30 agosto 2025

Humorismo literário

Luis Fernando Verissimo, o gigolô das palavras
Escritor formava, com Millôr e Lessa, o trio de ouro do humorismo literário brasileiro. Agora, sem dúvida, teremos de recomeçar do zero
Sérgio Augusto/O Estado de São Paulo  

Ele próprio se definia assim. Porque vivia à custa delas, como um “cáften profissional”, exigindo-lhes total submissão. A gramática, recomendava, “precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.” Verissimo nunca perdeu o mando, nunca guardou o chicote. Formava, com Millôr Fernandes e Ivan Lessa, o trio de ouro do humorismo literário brasileiro. Agora, sem dúvida, teremos de recomeçar do zero. 

Não por acaso Millôr e Ivan figuravam em seu panteão de heróis, ao lado de dois mestres da crônica carioca, Paulo Mendes Campos e Antônio Maria, e dos escritores Joseph Conrad e Evelyn Waugh. Ainda caberia aí meia dúzia de humoristas britânicos e americanos, que ele descobriu na adolescência, quando morou nos Estados Unidos. E ao grupo poderíamos acrescentar o igualmente versátil Woody Allen, com cujo humor judaico (intrinsecamente cético e autodepreciativo) ele muito se identificava. Verissimo nunca dirigiu um filme, mas em compensação Allen não sabe desenhar. No resto, empatavam. A única diferença é que Allen toca clarinete e Verissimo, saxofone.

Verissimo não se considerava humorista

Não se considerava humorista. Sentia-se, mais que um intruso, “um impostor” na categoria. Nada engraçado pessoalmente, tímido, taciturno, encarava o seu humor como um triunfo da técnica sobre a vocação. “Minha graça não é nada espontânea”, dizia, mas ninguém acreditava. A impressão geral era de que ele sentava diante do computador e, como num passe de mágica, as palavras iam fluindo naturalmente. Tinha “muita dificuldade” para escrever e também por isso gostava mais de desenhar. Havia dias em que ficava olhando o computador, espremia a cabeça, e nada, confessou-me nos anos 1980. Quando os raios cortavam os céus e as musas atendiam ao seu apelo, sai debaixo que lá vinha um texto de dar água na boca, de transformar todos nós em Salieris da palavra escrita. 

O gaúcho ‘desnaturado’ 

Gaúcho por acaso - ou desnaturado, como preferia se qualificar-, nunca vestiu bombacha, não tomava chimarrão, jamais montou um cavalo. Seu pampa começava e terminava em Porto Alegre. Urbanoide convicto, cosmopolita irredutível, apaixonado por Paris e Nova York, até nas restrições que fazia à vida no campo emulava o cineasta americano: “Lá também tem mosquito, espinho, bosta, cobra, coisas podres, falta de conforto e água corrente e raramente se consegue um bom molho bordalesa.”

Apesar de, já no nome, superlativo, passou os primeiros 30 anos sem se acertar na vida. Mal nos estudos, chegaram a duvidar de sua inteligência - e sobretudo de seu futuro. Tentou de tudo; até secretariou um gângster americano, que, por ser quem era, deu-lhe um tremendo cano. Teve uma fase de playboy, para imenso desgosto do pai, que nem sob hipnose seria capaz de prever o que seu filho um dia faria pela glória dos Veríssimo. 

A família acalmou-se quando ele entrou para a Editora Globo, a mais famosa do Rio Grande do Sul, como tradutor e planejador gráfico, mas custou a acreditar que pudesse dar certo na redação do Zero Hora. Sua carreira no diário portoalegrense foi meteórica: de copydesk a editor (de variedades e internacional), de editor a cronista. Como publicitário, ganhou mais dinheiro e até um prêmio de “melhor do ano”, em 1975, dividido com um artista gráfico. Dois anos antes, publicara seu primeiro livro de crônicas (O Popular), marco inaugural de uma das carreiras mais bem sucedidas da história editorial brasileira.

Seu primeiro romance, gênero de que fugiu o quanto pôde, nasceu de uma encomenda da agência de publicidade MPM. A agência queria um presente especial para seus clientes, no Natal de 1987, e Verissimo produziu em dois meses O Jardim do Diabo, “uma obra-prima da literatura policial de quinta categoria”, na avaliação do autor. Posto à venda, meses depois, conquistou em pouco tempo mais 20 mil leitores. Pândega metaficcional, narrada e protagonizada por um escritor que opera em escala industrial (um livro por mês) e acende incenso no altar de Conrad, O Jardim do Diabo é uma paródia da ficção noir americana, com alguns personagens à clef, entre os quais se destaca um traficante colombiano chamado García Márquez. Sua abertura é uma gozação no Herman Melville de Moby-Dick.

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O gigolô das palavras https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/verissimo-humorismo-literario.html

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