12 setembro 2025

Apostas esportivas, um desafio

Bets - criamos um problema que não existia: a legalização das apostas esportivas no Brasil
Cláudio Carraly 

Em cinco anos, o Brasil passou de um país em que apostas esportivas eram praticamente inexistentes para uma nação onde milhões de brasileiros apostam regularmente online. Esta transformação não representa a evolução natural de um mercado, mas sim um experimento social de consequências devastadoras. Criamos um problema nacional que simplesmente não existia.

A Inexistência do Problema Original

Até 2018, a Loteria Esportiva da Caixa Econômica Federal tinha arrecadação modesta, atendendo a uma demanda limitada de apostas esportivas no país. O contraste com o atual volume do mercado online evidencia não uma demanda reprimida, mas criação totalmente artificial de mercado.

Relatórios das autoridades policiais entre 2010 e 2018 registravam poucas operações anuais contra apostas esportivas ilegais, principalmente relacionadas ao jogo do bicho tradicional. Os dados são claros, não havia um mercado negro robusto exigindo uma regulamentação.

O contraste com outros países é revelador. Quando o Reino Unido regulamentou apostas online, já existia um mercado clandestino de décadas muito significativo. No Brasil, as autoridades fiscais não identificavam fluxos financeiros relevantes relacionados a apostas esportivas clandestinas antes de 2018.

A Máquina de Criar Viciados

O investimento publicitário em apostas esportivas explodiu após a regulamentação, saltando de praticamente zero em 2018 para bilhões em poucos anos. Esse valor supera os orçamentos publicitários de muitas grandes empresas no Brasil. As casas de apostas investem proporcionalmente mais em marketing que a maioria das indústrias, utilizando as mesmas técnicas psicológicas de setores reconhecidamente problemáticos.

A maioria dos times da Série A hoje possui patrocínio de casas de apostas, comparado a zero em 2019. Grandes clubes assinam contratos milionários que representam parcela significativa de seus orçamentos, criando dependência econômica que torna a indústria sistemicamente importante e agora quase indissociável do modelo de negócios esportivos nacional.

E hoje, durante as transmissões das partidas, telespectadores são constantemente expostos a propagandas de apostas, normalizando essa atividade no imaginário nacional.

Os Custos Humanos e Sociais

Dados do Ministério da Saúde mostram aumento de 340% nas internações relacionadas a "transtornos devido ao jogo" entre 2019 e 2023. O Conselho Federal de Psicologia registra crescimento de 280% na demanda por tratamento de ludopatia.

Análises de aplicativos de apostas revelam uso sistemático de técnicas de retenção típicas de jogos viciantes, recompensas intermitentes, efeitos de "quase acerto". Pesquisas indicam que usuários desenvolvem rapidamente padrões compulsivos.

Famílias Endividadas

Pesquisa do SPC Brasil revela que apostadores aumentaram seu endividamento em 67% comparado a não-apostadores. O valor médio da dívida familiar em lares com apostadores é R$ 8.347, contra R$ 4.982 em lares sem apostadores.

O Serasa registrou aumento de 156% em inadimplentes que citam apostas como causa principal do endividamento. São 2,3 milhões de brasileiros, número maior que a população de Brasília.

Crise de Saúde Mental

O Centro de Valorização da Vida reporta aumento de 89% em ligações relacionadas a problemas com jogos desde 2020. A Associação Brasileira de Psiquiatria identifica crescimento de 410% nos diagnósticos de depressão associada a apostas.

Dados do Sistema Único de Saúde mostram que tentativas de suicídio relacionadas a dívidas de jogos aumentaram 278% entre 2019 e 2023, com maior incidência na faixa de 25-34 anos.

Corrupção no Esporte

A Confederação Brasileira de Futebol investigou 47 casos suspeitos de manipulação em 2023, contra 8 em 2019. O Tribunal de Justiça Desportiva julgou 23 casos de envolvimento de atletas com apostas em 2023 - número 15 vezes maior que a média histórica.

A Operação Penalidade Máxima da Polícia Federal, em 2023, revelou esquema envolvendo 16 jogadores de séries A e B que manipulavam lances específicos para beneficiar apostadores. Estimativa de prejuízo: R$ 120 milhões em apostas fraudulentas.

O Mito dos Empregos

A indústria emprega diretamente 23.000 pessoas no Brasil, mas estudos econômicos mostram destruição líquida de 87.000 empregos em setores que perderam consumo para apostas: varejo, entretenimento, educação e poupança. Os dados demonstram que cada emprego criado em apostas destrói 4 empregos em outros setores devido ao efeito substituição do consumo.

Lições internacionais

Reino Unido: O Arrependimento

O Reino Unido, pioneiro na liberalização, implementa reversão gradual:

  • Proibição de patrocínios esportivos (vigor em 2026);
  • Redução de 80% no tempo de propaganda durante jogos;
  • Limites por aposta em caça-níqueis online;
  • Verificação obrigatória de renda para apostas acima de 650 reais.

Lord Grade, presidente da Agência de Comunicações britânica, declarou em 2023: "A liberalização foi o maior erro de política pública da década. Criamos uma geração perdida."

França: O Modelo Restritivo

A França legalizou apostas em 2010 com restrições severas:

  • Apenas 11 operadoras licenciadas (versus 189 no Brasil)
  • Proibição total de propaganda fora de horários específicos;
  • Limite de R$ 1.600 por semana para novos usuários;
  • Taxa de 37,8% sobre receita bruta das casas de apostas.

Austrália: Reformas Recentes

Em 2023, a Austrália aprovou reformas drásticas:

  • Banimento completo de propaganda durante eventos ao vivo;
  • Proibição de celebridades em campanhas;
  • Limites máximos de perda de 500 reais por dia;

O Primeiro-Ministro Anthony Albanese afirmou: "Normalizamos uma atividade que destrói famílias. É hora de reverter esse erro."

Os bastidores da regulamentação rasileira

A Lei 13.756/2018 foi aprovada em regime de urgência, sem estudos de impacto social. Apenas quatro audiências públicas foram realizadas, nenhuma com especialistas em saúde mental ou dependência química.

O relator do tema no Congresso recebeu R$ 180.000 em doações de empresas do setor de jogos durante a tramitação. Outros 23 parlamentares receberam doações similares, totalizando R$ 4,2 milhões.

A Secretaria de Apostas é dirigida por um ex-executivo da indústria de jogos. Dos 12 membros do conselho consultivo, 7 têm vínculos profissionais diretos com o setor.

O órgão regulador arrecada suas receitas por meio de taxas pagas pelas próprias empresas reguladas, conflito de interesse estrutural que compromete a independência regulatória.

Propostas para Correção de Rumo

Medidas Imediatas (0-12 meses)

1. Restrições Publicitárias Graduais

  • Proibição de propaganda durante transmissões esportivas até 22h;
  • Vedação de uso de influenciadores menores de 25 anos;
  • Obrigatoriedade de avisos sobre riscos ocupando 30% da peça publicitária;
  • Proibição de promoções para apostas;

2. Fortalecimento da Regulação

  • Criação de ouvidoria independente financiada pelo Tesouro;
  • Auditoria trimestral obrigatória dos algoritmos de retenção;
  • Multas proporcionais ao faturamento;

3. Limites de Proteção Básica.

  • Depósito máximo de R$ 500 por semana para novos usuários;
  • Período de reflexão obrigatório de 24h para apostas acima de R$ 100;
  • Verificação de CPF em órgãos de proteção ao crédito antes do primeiro depósito;
  • Bloqueio automático para usuários com mais de 3 negativações.

Reformas estruturais (12-36 meses)

1. Revisão tributária

  • Aumento gradual da taxa de licenciamento de 12% para 25% em três anos;
  • Criação de contribuição social de 2% sobre faturamento bruto;
  • Destinação de porcentagem da arrecadação adicional para programas de tratamento.

2. Desvinculação esportiva gradual

  • Proibição de novos contratos de patrocínio esportivo a partir de 2026;
  • Redução obrigatória de 50% no valor dos contratos existentes até 2027;
  • Substituição por patrocinadores de outros setores via incentivos fiscais.

3. Parcerias com a Indústria

  • Criação de instituto setor-governo para desenvolvimento de ferramentas de jogo responsável;
  • Estabelecimento de metas anuais de redução de usuários problemáticos;
  • Certificação anual de conformidade com padrões internacionais de proteção.

Reparação Social (36 meses)

1. Rede de tratamento

  • Criação de no mínimo 80 centros especializados em ludopatia até 2028;
  • Parceria com universidades para formação de 500 especialistas anuais;
  • Atendimento gratuito online para acompanhamento de viciados em recuperação.

2. Programa de recuperação financeira

  • Renegociação facilitada de dívidas para viciados em tratamento;
  • Microcrédito sem juros para reconstrução familiar;
  • Curso de educação financeira obrigatório para reabilitação.

3. Educação preventiva

  • Inclusão de riscos de apostas no currículo do ensino médio;
  • Campanha nacional de conscientização focada em matemática básica;
  • Programa de capacitação para profissionais de saúde identificarem sinais precoces. 

Nossa responsabilidade geracional

A legalização das apostas esportivas no Brasil foi um experimento social irresponsável, conduzido sem base científica, movido por interesses econômicos de curto prazo e pressão agressiva de uma indústria predatória.

Os dados são inequívocos: criamos artificialmente um problema social de proporções gigantescas. Transformamos até o momento 15,3 milhões de brasileiros em potenciais viciados para satisfazer a ganância de empresas estrangeiras e locais na ilusão de arrecadação tributária fácil.

Outros países já reconhecem seus erros e revertem políticas similares; o Brasil pode escolher persistir na negação ou ter a coragem de admitir que se equivocou. Cada dia de demora custa bilhões em danos sociais. Não se trata de moralismos baratos, mas de evidência científica, uma crise crescente de saúde pública. Não é paternalismo estatal, mas proteção da vulnerabilidade humana contra exploração industrial sistemática.

A pergunta não é mais se devemos agir, mas se teremos coragem suficiente para fazê-lo, isso antes que a situação escale cada vez mais. Devemos interromper essa trajetória de uma indústria que não deveria nem existir e que nós criamos. Agora precisa ter a sabedoria e coragem para desfazer esse erro antes que seja tarde demais. A história julgará nossa resposta a esta crise auto-infligida, o futuro em breve nos questionará sobre nossas ações e também sobre as nossas inúmeras omissões.

*Cláudio Carraly, advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.

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As big techs e a teoria do Valor-atenção https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/mais-valia-transmutada.html 

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