16 agosto 2025

Mudanças na base da sociedade

Quando novos personagens entram em cena
Delana Corazza*/Tricontinental Brasil    

Escuta o homem que nasce das lágrimas
Do suor, do sangue e do pranto,
Escuta esse pranto
(Que lindo esse povo
!)
Que vem a galope com voz de trovão
Pois ele se apega nas armas
Quando se cansa das páginas
Do livro da oração. 

Sérgio Vaz
 

No final da década de 1980, o sociólogo Eder Sader relatou as mudanças nas relações à organização da classe trabalhadora a partir de um estudo empírico nos territórios periféricos da cidade de São Paulo e na Região do ABC paulista. A ideia, defendida no livro  Quando novos personagens entraram em cena  (SADER, 1988) e que virou um clássico para compreendermos as transformações políticas, sociais e econômicas no país a partir do cotidiano da classe, era de que o processo de redemocratização no Brasil, condicionado às derrotas sofridas com o advento da Ditadura empresarial civil militar e as crises nos países socialistas, tinha transformado o antigo sujeito político almejado para as transformações Quem seria esse novo sujeito? Os partidos de esquerda são a ideia do operário clássico que fariam a revolução davam lugar às lutas por direitos a partir do chão do trabalhador, como as reivindicações por direitos trabalhistas por meio dos sindicatos, e a luta pela saúde, educação e moradia que acontecia dentro dos bairros periféricos. Ainda que passamos por um momento de difícil rearticulação por conta da memória recente dos anos mais difíceis de um modelo que literalmente sangrou nossos militantes, foi um período de ascensão da luta de massas e de vitórias para uma classe trabalhadora. A forma que essa ascensão se concretizou não foi prevista pelas organizações clássicas da esquerda; elas de fato ocorreram de forma espontânea a partir das necessidades reais do povo, como o “direito de reivindicar direitos” (SADER, 1988, p. 26).

Os partidos e organizações clássicos tiveram que, junto com Lênin, se apropriaram de Paulo Freire para criar uma ponte entre as teorias marxistas e revolucionárias e as novas formas de organização a partir da realidade mais ordinária dos trabalhadores. Era necessário se organizar para pequenas vitórias nos territórios antes da luta por uma nova sociedade livre de exploração. Nesse contexto, três instituições abriram espaços para novas elaborações de organização do povo e tiveram que se reinventar a partir de dinâmicas que já estavam em curso:

Da Igreja Católica, sofrendo a perda de influência junto ao povo, surgem as comunidades de base. Dos grupos de esquerda desarticulados por uma política de derrota, surge uma busca de novas formas de integração com os trabalhadores. Da estrutura sindical esvaziada por falta de função, surge um novo sindicalismo. (SADER, 1988, p.144)

A igreja, o território e o trabalho. A questão colocada é: por que e como esses espaços hegemonizados naquele momento histórico pelo campo popular tem sido hoje ocupado pelo viés mais conservador e autoritário da direita? Por que é que as promessas do campo reacionário se tornaram audíveis para a nossa aula?

A década seguinte foi marcada pelo avanço do neoliberalismo e pela reestruturação do mundo do trabalho, que teve consequências políticas, econômicas e sociais devastadoras para uma classe trabalhadora, principalmente a mais empobrecida. A precarização do trabalho se aprofundou, assim como a precarização das moradias populares. Consolidam-se os aglomerados subnormais como forma de possibilidade de moradia para os mais pobres. No final da década,  mais de 6 milhões  de pessoas moravam em favelas (ou similares). O  planeta favela , estudado pelo historiador marxista Mike Davis (2006), é consequência de um projeto, dado que se tornou um problema estrutural no Brasil a partir do enfraquecimento do Estado no que diz respeito às garantias de direitos, em paralelo a uma ação assassinato desse mesmo Estado contra os moradores das periferias. As favelas foram palco de ondas de violência e criminalização da população preta e pobre, culpabilizadas pela própria situação de vulnerabilidade sofrida, dificultando os processos de luta e organização da classe vívida no período anterior.

Mães trabalhadoras que migraram para as grandes cidades passaram a viver uma insegurança não só econômica, mas policial. O comum daquela época são orientações do tipo: hora para sair, hora para chegar, estar bem vestido com “roupa de trabalhador”, estar com os documentos em mãos, dentre tantas outras que serão absorvidas a partir da experiência concreta de medo vivida pelos moradores das favelas.

O relato de uma moradora do extremo sul da cidade de São Paulo sintetizada como mudanças sofridas:

A pessoa tinha um terreno grande, ia vendendo pedaço, foi aumentando e de repente não tinha nem lugar para andar. Não ficou muito espaço para construir. Com o passar dos anos foi ficando violento, foi aumentando o número de família… perdi meu filho de 18 anos que foi assassinado pela polícia. Até você se explicar, vai achar que você faz parte do crime também, tem que estar com o documento. Só porque você mora na favela eles acham que é bandido. 4h da manhã tá subindo um trabalhador, eles acham que é do crime, até você explicar que é morador já tomou uns tapas. Muitos saem 4h da manhã para trabalhar, tanto homem quanto mulher. (Entrevista cedida à autora, 2013)

A professora e pesquisadora Tiaraju D'Andrea vai olhar para esses territórios já nos anos 2010 buscando compreender esses novos assuntos. Além do crime e da violência vívida no cotidiano dos trabalhadores mais empobrecidos, a classe vai redefinir sua identidade a partir de novos elementos. Vale trazer o trecho de uma entrevista realizada pelo autor para compreendermos algumas mudanças (D'ANDREA, 2013, p.44):

(…) A gente lá pelos 1980 não falava de periferia. A gente falava muito povo, falava muito trabalhador e classe trabalhadora. A gente sabia que a pobreza era por causa dos patrões, por causa dos ricos, mas a gente não falava periferia. O que fez a diferença pra gente eram os cursos de formação. A gente fazia muito curso, isso ajudava no entendimento de como a sociedade funcionava. Isso não tem mais hoje. A gente se sentia muito forte porque estava sempre unido. Sentimos que tínhamos força. E era tudo na luta, tinha uma pureza, ninguém ganhava pra militar. Mas a gente se identificava enquanto povo, enquanto trabalhador. Não tinha uma coisa de ficar falando de favela o tempo todo, e nem periferia (Dalva da Silva, entrevista concedida ao autor, 2012).

Analisando a complexidade dessas realidades, surge um novo sujeito que identidade se reorganiza a partir de seu territorial – como  sujeito periférico  – que vive a precariedade do trabalho, que se reconhece a partir do recorte racial e que busca a partir de diversos instrumentos, dentre eles a arte periférica, os saraus, as ocupações coletivas nos shoppings, dentre tantas, reconfigurar existência:“Assumir-se enquanto periférico foi uma nova forma como tal.” (D’ANDREA, p. 273, 2013). Esses assuntos estão em disputa. Não foi só a arte e a resistência racial que emergiram na reorganização desses territórios. O crime organizado e as igrejas evangélicas, principalmente neopentecostais com visões conservadoras e muitas vezes fundamentalistas, absorveram e reorganizaram a classe disputando esses sujeitos. O sujeito periférico, o favelado, o preto, dividem espaço (ou mesmo juntos os espaços) com o irmão, seja do crime ou da igreja, que não raro assume um papel de protagonista em seus bairros.

Para o economista Marcio Pochmann (2021), essa reorganização e mudança de identidade de classe está vinculada principalmente ao processo de acelerada desindustrialização e avanço precoce para a sociedade de serviços. As mudanças de uma nova fase do capitalismo neoliberal redefiniram o mundo do trabalho e esfriou as lutas coletivas. As últimas décadas foram marcadas pelo avanço da precarização, em que o trabalhador, sem necessidade de qualificação, ocupou os novos postos de trabalho formais com baixíssimos avanços, tendo que recorrer muitas vezes à informalidade para garantir sua sobrevivência. A financeirização, característica fundamental da nova era, também contribuiu para desorganizar os trabalhadores ao estimular a terceirização, dando espaço para novas contratações de trabalhos mais rotativos a partir de metas muitas vezes inalcançáveis em que se justificam demissões, e um espírito de competitividade e individualização encerrando a solidariedade coletiva (BRAGA, 2012). Assim, se antes o trabalhador da era fordista se especializava e passava anos em uma mesma empresa, possibilitando processos de organização e lutas coletivas por direitos (ao estar vinculados aos sindicatos) e avançava para uma consciência a partir de sua identidade trabalhadora, tendo nítido contra quem eram suas reivindicações, hoje, com o processo de desindustrialização, esse trabalhador ou passa por diversos, sem criar vínculos ou luta, ou se precariza ainda mais, trabalhando para empresas de “terceirizados” ou indo para a informalidade trabalhando “por conta pŕopria”.

O trabalhador que vai para a informalidade por necessidades diversas e é capturado pela possibilidade de ser o próprio patrão – ou no termo mais atual “empreendedor” – vive todas as mazelas da precarização, mas está embebido na ideia de que a partir de seu esforço individual será possível conquistar uma vida digna e ganhar mais do que se submetendo às humilhações e cobranças do patrão. Para ocupar as cargas de empreendedor – como por exemplo ocupações plataformizadas -, esse novo trabalhador não precisa mais de uma profissão, assim como os que passam a ocupar os empregos formais no mundo dos serviços e do comércio, com cargas baixas e insuficientes. O trabalhador vai se adequar, vai migrar, vai “se esforçar” e assim os direitos vão sendo retirados sem grandes comoções. As consequências são diversas: trabalhadores com a saúde mental absolutamente comprometidos ao não encontrarem laços de solidariedade nos espaços em que passam a maior parte de sua jornada diária; lesões físicas pelo excesso de trabalho (ANTUNES, 2008); jovens sem estímulo para o estudo ou mesmo para buscar uma nova profissão a partir de sonhos e interesses pessoais. Estudar para quê? A evasão escolar ainda é um monstruoso a ser combatido:  cerca de 20% dos jovens de 14 a 29 anos não completaram algumas das etapas da educação básica; destes, 70% são pretos ou pardos.

Os dados assustam. Segundo o IBGE, em 2023 apenas  8,4% dos trabalhadores eram sindicalizados , o índice mais baixo dos últimos 10 anos. Se a carteira de trabalho era a garantia dos direitos mínimos e necessários para o trabalhador, além de instrumento de luta e reivindicações, hoje  quase 60% dos trabalhadores preferem trabalhar por conta própria a ter um emprego formal , segundo o DataFolha. A ilusão de poder arcar sozinha com as extenuantes jornadas de trabalho para ganhar mais, além dos imprevistos como doenças e acidentes e a necessidade de descanso, moldaram este novo trabalhador, que na radicalização do individualismo ao qual são submetidos não tem mais horizontes. Lutar para quê? Contra quem? E ainda, com quem?

A reorganização do mundo do trabalho obviamente tem consequências que extrapolam o campo econômico, mas não deixa de impressionar a força política que essas mudanças geraram. O capital político foi assustadoramente absorvido pela extrema direita, que segue cooptando parte da classe para o discurso do empreendedorismo e da meritocracia, massacrando os trabalhadores que continuam frustrados por não se enriquecerem pelo próprio esforço. Segundo o SEBRAE,  quase 15 milhões de trabalhadores são Microempreendedores Individuais  e 60% fecharão suas empresas em menos de 5 anos. O discurso de empreender como saída aos desafios pelos impostos pelo neoliberalismo rompeu as barreiras da extrema direita e encontrou ecos inclusivos no campo progressista, disputando o discurso da autonomia a partir da questão racial e de gênero. Os territórios que se organizaram por meio das necessidades cotidianas do povo viram suas ruas agitadas pelo crime organizado e pelo Estado que segue aniquilando os filhos das mães pretas e trabalhadoras. Em 2023,  71,7% dos mortos por policiais eram crianças, adolescentes ou jovens de até 29 anos, sendo que destes, 82% eram pretos . Foi também a extrema direita que ocupou as lojas populares, tornando a Bíblia, antes instrumento de luta e reivindicações, em um instrumento de opressão, principalmente contra o corpo das mulheres e as diversidades sexuais. A extrema direita cristã atualizou a Teologia da Libertação para a Teologia da Prosperidade nos territórios; se antes as comunidades eclesiais de base buscavam a construção de uma felicidade coletiva a partir de um Jesus vivo e histórico contra as injustiças e na luta por direitos, hoje as igrejas fundamentalistas buscam, nos mesmos espaços, a felicidade a partir da prosperidade do indivíduo em diálogo com os discursos de empreendedorismo e fracasso individual.

A realidade exige novos esforços para compreender a classe trabalhadora e novas estratégias de luta. A comparação entre os períodos revela paradoxos. Nos anos 1980 os “novos personagens” de Sader lutavam por direitos em um contexto de expansão das expectativas democráticas, hoje, os “novíssimos personagens” enfrentam o desmonte desses direitos em um cenário de austeridade. Se antes da periferia era território de militância orgânica, hoje sua organização convive com a ausência de um projeto progressista de país e a individualização imposta pelo neoliberalismo.

No entanto, esses mesmos “novíssimos personagens” trazem consigo a história da classe trabalhadora, e essa história precisa ser atualizada e resgatada. É fundamental não cairmos na falsa ideia das ausências e vazios que recai sobre as periferias e territórios da classe. Apesar de vivermos um momento de fragmentação, cabe olharmos para os territórios e caminhar a partir dos focos de resistências que já existem, assim como elucidar as contradições entre a realidade e as promessas falaciosas da extrema direita. Dentro do ônibus, às 19h, voltando para casa, dois jovens trabalhadores sentados olhando o celular comentam sobre a campanha contra a escala 6×1; Ambas afirmam que são a favor do fim da escala, mas o essencial é que há necessidades concretas dos trabalhadores que são passíveis de luta coletiva, ao dialogarem diretamente com as demandas da vida cotidiana. Se a luta para a redução da jornada parece algo do século passado para o trabalhador  uberizado,  que quer estender cada vez mais essa jornada para ganhar mais, há o trabalhador que compreende que precisa descansar um fim de semana inteiro, e a demanda por descanso também pode ser uma bandeira no diálogo com esse trabalhador  uberizado  que não tem nenhum direito. Parece inegável que todos temos o direito de descansar. Se o discurso de “nós somos o país que mais paga imposto no mundo” é repetido por todos, é necessário contrapor essa afirmação mostrando que são os pobres que pagam mais impostos e elucidar quem é o nosso verdadeiro inimigo.

É preciso ganhar ruas com propostas concretas que resolvam os problemas da classe trabalhadora, construam campanhas que enfrentem esses novos desafios, como o   Plebiscito Popular   – que busca a partir de diversos movimentos ouvir o que o povo pensa sobre a pŕopria realidade – e também encontrar esses processos a oportunidade de atuar diretamente com a classe em seus espaços de moradia, de trabalho e de fé. Ouvir as demandas para criarmos juntos, de forma criativa, como as periferias demonstram a partir da arte e da sobrevivência novas formas de mobilização e formação política. É possível construir junto ao povo um sonho anticapitalista a partir da luta por direitos, condicionada a questões de raça e gênero; temos nossa própria história para entender isso. É fundamental resgatar espaços de formação e luta recuperando a vivência coletiva em uma perspectiva transformadora, assumindo o horizonte popular e socialista.

Referências

ANTUNES, Ricardo. O privilégio do serviço: o novo proletariado de serviços na era digital /. Ricardo Antunes. 1.ed. – São Paulo: Boitempo, 2018

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo,. 2012

D'ANDREA, Tiaraju.. A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. Tese (doutorado em sociologia). São Paulo, Universidade de São Paulo, 2013

DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Editorial Boitempo, 2006

POCHMANN, Márcio. O Neocolonialismo à Espreita: Mudanças Estruturais na Sociedade Brasileira. São Paulo: Sesc, 2021

SADER, Éder. Quando novos personagens entraram em casa: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

*  Delana Corazza é cientista social, mestre em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), doutoranda em Geografia pela Unesp e coordenadora de pesquisa do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

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O mundo cabe numa Organização de Base  https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/05/minha-opiniao_18.html 

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