julgar as “condições herdadas” como “inaceitáveis” dada a grande assimetria entre as concessões feitas pelo Mercosul em relação àquelas cedidas pela UE. Os textos, renegociados entre os anos de 2023 e 2024, foram divulgados pelo governo brasileiro como o “Pacote de Brasília”. Assim, a retomada das negociações em 2023 permitiu a elaboração de novos textos nos temas de comércio e desenvolvimento sustentável, mecanismo de reequilíbrio de concessões e cooperação e revisão do Acordo. Também foram adaptados termos pactuados em 2019, em áreas estratégicas como compras governamentais, comércio automotivo, exportação de minerais críticos e direitos autorais. Por fim, também foram finalizadas negociações relacionadas a regras de indicações geográficas e de implementação do Acordo, as quais haviam ficado em aberto anteriormente.
Em relação ao Capítulo sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável, foi adicionado um novo anexo, no qual o Mercosul e a União Europeia concordaram em incluir compromissos de proteção ambiental e de promoção do trabalho decente. Dentre eles, estão elencadas a cooperação na implementação de acordos multilaterais, adoção de ações para a promoção de produtos sustentáveis no comércio birregional e de cadeias de valor sustentáveis para a transição energética. Ao longo do capítulo, é expressa a preocupação com a proteção de pequenos produtores, cooperativas, comunidades locais, populações indígenas e empoderamento feminino visando promover a p articipação feminina no comércio internacional. Além disso, a Comissão Europeia se comprometeu a utilizar os dados produzidos pelas autoridades do Mercosul na avaliação de compatibilidade das importações advindas do Mercosul com os padrões legislativos do bloco europeu.
O tema das compras governamentais foi um dos principais obstáculos durante as negociações, pois se trata de um instrumento crucial para a política industrial e desenvolvimento econômico, tendo sido considerado como condição essencial para a adesão do Brasil ao Acordo. A Cláusula sobre compras governamentais do Sistema Único de Saúde (SUS), que exclui as aquisições do SUS do Acordo, desempenha um papel importante na política de desenvolvimento do complexo industrial da saúde. Dessa forma, os europeus não terão acesso às compras de bens destinados ao SUS realizadas pelo governo brasileiro. Essa medida ganha ainda mais relevância no contexto pós-pandemia de Covid-19, em que o Brasil se tornou muito depe ndente de compras internacionais, principalmente daquelas advindas da China e da Índia.
Quanto ao setor automotivo, o prazo para a desgravação tarifária foi prolongado para veículos de nova tecnologia (30 anos), como, por exemplo, os eletrificados (18 anos) e os movidos a hidrogênio (25 anos). Além disso, o texto final estabelece a criação de um sistema de salvaguardas para o setor automotivo, para evitar um possível surto de importações da União Europeia. A ideia é proteger o setor interno estimulando a produção nacional. De maneira semelhante, no que se refere às exportações de minerais críticos, a possibilidade de limitar as exportações, caso seja considerado necessário, também foi uma exigência do Brasil.
Outro ponto importante diz respeito à criação de um Mecanismo de Reequilíbrio do Acordo, com o objetivo de garantir que as concessões comerciais negociadas não sejam prejudicadas por medidas unilaterais. Este aspecto é particularmente relevante ao se considerar que as negociações do acordo ocorreram simultaneamente à aprovação do Regulamento Anti-Desflorestamento (European Union Deforestation Regulation – EUDR), lei proposta pela Comissão Europeia que proíbe a importação de produtos relacionados ao desmatamento ou ao desrespeito aos direitos humanos em qualquer etapa da cadeia de valor a partir de 2025. Segundo o texto do Acordo, a participação da sociedade civil, sindicatos e organizações empresariais também será contemplada nos novos termos negociados. Essa participação ocorrerá por meio do processo de Revisão da Implementação do Acordo, no qual esses atores terão a oportunidade de avaliar periodicamente os seus impactos, podendo, assim, iniciar um processo de negociação para a proposição de emendas ao texto. No entanto, como veremos mais adiante, o Acordo é amplamente criticado por organizações sociais e sindicatos pelo caráter sigiloso das negociações, que não contaram com a participação social em momento algum nos últimos 25 anos.
Grupos beneficiados e prejudicados
Dentre os principais setores beneficiados pela conclusão do acordo está a indústria europeia, favorecendo países como Alemanha, Suécia, França e Espanha. Como destaque, a Alemanha, detentora do maior parque industrial do bloco, agora terá acesso facilitado ao mercado do bloco mercosulino e poderá escoar sua produção, diante de um possível cenário de aumento de tarifas nos Estados Unidos de Donald Trump (2025-2028), inclusive contra aliados, de crescimento do protecionismo em âmbito global e de crescente concorrência chinesa. Atualmente, a indústria alemã tem perdido espaços com a desaceleração econômica nos últimos anos em decorrência dos efeitos econômicos da pandemia sobre as cadeias de suprimento globais e da guerra na Ucr&ac irc;nia, que encareceu os preços de energia elétrica no país e diminuiu a competitividade de seus produtos, causando uma retração do PIB de sua economia com 0,3% em 2023 e previsão de 0,2% em 2024.
Do outro lado do Atlântico, o agronegócio do Mercosul, notadamente o brasileiro, será beneficiado pela redução nas tarifas de importação da UE e pelo aumento das cotas de exportação para o bloco europeu. De acordo com o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, o “acordo prevê mais liberdade comercial, por exemplo, zero tarifa para frutas, café e outros produtos brasileiros, além de cotas importantes para açúcar, carne de frango, carne bovina e etanol”. É esperado pelo governo brasileiro que as exportações de produtos agrícolas do país c resçam 6,7% nos próximos anos. Produtos com indicação geográfica, como os já reconhecidos queijo Canastra, a linguiça Maracaju e o café Alto Mogiana, terão sua proteção contra imitações resguardada pelo acordo.
A indústria brasileira saiu prejudicada pelos termos do texto negociado em 2019, apesar do apoio de grande parte da indústria ao acordo naquele momento. Já no acordo negociado em 2024, o setor encontra um cenário mais favorável em razão das propostas feitas pelo governo brasileiro nas negociações retomadas em 2023, que previam a preservação do uso do poder de compras governamentais para o fomento de políticas industriais. O setor automotivo também é beneficiado pelos novos termos do acordo, com o alargamento do prazo de eliminação tarifária para os automóveis produzidos no Mercosul e as salvaguardas previstas visando a proteção contra aumento de importações da Europa que causem prejuízos ao setor. O governo brasileiro acredita que o acordo com os europeus pode aumentar em 26,6% as exportações da indústria de transformação nos próximos anos.
O setor mais vocal contra o Acordo Mercosul-UE é o agronegócio europeu, em especial o francês, o italiano, o irlandês e o polonês, que produzem mercadorias menos competitivas que suas congêneres do Mercosul, como carnes bovina e de frango, milho, açúcar e etanol. Reflexos da resistência do setor são os constantes protestos de fazendeiros contra o acordo e o recente boicote da marca francesa Carrefour à carne de origem brasileira em seus supermercados na França.
Contexto internacional adverso
A conclusão definitiva do acordo se dá em um contexto internacional muito diferente daquele em que o texto de 2019 foi apresentado, em que a tônica era a negociação de mega-acordos comerciais como a Parceria Transpacífica, a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento e a Parceria Regional Econômica Abrangente.
A eleição de Donald Trump (R) para a presidência dos EUA e suas promessas de aumentar as tarifas de importação e de iniciar guerras comerciais acenderam o alerta de europeus e membros do Mercosul em relação ao recrudescimento do protecionismo no mundo. A guerra na Ucrânia e seus efeitos econômicos negativos, como o encarecimento dos preços de energia no continente europeu, também incentivou seus membros a procurar mercados para escoamento de seus produtos, agora menos competitivos em relação a produtos chineses, e para produção mais barata por suas multinacionais, em um possível processo de nearshoring. Além disso, o avanço da extrema-direita na Europa, com um discurso nacionalista, poderia fechar espaços para um acordo, enterrando de vez as negociações.
Apesar de o Acordo servir como um instrumento para escoar seus produtos e investimentos em um contexto conturbado, as resistências de alguns países-membros podem barrar a aprovação do texto. A aprovação depende, após passar pelo Parlamento e pelo Conselho Europeu, da ratificação do texto pelos parlamentos dos países-membros do bloco. Em caso de aprovação, o Acordo passa a vigorar. O Acordo pode ser barrado caso haja a rejeição ao texto nos parlamentos de quatro países que representem, no mínimo, 35% da população do bloco. Uma possível aliança entre França, Itália e Polônia para barrar o Acordo alcançaria o equivalente a 36,5% da população do bloco, bastando o convencimento de mais um país para atingir os critérios estabelecidos.
Reações da sociedade civil
Organizações da Sociedade Civil e movimentos sociais demonstraram descontentamento com a conclusão do Acordo. A crítica principal é a de que a negociação dos termos acordados não foi baseada num processo democrático, tendo sido centrada na alta burocracia do Estado à portas fechadas. Além disso, as críticas apontam que o Acordo fortalecerá a degradação ambiental, ameaça a vida de comunidades tradicionais e indígenas e acarretará em perda da soberania alimentar e dos direitos trabalhistas.
A Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS) e a Confederação Europeia de Sindicatos (ETUC), por exemplo, rechaçaram o Acordo divulgado pelos blocos. Em nota de repúdio, a CCSC afirmou que “as negociações já duram 25 anos e durante esse período os governos ignoraram os sindicatos e mantiveram essas negociações secretas e sem a participação dos trabalhadores e sem levar em conta a proposta dos sindicatos de adotar um Fórum Trabalhista para monitoramento do referido Acordo”. Ainda, denunciam que, nos termos atuais, “favorece apenas os setores exportadores de commodities, que são, inclusive, os que mais violam a natureza e o meio ambiente, o trabalho e os direitos humanos, além de colocar em risco os setores produtivos do Mercosul”, devido aos riscos de desindustrialização impostos à indústria nacional.< /p>
Do lado europeu, para a ETUC, que também teceu críticas ao caráter sigiloso das negociações, o Acordo é muito fraco quando trata sobre proteções trabalhistas e carece de cláusulas vinculantes. “O Acordo continua sem um mecanismo robusto que regule violações de direitos trabalhistas, inclusive por meio de sanções, o que é lamentável”. A ETUC ainda argumenta que o Acordo pode levar ao dumping social e à competição desleal, acarretando em piores condições de trabalho na União Europeia, principalmente aos 6 milhões de trabalhadores do setor agrícola.
A visão do Governo brasileiro
A visão oficial do Planalto sobre o acordo entre o Mercosul e a União Europeia é bastante positiva, destacando-o como um marco significativo nas relações comerciais e políticas entre os blocos. O governo brasileiro vê o acordo como uma oportunidade para fortalecer a economia nacional, aumentar as exportações e atrair investimentos, especialmente em setores como agricultura e indústria de transformação.
Além disso, o Planalto enfatiza que o acordo incorpora compromissos importantes com o desenvolvimento sustentável e a proteção ambiental, alinhando-se com os objetivos do Acordo de Paris. Durante a Cúpula do G20, no Rio de Janeiro, o ministro da Fazenda Fernando Haddad definiu o avanço nas negociações do Acordo como uma busca por uma “reglobalização sustentável do ponto de vista social, econômico, ambiental e geopolítico” O presidente Lula ressaltou que as negociações recentes permitiram ajustes favoráveis ao Brasil, preservando interesses em áreas estratégicas como compras governamentais e comércio automotivo, e promovendo uma maior integração das cadeias produtivas regionais.
No entanto, a possibilidade de reprimarização da economia brasileira, especialmente no contexto desse acordo, gera preocupações significativas. Esse fenômeno refere-se ao retorno a um modelo econômico baseado na exportação de produtos primários, como commodities agrícolas e minerais, em detrimento da industrialização e diversificação econômica. A reprimarização pode levar à dependência excessiva de setores com baixo valor agregado, tornando a economia vulnerável às flutuações dos preços internacionais e limitando o desenvolvimento tecnológico e industrial do país. Além disso, há receio de que o acordo possa intensificar o processo de desindustrialização, ao facilitar a entrada de produtos industrializados europeus no mercado brasileiro, potencialmente prejudic ando a competitividade da indústria nacional.
Um dos pontos positivos destacados pelo governo é o fortalecimento da agenda de economia agro “verde”. O acordo pode incentivar práticas agrícolas mais sustentáveis, promovendo a adoção de tecnologias e métodos que reduzam o impacto ambiental e aumentem a eficiência produtiva. Isso está alinhado com os compromissos do Brasil no Acordo de Paris e pode abrir novos mercados para produtos agropecuários brasileiros que atendam a padrões ambientais rigorosos.
Além disso, o governo brasileiro está desenvolvendo uma Nova Política Industrial que visa modernizar e diversificar a base industrial do país. Essa política busca incentivar a inovação, a adoção de novas tecnologias e a integração das cadeias produtivas, aumentando a competitividade da indústria nacional. A Nova Política Industrial pode ser crucial para mitigar os riscos de reprimarização, garantindo que o Brasil não dependa exclusivamente da exportação de commodities.
Por fim, é importante questionar se o acordo acirra a dependência do Brasil da exportação de produtos primários. Embora o governo veja o acordo como uma oportunidade para diversificar as exportações e atrair investimentos, há preocupações de que ele possa reforçar a dependência do país de setores de baixo valor agregado. A entrada facilitada de produtos industrializados europeus pode desafiar a competitividade da indústria brasileira, tornando essencial a implementação de políticas que promovam a inovação e agreguem maior valor às exportações brasileiras.
Leia: O Brasil não cabe no jardim da Europa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/04/mercosul-x-uniao-europeia.html
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