É Findi - Rua do Imaginário
Lilia Gondim*
Desde muito pequena ela ouvira as pessoas comentarem que era uma criança com
muita imaginação. Verdade! Bastava um segundo de liberdade e sua mente começava
a viajar.
Assim, incorporara muitos personagens de gibis e revistinhas infantis
que tivera contato na infância. Das histórias do imaginário popular então, nem
se fala: o curupira, a mula sem cabeça, a comadre Fulôzinha, o João galafoice
foram meros fantoches a quem ela dera vida e criara situações e brincadeiras.
Ora sozinha, ora com outras as pessoas. Era divertido, emocionante, até!
Adolescente, adorava viajar na pele de estrelas de cinema e das suas
cantoras preferidas. Saltava sempre de uma para outra personagem, a seu bel
prazer, quando lhe interessava e fazia bem. Até se imaginou freira beneditina,
como as do colégio onde estudara. E vestida de branco, véu preto de tecido
fino, mãos brancas e delicadas cruzadas sob o escapulário, caminhou pelos
claustros proibidos e nunca visitados na vida real.
Mas dessas partidas imaginárias sempre voltava; na brincadeira havia
isso de bom: Poder colocar-se em qualquer parte do mundo, viajar no pensamento;
sempre voltara quando queria ou achava que devia. Isso era o que a mantinha
segura e transformava o retorno, sempre, numa esperança de novas viagens,
buscas e achados.
As estantes, em casa e nas casas dos amigos, foram fonte permanente de
material para sua mente viajante. E quando, mais tarde, adquiriu o gosto pelo
romance histórico, enriquecera suas idas e vindas através dos séculos, viajando
pelas diversas dinastias reais europeias e orientais. Adorara viajar pela idade
média e ser contraventora perante a inquisição. Aliás, essa era uma certeza que
guardava lá no fundo do coração: em vidas passadas fora uma feiticeira
condenada às fogueiras acesas nas ocasiões dos escabrosos autos de fé, sempre
promovidos, em nome de deus, pela igreja. Ninguém lhe tirava isso da cabeça:
fora uma bruxa no passado. Às vezes, pensava que ainda era, um pouco.
Então vieram os filhos e chegaram os netos. Sua mente criativa
continuava a trabalhar na invenção de brincadeiras e histórias intermináveis.
Inventava personagens que os faziam delirar e gritar pedindo “vai vovó, conta
mais”.
Um dia viajou de verdade. Outro mundo, outra cidade. Deliciou-se com a
poesia dos nomes das ruas: das peras, das gatas, da cozinha de sua alteza, dos
frades grilos, das amas do cardeal, do capado, das donzelas..., mas nunca
esperara encontrar-se, de repente, diante da rua do imaginário.
O que seria aquilo? Imaginário de quem? Invenções de outras pessoas?
Criação de personagens alheios à sua própria imaginação? Pensares desconhecidos
surgidos na cabeça de outros povos com diferentes culturas? Era demais ver
diante de si, de forma concreta, o que costumeiramente era fantasia, pedaços de
sonhos que, alinhavados, criavam uma história...
Buscou uma mesa, na esplanada de um bar próximo, ao mesmo tempo atraída
e embaraçada. De lá, podia enxergar o círculo amarelo pintado com letras pretas
que indicava o nome daquela rua. Pediu um café e perdeu-se a imaginar se a percorria
ou não entraria na rua? Sumia dali sem verificar as possibilidades contidas
naquele lugar? A vontade de entrar era grande, mas continha certo risco: se
passeasse no imaginário dos outros, tudo aconteceria à sua revelia.
Descontroladamente! Poderia não ser capaz de determinar a volta, o
bendito e sempre certo retorno à vida real.
Ponderou as alternativas: entrar seria visitar o real imaginário
concretizado naquela rua; não entrar seria inimaginável para alguém como ela!
As pessoas sempre sabem que de uma viagem se volta ou não, mas não deixam de
viajar por isso! Sempre há o risco, mas sempre se vai! Hesitou um pouco
pensando nos netos que talvez nunca mais ouvissem suas histórias...
Pagou o café, levantou-se, inibiu com a mão uma lágrima que estava a ponto
de saltar. Cortou um súbito sentimento de medo e entrou na rua do imaginário.
[Ilustração:
*Lília Gondim, é economista, funcionária pública estadual aposentada, escreve contos, crônicas e poemas.

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