Ditadura bloqueou reversão da desigualdade no Brasil
Para especialistas, problema
socioeconômico tem natureza política
Gilberto Costa/Agência
Brasil
Em agosto de 1968, no quarto ano da ditadura militar (1964-1985), a revista Realidade (editora Abril) trazia a reportagem Eles estão com fome, do jornalista pernambucano Eurico Andrade (1939-2005). A matéria, que venceu o Prêmio Esso daquele ano, tratava da situação de subsistência dos trabalhadores rurais da Zona da Mata de seu estado, localizada no mapa da fome das Nações Unidas e onde viviam 1,5 milhão de brasileiros.
O
primeiro personagem do texto é um lavrador chamado Berto Miranda, 45 anos, pai
de cinco filhos. Era o começo do dia e ele estava se preparando para ir
trabalhar no canavial de um engenho da região, quando a esposa o interpela:
“Berto, tu vai levar essa farinha de cuia?” Ele responde devolvendo a
indagação: “E eu vou comer o que de almoço?” A mulher encerra o diálogo da
penúria: “É que só tinha esse restinho em casa, deixei para os meninos, o
que é que se faz?”
Segundo
o repórter Eurico Andrade, Berto Miranda deixou a cuia de farinha em casa. Sem
levar a sua enxada, caminhou para o mato. “Antes do meio-dia, os outros
lavradores trouxeram o cadáver: Berto se enforcara.”
No
ano daquela reportagem, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 9,8%. O
desempenho extraordinário abriu o chamado “milagre econômico brasileiro”, que
durou seis anos e teve uma taxa média de crescimento de 11,2% ao ano. O Brasil
da prosperidade econômica fenomenal era o mesmo do flagelo da indigência,
mas o progresso miraculoso não chegava a lugares como a Zona da Mata de
Pernambuco.
Antes
da tragédia de Berto Miranda e da opulência do PIB, o Brasil já era um país de
grandes desigualdades socioeconômicas. O período da ditadura militar, no
entanto, tornou superlativas essas disparidades.
Em
1960, os 5% dos brasileiros mais ricos concentravam 28,3% da renda. Em 1972, a
mesma proporção de ricos se apropriava de 39,8% da riqueza produzida no país.
Os dados são tirados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
do censo populacional no início dos anos 1960 e da Pesquisa Nacional de Amostra
Domiciliar de 1972.
Naquela período, o índice de Gini pulou de 0,497 para 0,622. O indicador, inventado pelo estatístico italiano Corrado Gini, vai de 0 a 1. Hipoteticamente, o índice em 0 corresponde a nenhuma desigualdade de renda entre as pessoas. O indicador em 1 significa que em tese toda riqueza está concentrada em uma única pessoa. Atualmente, o Gini nacional é 0,492 (renda individual), segundo a Carta de Conjuntura do quarto trimestre de 2023, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Política salarial
Para
o sociólogo e economista Marcelo Medeiros, técnico do Ipea e professor
visitante na Universidade Columbia (Estados Unidos), “é difícil dizer que a
desigualdade atual seja um legado da ditadura militar".
"Uma parte da desigualdade é herdada da
ditadura, mas existe uma parte da desigualdade que a precede. O que a ditadura
fez foi bloquear os mecanismos de reversão dessa desigualdade”, afirma Marcelo
Medeiros.
De
acordo com o especialista, o regime de arbitrariedade inaugurado em 1º de abril
de 1964 “bloqueou as negociações trabalhistas na época". "Bloqueou
todas as organizações sociais, criou mecanismos, por exemplo, para desvalorizar
o salário mínimo e não deixou os trabalhadores se queixarem disso pelos
mecanismos que tinham. Eles destruíram sindicatos. O que a ditadura fez foi
desbloquear as condições de reversão da desigualdade.”
O
diagnóstico de Medeiros é semelhante ao do economista Luiz Aranha Correa do
Lago, professor pleno da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ). Em artigo publicado no livro A Ordem do Progresso (editora
Elsevier, 2014), ele detalha: “Após 1964, quando ocorreram numerosas
intervenções nos sindicatos existentes e o movimento sindical perdeu suas
características reivindicatórias, as negociações coletivas com relação a
salários passaram a depender, de forma crescente, da aprovação governamental.”
O
resultado da desmobilização forçada dos trabalhadores foi a contenção das
remunerações. O poder aquisitivo do salário mínimo caiu em 42% no estado de São
Paulo, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (Dieese).
“No período de 1967-1973, a política salarial e a política de relações trabalhistas do governo tiveram como resultado uma contenção dos níveis de salário real [...] favorecendo a acumulação de capital via manutenção de elevada taxa de lucro e possibilitando uma política de remuneração seletiva para o pessoal de nível mais elevado”, acrescenta Correa do Lago.
O bolo cresceu
A acumulação do capital em alguns setores da economia era propósito perseguido pelo governo militar. Para o historiador Jorge Luiz Ferreira, professor da Universidade Federal Fluminense, “as empresas tiveram ganho de produtividade, mas não foi repassado aos trabalhadores".
"O bolo cresceu, como dizia o Delfim
[Netto - ministro da Fazenda de 1967 a 1974], mas ele não foi repartido, ou foi
repartido de maneira muito desigual”, destaca o historiador. Conforme Ferreira,
“o objetivo era industrializar o país, fazer o país crescer, mas não tinha uma
política de redistribuição de renda.”
O historiador lembra que “havia muitos
trabalhadores disponíveis nas cidades que vieram do campo.” A disponibilidade
de mão de obra depreciava os salários, e “os empresários demitiam e contratavam
outro com facilidade.” O êxodo rural gerou inchaço nas cidades, crescimento das
favelas, pauperização da população e deterioração do quadro social. “Aí começam
a surgir nas ruas crianças vendendo limão e crianças abandonadas.”
A
abundância de mão de obra nas cidades é reflexo da falta de reforma agrária
como previam as reformas de base pretendidas pelo ex-presidente
João Goulart, deposto em 1964. O cientista político Thiago Aparecido
Trindade, professor da Universidade de Brasília (UnB), assinala que a reforma
agrária é uma necessidade ainda presente no Brasil.
Ele
também aponta semelhanças entre o golpe militar contra Jango e o impeachment da
presidente Dilma Rousseff. “É muito parecido. Em ambos casos, havia tendência
de redução da desigualdade. No fundo, a gente percebe que as decisões que foram
tomadas, tanto num caso como no outro, foram elementos decisivos para
concentrar a riqueza.”
O
antropólogo Piero Leirner, professor da Universidade Federal de São Carlos e
especializado em militares, aponta que a concentração de riqueza seguiu após o
milagre brasileiro e o retorno da inflação no crepúsculo da ditadura. “A
Inflação, na verdade, foi um mecanismo de concentração de renda. O sistema
financeiro protegeu as pessoas mais ricas, que conseguiam, deixar o dinheiro em
aplicações, naquelas coisas tipo overnight e
tal.”
A
inflação foi uma herança deixada pela ditadura que só foi contornada
depois da redemocratização do país no Plano Real. Assim como o endividamento
externo. Ambos processos agravaram as desigualdades socioeconômicas.
“Contraímos dívida para beneficiar alguns grupos sociais, mas é uma dívida que
teve de ser paga por todos. O que foi o endividamento? Foi uma socialização da
concentração de renda”, descreve o sociólogo e economista Marcelo Medeiros.
Para
ele, passados quase 40 anos de redemocratização, a desigualdade segue como um
problema desafiando o Estado e a sociedade brasileira. “Enfrentar desigualdade
implica enfrentar diretamente o conflito distributivo, que significa que
algumas pessoas vão perder todas as posições que elas têm hoje. E essa perda de
posições, ela gera reações. É óbvio que tem reações de natureza política de
várias pessoas – não é só dos ultrarricos. Reações de vários grupos que
vão tentar manter suas posições. Antes de tudo, a desigualdade é um problema de
natureza política."
Perguntei ao DeepSeek quem escreveu o artigo "O mundo cabe numa organização de base". Gostei da resposta https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/minha-opiniao_30.html
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