Bets
- criamos um problema que não existia: a legalização
das apostas esportivas no Brasil
Cláudio
Carraly
Em cinco anos, o Brasil passou de um país em que apostas esportivas eram praticamente inexistentes para uma nação onde milhões de brasileiros apostam regularmente online. Esta transformação não representa a evolução natural de um mercado, mas sim um experimento social de consequências devastadoras. Criamos um problema nacional que simplesmente não existia.
A Inexistência do Problema Original
Até 2018, a Loteria Esportiva da Caixa
Econômica Federal tinha arrecadação modesta, atendendo a uma demanda limitada
de apostas esportivas no país. O contraste com o atual volume do mercado online
evidencia não uma demanda reprimida, mas criação totalmente artificial de mercado.
Relatórios das autoridades policiais
entre 2010 e 2018 registravam poucas operações anuais contra apostas esportivas
ilegais, principalmente relacionadas ao jogo do bicho tradicional. Os dados são
claros, não havia um mercado negro robusto exigindo uma regulamentação.
O contraste com outros países é
revelador. Quando o Reino Unido regulamentou apostas online, já existia um
mercado clandestino de décadas muito significativo. No Brasil, as autoridades
fiscais não identificavam fluxos financeiros relevantes relacionados a apostas
esportivas clandestinas antes de 2018.
A Máquina de Criar Viciados
O investimento publicitário em apostas
esportivas explodiu após a regulamentação, saltando de praticamente zero em
2018 para bilhões em poucos anos. Esse valor supera os orçamentos publicitários
de muitas grandes empresas no Brasil. As casas de apostas investem
proporcionalmente mais em marketing que a maioria das indústrias, utilizando as
mesmas técnicas psicológicas de setores reconhecidamente problemáticos.
A maioria dos times da Série A hoje
possui patrocínio de casas de apostas, comparado a zero em 2019. Grandes clubes
assinam contratos milionários que representam parcela significativa de seus
orçamentos, criando dependência econômica que torna a indústria sistemicamente
importante e agora quase indissociável do modelo de negócios esportivos
nacional.
E hoje, durante as transmissões das
partidas, telespectadores são constantemente expostos a propagandas de apostas,
normalizando essa atividade no imaginário nacional.
Os Custos Humanos e Sociais
Dados do Ministério da Saúde mostram
aumento de 340% nas internações relacionadas a "transtornos devido ao
jogo" entre 2019 e 2023. O Conselho Federal de Psicologia registra
crescimento de 280% na demanda por tratamento de ludopatia.
Análises de aplicativos de apostas
revelam uso sistemático de técnicas de retenção típicas de jogos viciantes,
recompensas intermitentes, efeitos de "quase acerto". Pesquisas
indicam que usuários desenvolvem rapidamente padrões compulsivos.
Famílias Endividadas
Pesquisa do SPC Brasil revela que
apostadores aumentaram seu endividamento em 67% comparado a não-apostadores. O
valor médio da dívida familiar em lares com apostadores é R$ 8.347, contra R$
4.982 em lares sem apostadores.
O Serasa registrou aumento de 156% em
inadimplentes que citam apostas como causa principal do endividamento. São 2,3
milhões de brasileiros, número maior que a população de Brasília.
Crise de Saúde Mental
O Centro de Valorização da Vida
reporta aumento de 89% em ligações relacionadas a problemas com jogos desde
2020. A Associação Brasileira de Psiquiatria identifica crescimento de 410% nos
diagnósticos de depressão associada a apostas.
Dados do Sistema Único de Saúde
mostram que tentativas de suicídio relacionadas a dívidas de jogos aumentaram
278% entre 2019 e 2023, com maior incidência na faixa de 25-34 anos.
Corrupção no Esporte
A Confederação Brasileira de Futebol
investigou 47 casos suspeitos de manipulação em 2023, contra 8 em 2019. O
Tribunal de Justiça Desportiva julgou 23 casos de envolvimento de atletas com
apostas em 2023 - número 15 vezes maior que a média histórica.
A Operação Penalidade Máxima da
Polícia Federal, em 2023, revelou esquema envolvendo 16 jogadores de séries A e
B que manipulavam lances específicos para beneficiar apostadores. Estimativa de
prejuízo: R$ 120 milhões em apostas fraudulentas.
O Mito dos Empregos
A indústria emprega diretamente 23.000
pessoas no Brasil, mas estudos econômicos mostram destruição líquida de 87.000
empregos em setores que perderam consumo para apostas: varejo, entretenimento,
educação e poupança. Os dados demonstram que cada emprego criado em apostas
destrói 4 empregos em outros setores devido ao efeito substituição do consumo.
Lições internacionais
Reino Unido: O Arrependimento
O Reino Unido, pioneiro na
liberalização, implementa reversão gradual:
- Proibição
de patrocínios esportivos (vigor em 2026);
- Redução
de 80% no tempo de propaganda durante jogos;
- Limites
por aposta em caça-níqueis online;
- Verificação
obrigatória de renda para apostas acima de 650 reais.
Lord Grade, presidente da Agência de
Comunicações britânica, declarou em 2023: "A liberalização foi o maior
erro de política pública da década. Criamos uma geração perdida."
França: O Modelo Restritivo
A França legalizou apostas em 2010 com
restrições severas:
- Apenas
11 operadoras licenciadas (versus 189 no Brasil)
- Proibição
total de propaganda fora de horários específicos;
- Limite
de R$ 1.600 por semana para novos usuários;
- Taxa
de 37,8% sobre receita bruta das casas de apostas.
Austrália: Reformas Recentes
Em 2023, a Austrália aprovou reformas
drásticas:
- Banimento
completo de propaganda durante eventos ao vivo;
- Proibição
de celebridades em campanhas;
- Limites
máximos de perda de 500 reais por dia;
O Primeiro-Ministro Anthony Albanese
afirmou: "Normalizamos uma atividade que destrói famílias. É hora de
reverter esse erro."
Os bastidores da regulamentação rasileira
A Lei 13.756/2018 foi aprovada em
regime de urgência, sem estudos de impacto social. Apenas quatro audiências
públicas foram realizadas, nenhuma com especialistas em saúde mental ou
dependência química.
O relator do tema no Congresso recebeu
R$ 180.000 em doações de empresas do setor de jogos durante a tramitação.
Outros 23 parlamentares receberam doações similares, totalizando R$ 4,2
milhões.
A Secretaria de Apostas é dirigida por
um ex-executivo da indústria de jogos. Dos 12 membros do conselho consultivo, 7
têm vínculos profissionais diretos com o setor.
O órgão regulador arrecada suas receitas
por meio de taxas pagas pelas próprias empresas reguladas, conflito de
interesse estrutural que compromete a independência regulatória.
Propostas para Correção de Rumo
Medidas Imediatas (0-12 meses)
1. Restrições Publicitárias Graduais
- Proibição
de propaganda durante transmissões esportivas até 22h;
- Vedação
de uso de influenciadores menores de 25 anos;
- Obrigatoriedade
de avisos sobre riscos ocupando 30% da peça publicitária;
- Proibição
de promoções para apostas;
2. Fortalecimento da Regulação
- Criação
de ouvidoria independente financiada pelo Tesouro;
- Auditoria
trimestral obrigatória dos algoritmos de retenção;
- Multas
proporcionais ao faturamento;
3. Limites de Proteção Básica.
- Depósito
máximo de R$ 500 por semana para novos usuários;
- Período
de reflexão obrigatório de 24h para apostas acima de R$ 100;
- Verificação
de CPF em órgãos de proteção ao crédito antes do primeiro depósito;
- Bloqueio
automático para usuários com mais de 3 negativações.
Reformas estruturais (12-36 meses)
1. Revisão tributária
- Aumento
gradual da taxa de licenciamento de 12% para 25% em três anos;
- Criação
de contribuição social de 2% sobre faturamento bruto;
- Destinação
de porcentagem da arrecadação adicional para programas de tratamento.
2. Desvinculação esportiva gradual
- Proibição
de novos contratos de patrocínio esportivo a partir de 2026;
- Redução
obrigatória de 50% no valor dos contratos existentes até 2027;
- Substituição
por patrocinadores de outros setores via incentivos fiscais.
3. Parcerias com a Indústria
- Criação
de instituto setor-governo para desenvolvimento de ferramentas de jogo
responsável;
- Estabelecimento
de metas anuais de redução de usuários problemáticos;
- Certificação
anual de conformidade com padrões internacionais de proteção.
Reparação Social (36 meses)
1. Rede de tratamento
- Criação
de no mínimo 80 centros especializados em ludopatia até 2028;
- Parceria
com universidades para formação de 500 especialistas anuais;
- Atendimento
gratuito online para acompanhamento de viciados em recuperação.
2. Programa de recuperação financeira
- Renegociação
facilitada de dívidas para viciados em tratamento;
- Microcrédito
sem juros para reconstrução familiar;
- Curso
de educação financeira obrigatório para reabilitação.
3. Educação preventiva
- Inclusão
de riscos de apostas no currículo do ensino médio;
- Campanha
nacional de conscientização focada em matemática básica;
- Programa
de capacitação para profissionais de saúde identificarem sinais precoces.
Nossa responsabilidade geracional
A legalização das apostas esportivas
no Brasil foi um experimento social irresponsável, conduzido sem base
científica, movido por interesses econômicos de curto prazo e pressão agressiva
de uma indústria predatória.
Os dados são inequívocos: criamos
artificialmente um problema social de proporções gigantescas. Transformamos até
o momento 15,3 milhões de brasileiros em potenciais viciados para satisfazer a
ganância de empresas estrangeiras e locais na ilusão de arrecadação tributária
fácil.
Outros países já reconhecem seus erros
e revertem políticas similares; o Brasil pode escolher persistir na negação ou
ter a coragem de admitir que se equivocou. Cada dia de demora custa bilhões em
danos sociais. Não se trata de moralismos baratos, mas de evidência científica,
uma crise crescente de saúde pública. Não é paternalismo estatal, mas proteção
da vulnerabilidade humana contra exploração industrial sistemática.
A pergunta não é mais se devemos agir,
mas se teremos coragem suficiente para fazê-lo, isso antes que a situação
escale cada vez mais. Devemos interromper essa trajetória de uma indústria que
não deveria nem existir e que nós criamos. Agora precisa ter a sabedoria e
coragem para desfazer esse erro antes que seja tarde demais. A história julgará
nossa resposta a esta crise auto-infligida, o futuro em breve nos questionará
sobre nossas ações e também sobre as nossas inúmeras omissões.
*Cláudio Carraly, advogado,
ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.
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As big techs e a teoria do Valor-atenção https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/mais-valia-transmutada.html
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