06 setembro 2025

Operação 'Carbono oculto'

PCC e o vale tudo do dinheiro na Faria Lima
Economia das substâncias proscritas precisa diluir-se nos mercados “legais”. O sociólogo analisa: o uso de  fintechs  não representa apenas a “infiltração do crime”. Também os financistas querem sua fatia de todo dinheiro, sem sujar as mãos
Gabriel Feltran  em entrevista a  Giulia Granchi , na  BBC Brasil
/Outras Palavras     


As  operações deflagradas pela Polícia Federal , Receita Federal e órgãos como o Ministério Público de São Paulo (MPSP) contra o Primeiro Comando da Capital (PCC) na última semana revelaram uma complexa estrutura de  negócios  mantida por grupo no setor de  combustíveis .

As atividades se espalham por todas as etapas da cadeia e chegam inclusive ao mercado financeiro. São bilhões em importações ilegais e sonegação de impostos, adulteração de combustíveis, uso de redes de postos para lavagem de dinheiro e de fundos de investimento para ocultação de recursos de origem ilícita. 

Expostas nesta quinta-feira (28/8), as engrenagens do esquema reiteram uma característica do crime organizado neste século 21 já bem conhecida por quem pesquisa esse tema: a atuação simultânea nas economias legais e ilegais.

É o que aponta o sociólogo Gabriel Feltran, diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor titular da Sciences Po, em Paris. Ele é autor de  Irmãos: Uma História do PCC  e nos últimos anos tem treinado os mercados transnacionais ilegais entre Américas, Europa e África.

Em entrevista à BBC News Brasil, Feltran diz que a presença do PCC em fundos e  fintechs  da Faria Lima não o surpreendeu.

Ele questionou, no entanto, a concepção de que o crime organizado se infiltrou no centro financeiro de São Paulo, ideia repetida pela subsecretária da Receita Federal, Andrea Costa Chaves, ao detalhar a investigação.

"Não sei bem quem está 'se infiltrando'. Será que não são os  limers , políticos e outros os que querem se infiltrar, para se apropriar da economia bilionária dos mercados ilícitos?", argumenta Feltran.

“O mercado financeiro quer esse dinheiro criminoso, ativo, e pensa como fazer para tê-lo sem sujar as mãos”, acrescenta.

Feltran também desafia a ideia de que a operação da semana passada chegou ao “andar de cima” do PCC, como expressou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

"Quando caem os operadores, a facção cai junto? Ou ela os substitui? Até hoje, ela os tem substituído facilmente, da mesma forma como um aplicativo substitui seus entregadores ou motoristas", ressalta o pesquisador. 

Leia, a seguir, a entrevista

Qual o alcance dessa operação da PF? Ela de fato é o “andar de cima” do PCC ou está mais voltada para operadores e intermediários?

Em 2020, ocorreu uma operação da PF muito semelhante, chamada “Rei do Crime”. Antes, houve operações também muito grandes contra o PCC, pequenos. A concepção é correta do ponto de vista policial: investigação, análise das redes criminais e ação interinstitucional. Mas o fato é que o PCC não mostrou sinais de fadiga depois delas e, ao contrário, crescendo contínuo.

Não há passe de mágica: a operação tem 200 mandados de prisão, o PCC tem coleções de milhares de membros, milhões de operadores contratados para atividades divertidas.

Os valores contratados já eram bilionários em 2020, agora são ainda maiores. Qual é o aprendizado que retiramos dessas experiências? O primeiro é sobre que o PCC é esse que as operações enfrentam. Será que o PCC funciona nessa estrutura de “andares”, centralizando todo o dinheiro no topo, como vende a narrativa policial-jornalística? Ou foi se constituindo numa plataforma de negócios na qual atuam milhares de empreendedores criminosos autônomos, de diferentes tamanhos e ramos da economia, inclusive legais?

Sabemos separadamente, nesse montante identificado, o dinheiro que é dos operadores individuais e o que é das caixas da organização? O dinheiro com origem em negócios legais, dos ilegais? Quando caem os operadores, a facção cai junto? Ou ela os substitui? Até hoje, ela foi substituída facilmente, da mesma forma como um aplicativo substitui seus entregadores ou motoristas. Há que se conhecer melhor as características que se “combatem”.

O montante identificado é significativo no faturamento total do PCC?

Claro. Estamos falando de R$ 60 bilhões específicos, só nessa operação. A maior empresa do Brasil – a Petrobrás – lucrou R$ 36 bilhões e faturou R$ 115 bilhões em 2024. Até hoje se pensa que os mercados ilegais são marginais, a despeito de todas as evidências de que eles são absolutamente centrais em nossa economia. Esse dinheiro participa diretamente do nosso PIB.

Empresários legais sofrem com concorrência ilegal, claro. Mas do ponto de vista macroeconômico, a produção de valor ilegal é cumprida na economia formal, em muitos países, porque ela também é global.

O dinheiro identificado nas “contas do PCC” não é apenas de origem ilegal: as estratégias de ocultação misturam rapidamente dinheiro limpo e sujo. Tampouco sabemos o que é da organização, e o que é dos operadores privados que estão nas redes de negócio da organização. 

O que o senhor acha da fala da subsecretária da Receita Federal sobre uma “invasão do crime organizado na economia real e no mercado financeiro”?

Depois de mais de vinte anos estudando esses temas, achei engraçada essa ideia de “infiltração”. Até porque não sei bem quem está “se infiltrando”. Será que não serão os limers, políticos e outros os que querem se infiltrar, para se apropriarem da economia bilionária dos mercados ilícitos?

Porque vejamos bem: o valor bilionário é produzido ilegalmente, e está chegando aos grandes fundos financeiros. Monta-se então empresas de intermediação, que fazem esse dinheiro sujo ter cara limpa para circular como finanças. Não há um movimento ativo, nos mercados formais e financeiros, para capturar esse valor produzido ilegalmente? As elites não se interessam por essa acumulação?

A sociologia econômica tem algo a ensinar aqui: dinheiro é sujo ou limpo até determinada escala. Depois, a sua qualidade é a sua quantidade.

A presença do PCC em fundos e  fintechs  da Faria Lima, com infiltrados e não apenas empresas de fachada, surpreende o senhor? Sempre se especula sobre a ligação do crime com camadas mais altas da economia — Vieira Souto, Jardins, Faria Lima. Esse envolvimento ainda surpreende ou já era esperado?

A integração das economias lícitas nas ilegais não me surpreende nem um pouco, as orientações de nossos projetos de pesquisa apontam para isso. Onde há muito dinheiro, os que gostam de dinheiro vão “crescer o olho”. Quando estudamos a cadeia de valor de carros e autopeças roubadas, o interesse das elites financeiras nesse dinheiro criminoso já era evidente, assim também no caso da cocaína.

Fizemos, como grupo de pesquisa, algumas entrevistas na Faria Lima, entre 2021 e 2022. Conversamos com operadores do mercado financeiro sobre como o dinheiro ilegal chegava ali.

As conversas começaram assim: “Há muitos controles, é muito difícil ter dinheiro de origem ilegal aqui”. Mas depois de duas horas conversando: “É, você sabe, tendo muito dinheiro, tudo é possível”.

O mercado financeiro quer ser dinheiro criminoso, ativo, e pensa como fazer para tê-lo sem sujar as mãos. 

Como o senhor avalia a complexidade desse esquema? Movimentos em combustíveis e outros setores “clássicos” já eram esperados. Há algo de novo ou surpreendente nesse caso específico? O uso de  fintechs  pelo PCC é uma inovação ou apenas adaptação de práticas já conhecidas de lavagem de dinheiro?

Para o universo criminoso brasileiro, o PCC significou uma enorme inovação, ainda não detalhada. Os últimos dez anos de expansão internacional são ainda menos compreendidos.

A primeira geração de facções, o CV, o “Tudo 2”, faz controle territorial armado e extorsão. O PCC é de uma geração posterior, aposta no controle de cadeias de valor e usa a violência, quando preciso, nessa direção.

É o “Tudo 3”, outra forma de fazer o crime presente em todos os Estados do Brasil. Não queremos apenas os postos de gasolina, queremos controlar a cadeia de todos os combustíveis, se possível todo o setor. Não é claro que essa operação? Fazem assim em todas as cadeias nas quais atuam. Da produção à distribuição, passando pela regulação.

Os mercados ilegais funcionam na forma de ampulhetas. Muitos operadores baixos na produção, muitos no varejo, mas poucos operadores no centro da cadeia de valor – os “traders”. Ali se concentra o poder sobre a cadeia. Uma miríade de empreendedores, pequenos e grandes, se relaciona por meio dessa intermediação, que tem lógica “plataformizada”.

No PCC, a coordenação dessa plataforma não é personalizada, é feita institucionalmente. Se cair um, há outro que entra no lugar e opera a máquina. Os empreendedores criminosos têm seus negócios próprios, mas ninguém pode tocar no dinheiro da organização. Esses empreendedores reinvestem seus lucros em mercados legais e ilegais. Então a própria ideia de “lavagem de dinheiro” fica obsoleta. Não há dinheiro sujo “antes” e uma “lavagem” para deixá-lo limpo, depois.

Há esquemas associados entre mercados ilegais e legais, nos quais o dinheiro de diferentes origens se acumula, de forma muito difícil de detectar.

Essa operação representa mesmo, como dizem Lula e Lewandowski, a maior resposta já dada ao crime organizado no país, ou há um exagero com visão política?

Minha preocupação não é, sinceramente, com governo A ou B. O modelo de segurança pública no Brasil é um desastre que se reproduz, de governo a governo, nos últimos 40 anos.

Temos um problema de direcionamento de políticas de Estado, não de governo, na área de segurança. Somos reféns de uma concepção que vê segurança como guerra, não como uma área de política pública.

Policiais inflamados por essa ideologia funesta se sentem guerreiros, heróis, não operadores de política pública. Vão à igreja orar para enfrentar essa guerra moral, desprezam quaisquer áreas de conhecimento, matam e se matam mais do que em qualquer lugar do mundo, é um desastre sem proporções.

O Brasil não fez o mínimo que outros países democráticos fizeram, para ter segurança pública. Era preciso rever o direcionamento estatal, e não governamental, das políticas de segurança.

A oposição foi acusada de ter favorecido esse esquema ao bloquear regras mais rígidas para  fintechs  na época da crise do Pix. Há declarações de conivência política com o PCC ou essa relação não se sustenta?

Não penso que exista, no PCC, uma visão político-institucional coesa. A ideologia fundamental da facção é “contra o sistema”. Mas o sistema parece bastante interessado em partilhar os lucros das economias ilegais.

O PCC pode facilmente substituir esse tipo de lavagem de dinheiro por outros mecanismos caso esse seja bloqueado?

No começo dessa conversa lembramos da operação policial de 2020, muito parecida com essa. Ali já víamos mecanismos bastante parecidos com os que vimos essa semana. Temos que aprender um pouco com a experiência.

Colaborou Camilla Veras Mota, de São Paulo.

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Leia também: Luiz Gonzaga Belluzzo, "Faria Lima, PCC e a sociedade do dinheiro"  https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/tentaculos-da-corrupcao.html 

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