"Destino Manifesto": Marte no céu, expropriação na terra
A América Latina continua a ser concebida como região subordinada aos interesses dos Estados Unidos e fonte abundante de recursos naturais, ameaçados pelas ambições de crescimento chinês
Luciana Wietchikoski e Lívia Peres Milani/Le Monde Diplomatique
A rivalidade com a China é, talvez, um dos poucos consensos políticos entre o recém-empossado presidente dos Estados Unidos e seu antecessor, o que revela o apoio em comum à manutenção da hegemonia. Há diferenças apenas nas formas, na intensidade e no discurso, pois Donald Trump traz uma retórica permeada de bravatas e de xenofobia, prometendo uma política mais agressiva. Nesse contexto, embora anunciada como dispensável, a América Latina continua a ser concebida como região subordinada aos interesses da potência e fonte abundante de recursos naturais, ameaçados pelas ambições de crescimento chinês. Intensificam-se, assim, os incentivos ao extrativismo, modelo econômico profundamente violento que marca a história lati no-americana.
O extrativismo, como pontua Maristella Svampa[1], é uma expressão periférica do capitalismo, baseado na inserção internacional via exportação de recursos naturais. Trata-se de um modelo de acumulação baseado na expropriação da natureza e na concepção desta como fonte inesgotável de recursos. Suas origens remontam ao processo de conquista e colonização das Américas e sua consolidação definiu a inserção subordinada da região na economia internacional. Internamente, produziu sociedades marcadas pela desigualdade, com altos lucros paras as classes e regiões dominantes, enquanto outros territórios são destruídos e marginalizados. A América Latina é, assim, ciclicamente, vista c omo fonte de minérios, gás, petróleo e, em tempos de transição energética, lítio.
Estes recursos exportados contribuíram para a industrialização no Norte Global, primeiro da Europa e, depois dos Estados Unidos. Há mais de 200 anos, os Estados Unidos buscam expansão: inicialmente territorial e, posteriormente, de sua influência. A política de expansão, justificada como “Destino Manifesto”, promoveu as condições necessárias à transformação do país em potência global, com recurso ao genocídio interno e ao imperialismo externo. Essa história de expansão é contada de forma épica por Trump no discurso presidencial, que a atualiza de forma caricatural com a promessa de “fincar as estrelas e listras [da bandeira dos EUA] no planeta Marte”[2].
A expansão dos EUA passou pela transformação da América Latina em “zona de influência”, condição necessária para a ascensão hegemônica da potência. Esta influência foi sustentada ao longo do tempo por uma ampla burocracia voltada à proteção dos interesses da grande potência ao Norte, frequentemente garantida por meio de golpes de Estado, influência econômica e, nada raro, intervenções militares. Embora os Estados Unidos não utilizem a força militar direta na América Latina desde a invasão do Panamá em 1989, a região continuou sob o jugo dos interesses estadunidenses. Por exemplo, em nome da estabilidade regional, os EUA elaboraram e investiram mais de 10 bilhões de dólares no Plano Colômbia e, em meio à ascensão de governos de esquerda e progressistas na regi&atil de;o, reativaram a 4ª Frota Naval em 2008, durante o governo George W. Bush.
Além dessas ações, no Brasil, a Petrobras tornou-se alvo de atenção, especialmente após os desdobramentos da Operação Lava Jato, iniciada em 2014. Vazamentos, como os divulgados por Edward Snowden em 2013, indicaram que a Agência de Segurança Nacional dos EUA espionou a empresa, levantando suspeitas sobre o interesse em informações privilegiadas sobre o pré-sal, uma das maiores reservas de petróleo descobertas no século 21. Permanecia, assim, a visão da região como fonte de recursos e como um espaço de garantia da expropriação necessária à hegemonia da potência do Norte.
Da mesma forma, na Bolívia, o foco está no lítio, essencial para a produção de baterias de veículos elétricos e dispositivos eletrônicos – onde o extrativismo se renova em meio à transição energética. Durante o governo de Evo Morales, que durou de 2006 a 2019, a nacionalização dos recursos naturais dificultou a entrada de empresas estadunidenses no setor, como a Tesla. Contudo, após a renúncia de Morales em 2019, a empresa demonstrou maior interesse no lítio boliviano, evidenciando a continuidade das disputas econômicas na região. Ou seja, apesar da aparente baixa prioridade, a América Latina manteve-se como uma região de relevância econômica e estratégica.
Com a crescente presença da China na América Latina, especialmente por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota (lançada na região em 2017), a política da “América para os Americanos” teve de lidar com um ator externo. Assim, enquanto no século XIX a Doutrina Monroe priorizou a expulsão de potências europeias e, durante a Guerra Fria, impediu a presença dos soviéticos, o governo democrata de Barack Obama (2009-2017) deu o ponta pé inicial à definição do país asiático como uma ameaça à hegemonia regional do país.
Mas foi o ultradireitista Trump, em seu primeiro mandato (2017-2021), o responsável por definir a China como adversária econômica e geopolítica dos EUA, o que foi mantido pela administração de Joe Biden (2021-2025). O democrata aprofundou as estratégias do seu antecessor. Nesse sentido, vale a pena resgatarmos o postulado da comandante da unidade militar dedicada as Américas, o Comando Sul, durante o governo democrata. Para a comandante Laura Richardson,
Não há outro hemisfério tão intrinsecamente ligado à nossa Segurança Nacional como o Hemisfério Ocidental [América Latina], e a importância da região não pode ser subestimada. A proximidade, em primeiro lugar, mas também todos os recursos. Este hemisfério é muito rico em recursos naturais, elementos de terras raras. O clima – falamos sobre a Amazônia […] 60% do lítio mundial está nesta região. Ouro, cobre […] e, assim, o que temos tentado fazer é trabalhar com nossos países parceiros, bem como com nossos aliados. […] A parceria mútua é, de fato, a nossa defesa mais forte contra atividades malignas [chinesas] na região[3].
Há sobreposições, portanto, entre Trump, Obama e Biden na competição estratégica com a China e a decorrente percepção da América Latina como território em disputa, cujo “prêmio” são os recursos naturais. Há, contudo, diferenças em termos de intensidade. Entre elas, a energização do militarismo na política de fronteira. Na concepção de Trump, além de fonte de recursos, a América Latina é, também, origem perene de instabilidade. O atual presidente equipara os migrantes que chegam pela fronteira sul a criminosos e invasores. Promete enviar tropas para a fronteira, ao mesmo tempo em que – no mesmo trecho discursivo – designa os cartéis de droga como grupo terrorista.
Nesse cenário, a América Latina permanece uma prioridade histórica e estratégica para os Estados Unidos. Foi a primeira região de influência direta estadunidense e, muito provavelmente, será a última a perder essa centralidade. Com mais de dois séculos de presença econômica e geopolítica, os EUA buscam preservar a todo custo ativos fundamentais, como recursos naturais, rotas comerciais, mercados e fluxos de investimentos diretos, ao mesmo tempo em que promete uma militarização das relações com a região. A intensificação dessas ações sugere tempos desafiadores para a América Latina, especialmente em um contexto de disputas econômicas e políticas globais cada vez mais acirradas.
Luciana Wietchikoski é professora de Relações Internacionais da Unisinos e colunista da Interesse Nacional.
Lívia Peres Milani é pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes (Unit-SE), com financiamento Capes, processo 88887.964784/2024-00.
[1] SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências. Editora Elefante, 2020.
[2] Trump, D. The Inaugural Adress. The White House, 2025.
[3] CSIS. Looking South: A Conversation with GEN Laura Richardson on Security Challenges in Latin America. 4 agosto de 2023. https://www.csis.org/analysis/looking-south-conversation-gen-laura-richardson-security-challenges-latin-america
Leia também: Um “sim” à Rota da Seda e sinergias possíveis https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/11/cintura-e-rota-e-o-brasil.html
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