BRASIL:
DA HERANÇA COLONIAL À TRANSFORMAÇÃO NECESSÁRIA
Cláudio
Carraly*
A história não se repete, mas rima" - dizia Mark Twain. No Brasil, ela ecoa por séculos. Quando um jovem negro tem 2,5 vezes mais chances de ser assassinado que um jovem branco, quando 1% dos proprietários rurais detém metade das terras cultiváveis, quando 33 milhões passam fome num dos maiores exportadores de alimentos do mundo, não são coincidências. São cicatrizes vivas de escolhas históricas que se perpetuam porque alguém se beneficia delas.
Em 1888, a abolição
da escravidão fez os ex-proprietários perderem patrimônio equivalente a duas vezes
o PIB da época. Essa elite não "aceitou" a mudança, se reorganizou. A
Lei de Terras de 1850 garantira que só quem tinha dinheiro comprasse terras.
Imigrantes europeus vieram com subsídios estatais. Aos ex-escravizados sobrou a
"liberdade" de morrer de fome ou aceitar trabalhos insalubres e com
remuneração degradante. Não foi acaso. Foi projeto.
Mas nossa história
tem outro lado: a resistência. Palmares durou quase um século como território
livre do tamanho da França medieval, com agricultura diversificada e democracia
participativa. O Brasil colonial precisou de 18 expedições militares para
destruir uma sociedade que provava ser possível viver diferente.
A Revolta dos Malês
(1835) não foi um motim desesperado, mas uma insurreição organizada por décadas,
com líderes letrados que tinham um projeto político claro: abolir a escravidão
e criar uma sociedade multirracial. Canudos, com 35 mil habitantes, organizou
produção coletiva, distribuição de alimentos e acolhimento de ex-escravizados.
Foi destruída numa guerra que matou mais gente que a Guerra do Paraguai.
As elites brasileiras
desenvolveram técnica refinada: promover mudanças institucionais que
neutralizam pressões populares sem alterar estruturas de poder. A Independência
de 1822 manteve o imperador português, a escravidão, o latifúndio e a economia
colonial intactos. Mas a Confederação do Equador (1824) propunha república
democrática, abolição e reforma agrária, foi esmagada porque representava
independência real.
A Proclamação da
República seguiu o padrão: golpe militar impediu república democrática popular
e instalou ditadura oligárquica que excluiu 95% da população do voto.
Getúlio Vargas
personifica a genialidade perversa desse modelo: industrializou, criou
legislação trabalhista, fundou universidades. Simultaneamente, reprimiu
movimentos operários autônomos e manteve a estrutura agrária intocada.
Entre 1945-1964,
movimentos populares ameaçaram pela primeira vez alterar correlações
fundamentais de poder. João Goulart propôs reformas moderadas: agrária, urbana,
universitária. O golpe civil-militar de 1964, apoiado pelos EUA, interrompeu
violentamente a única experiência brasileira de democracia com participação
popular efetiva.
A redemocratização
pós-1985 seguiu o padrão: a Constituição de 1988, apesar de conquistas sociais,
manteve concentração fundiária, sistema financeiro oligopolizado e inserção
subordinada na economia mundial. Anistia recíproca garantiu que torturadores
nunca fossem julgados.
Entre 2003 e 2016,
políticas sociais alteraram significativamente as condições de vida das classes
populares: 36 milhões saíram da pobreza, o salário mínimo teve aumento real de
70%, foram criadas 18 universidades federais, e as cotas alteraram o perfil das
universidades públicas.
Mas estruturas
fundamentais não mudaram: reforma agrária foi irrisória, sistema tributário
continuou regressivo, democratização da mídia não foi enfrentada e a reforma
política beneficiou apenas as elites.
Os governos petistas
enfrentaram dilema estrutural: avançar significaria confrontar classes
dominantes. A opção foi aliança com frações do capital nacional em troca de
concessões sociais. Funcionou durante o crescimento econômico. Na crise, a
conciliação se tornou insustentável. Daí veio o impeachment da presidenta Dilma
em 2016, resolvendo o impasse em favor do capital.
O Brasil é
simultaneamente a 9ª economia mundial e um dos países mais desiguais. Essa
contradição não é paradoxo, é funcionamento normal de sistema que produz
riqueza concentrando-a brutalmente.
O sistema tributário
transfere renda dos pobres para ricos: 50% da arrecadação vem de impostos sobre
consumo que incidem igualmente sobre todos. Não existe imposto sobre grandes
fortunas. Lucros e dividendos não são tributados. O Estado arrecada dos pobres
para financiar serviços que atendem principalmente os ricos.
Milhões de
brasileiros organizam experiências concretas de solidariedade e economia
alternativa. O MST não apenas luta por reforma agrária, é laboratório de
inovações que abrange educação popular, agricultura agroecológica, comunicação
alternativa. Nos assentamentos vivem 1 milhão de famílias que provam ser
possível produzir alimentos saudáveis preservando o meio ambiente.
Nas periferias
urbanas fervilha revolução cultural, o hip hop combina expressão artística com
consciência política. Saraus km transformam botecos em espaços de literatura e
organização comunitária. Mães de vítimas da violência policial denunciam
genocídio da juventude negra e propõem segurança baseada em direitos humanos.
A economia solidária
envolve 1,4 milhão de trabalhadores experimentando autogestão e solidariedade,
empresas recuperadas provam que é possível produzir sem patrões. Bancos
comunitários levam crédito onde o sistema bancário não chega. Cooperativas de
agricultura familiar abastecem 30% da merenda escolar com alimentos frescos e
sem agrotóxicos.
O Brasil tem
condições para uma sociedade justa e soberana. Faltam decisões políticas que
priorizem necessidades populares sobre lucros do capital financeiro. Reformas
estruturais necessárias: redistribuir terras improdutivas, criar impostos sobre
grandes fortunas, democratizar comunicação, estabelecer financiamento público
exclusivo de campanhas eleitorais.
As contradições
brasileiras não são eternas, o país que concentra renda como poucos tem constituição
avançada em direitos sociais. A nação que elegeu ex-operário presidente mantém
oligarquias seculares. A sociedade que criou o SUS universal mantém diferenças
educacionais abissais.
O Brasil do futuro
existe em germe nas comunidades organizadas, assentamentos agroecológicos,
cooperativas democráticas, coletivos culturais engajados. Não precisamos mais
de uma revolução armada. Precisamos de uma revolução democrática que combine
reformas estruturais, participação social massiva, organização de base, educação
política, comunicação popular e economia solidária. Cada voto, cada ação decide
qual futuro construímos, a história não acabou. Apenas esperou que a base da
sociedade se empoderasse para poder escrever o próximo capítulo. Dessa vez,
serão os degredados, os da periferia, os excluídos que segurarão a caneta da
história, e dela surgirá um país mais justo, fraterno e solidário.
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*Cláudio Carraly, advogado, ex-secretário
executivo de Direitos Humanos de Pernambuco
Veja: Capital financeiro & desenvolvimento nacional, umi debate https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/capital-financeiro-desenvolvimento.html
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