CLARICE GONÇALVES
A beleza como almofadas, com alfinetes
FERNANDO
SILVA, revista Continente
Para Clarice Gonçalves, tudo
que causa sensação na arte a atrai. Não só no trabalho dos
outros, sejam artistas plásticos, cineastas ou escritores, mas também na hora
de produzir as próprias telas, que têm um quê de simbolista, expressionista,
surrealista. Nelas, há crianças dispostas numa sala de aula, mulheres em plena
comunhão com a natureza e podem ser vistas ainda cenas de prazer e de meditação
sobre a vida. São imagens apresentadas de forma nítida e em close,
sem deixar de jogar com o olhar do espectador, com a sua sensorialidade. “É
sempre uma beleza com alfinete, uma almofadinha de seda com alfinete. Brilhante
e linda, mas tem um alfinetinho para dar um ‘ai’”, afirma a pintora, definindo
seus quadros, aos risos, como se diz popularmente, meio séria, meio na base da
brincadeira.
Nascida em Brasília (DF),
Clarice se diverte com desenhos e pinta o sete desde a infância, o que tornou
natural a escolha de uma graduação na área. Formou-se, assim, em Artes Visuais pela
Universidade de Brasília, em 2008, e, aos poucos, construiu uma obra na qual o
feminino é ponto central. Sua chegada aos bancos escolares da UnB lhe deu uma
direção ao mesmo tempo em que levantou uma questão. “Eu ficava muito cabreira
com essa história dos grandes mestres da pintura”, recorda ela, hoje, aos 37
anos. “Cadê as grandes mestras, cadê as mulheres? Gente, não é possível que não
tenha”, questionava à época. Clarice resolveu, então, buscar respostas.
Primeiro, procurou alargar
os horizontes. “Fui me refugiar na Psicologia, na Antropologia, na Sociologia,
entender como cada área estava estudando essas questões que me eram caras”,
relembra. Além de conhecer melhor os campos das Ciências Sociais e de
frequentar aulas de psicologia de gênero, ela foi às prateleiras da biblioteca
da universidade. Lá, descobriu pensadoras como a psicanalista e teórica de
linguística e semiótica búlgaro-francesa Julia Kristeva e a pediatra e
psicanalista francesa Françoise Dolto (1908-1988).
Nessa pesquisa, encontrou
também referências femininas na arte, as mestras. É o caso da portuguesa Paula
Rego (1935-2022), que retratava principalmente mulheres, em imagens evocando a
desigualdade de sexos, a opressão e o aborto. E o de Remedios Varo (1908-1963),
espanhola radicada no México e famosa por um surrealismo místico repleto de
alquimistas, bruxas, músicos, figuras e formas criadores de mundos e das
sensações que Clarice aprecia.
No processo, a artista
brasiliense foi achando a sua voz. De início, em autorretratos, depois
abordando também a infância, a exemplo de Pequena mulher,
quadro no qual uma garotinha segura uma boneca toda retorcida, e de Dálmata,
em que uma criança posa com um cão.
O caminho, porém, foi
sinuoso. Na última das três entrevistas que Clarice deu à Continente, todas por videochamada, ela comenta que o
período da faculdade funcionou ainda como uma espécie de terapia, de
autoanálise. “Passei a olhar para mim mesma, o que eu estava vivendo ali, o que
eu estava realmente escolhendo e o que eu estava só reproduzindo, que me foi
ensinado, que me foi dito”, comenta. “Meus avós eram evangélicos, e eu cresci
na igreja. Então, tinha uma série de questões que eu fui desfiando com os anos
para tentar entender.”
As conclusões nessa
fase de aprendizado a fizeram seguir por uma estrada que afirma não trocar por
nada. “A arte e a pintura sempre foram esse lugar de comunicação, o lugar
catártico de lidar com questões e estranhamentos meus, comigo mesma”, diz.
“Eu sempre fui muito
calada, quieta, observadora, não era muito sociável. Tenho trabalhado para
estar nesse lugar aqui de conseguir verbalizar e falar.” Graças aos pincéis e
às tintas, ela afirma ter driblado, inclusive, parte da timidez para conversar
sobre suas obras, que foram expostas em cidades como Havana (Cuba) e Londres
(Inglaterra), e que ganharam outro recente tipo de reconhecimento. Clarice foi
uma das indicadas ao Prêmio PIPA 2022 e finalista desta mesma premiação brasileira,
na categoria online.
Suas criações foram,
antes, tema do livro Clarice Gonçalves: O som do
silêncio (192 páginas, 2014, editora Briquet de Lemos),
publicação organizada por Graça Ramos, curadora e doutora em História da Arte
pela Universidade de Barcelona, que traz reproduções de obras de sua autoria e
textos críticos assinados por Mario Gioia e Juliana Monachesi. O título veio da
sensação que as obras causavam em Graça. “As pinturas de Clarice transmitiam a
ideia de silêncio, mas um silêncio que nos falava sobre tensões inerentes ao
feminino”, explica a curadora. “Elas apresentavam um aspecto quase teatral,
quase sempre anunciando situações dramáticas, e, paradoxalmente, perpassavam
uma ideia de silêncio, de certa contenção da voz discursiva.”
Estrelas-guias do
trabalho da artista, as figuras femininas surgem em diversas situações em suas
produções. Desde a loira com o seio esquerdo e uma mancha de sangue na
calcinha, ambos à mostra, em Elas existem e proliferam,
passando pela jovem que nos fita, com parte do corpo submersa em águas
impressionistas, em Pulmões de pescador de pérolas,
até a mulher cabisbaixa e contraída entre duas paredes, em Talvez por efeito do quotidiano.
São retratos do que
ela lê, escuta e vê. E também vive: outro dos temas em destaque é a
maternidade. Clarice é mãe de um menino de nove anos.
BASE SOCIAL INVISÍVEL
Clarice mora em Taguatinga, cidade-satélite de Brasília, onde cria
sozinha o filho.
Ela conta que a
maternidade não foi uma experiência planejada, já que só o fato de pensar em
engravidar lhe trazia um medo muito grande na juventude. Mas numa “ironia do
destino” entrou para o time das mães. Passou a pesquisar e refletir ainda mais
sobre a condição.
Questionada a
respeito de como a maternidade influencia seu trabalho, a artista se aprofunda:
“Afetou muito, de uma forma perturbadora e quase enlouquecedora”, diz. “Nós,
mães, somos a base invisível da sociedade. Com o mínimo de suporte do Estado, a
gente cria mão de obra, educa, alimenta, e a sociedade vê isso como obrigação,
cobra muito, está sempre pronta a apontar o dedo. Você não pode falhar, errar.
Do pai, nada é cobrado.”
O tema impactou seu
estilo, acompanhado por uma nova forma de trabalhar. “Depois da maternidade,
meu tempo de produção se condensou muito mais, então, eu estou o tempo todo
pintando, de certa forma. Quando eu sento para pintar, geralmente, é rápido
demais. É um processo mental já de muitos anos”, explica ela, que costuma
brincar com a situação, dizendo ser também uma dona de casa em 99% do tempo.
Ser mãe mudou sua
forma de ver o mundo, mas o assunto não era inédito em sua trajetória. A
artista se debruçara na maternidade em obras como Família (2004), Cerca (2006) e
na poética e misteriosa Clepsidra secreta das mariposas,
também de 2004, em que uma figura materna (cujo rosto não se revela) leva a
filha pela mão a um buraco, a uma caverna ou a um túnel do tempo. Tudo
inspirado ainda pela gravidez da mãe da artista, que, na primeira década deste
século, esperava o nascimento da irmã de Clarice, hoje com 17 anos.
A chave virou quando
a pintora se viu naquele papel. Quadros ganharam títulos como Maternidade e loucura (2016) e a força expressiva
de O que me pareceu ao ouvir (2017), no qual uma
mulher nua tem o filho sentado em seu colo, igualmente sem roupas, enquanto
parece escutar o coração e sentir o cheiro do alimento da mãe.
Surgiu também, em
2015, Cicatrizes dos impactos cósmicos, um óleo sobre tela
inundado por mamilos, dos mais variados tamanhos, formas e cores, espalhados
num fundo branco. Na pintura, de 153 cm x 210 cm, nota-se que de um desses
mamilos cai uma gota de leite. Em tempos de censura aos mamilos femininos em
redes sociais e até ao ato de amamentar em público, Clarice mostra 14 bicos de
seios.
Outro tipo de tabu,
segundo ela, é o de conjugar os adjetivos artista e mãe no meio das artes.
“Você não consegue mais acompanhar o circuito por motivos óbvios: você está
exausta, nutrindo um ser humano, sozinha, muitas vezes. Então, as pessoas vão
realmente lhe esquecendo, vão lhe silenciando. E você recebe menos convites
para qualquer coisa que seja”, afirma. “Paira ali a ideia de que seu trabalho
depois de mãe vai ser superficial, infantilizado, vai ser, sei lá, uma coisa
voltada só para esse lugar da baby art, um termo
pejorativo.”
Para tentar fugir de
qualquer rótulo, Clarice mantém os sentidos alertas. “Um olhar de estar sempre
atenta à poesia do mundo”, diz. O que inclui a própria sexualidade, claro.
CUMPLICIDADE E EROTISMO
É difícil não prestar atenção na tela Aquele que guarda os segredos.
Uma mulher de lábios entreabertos segura uma das pontas de seus cabelos negros
e nos encara, mesmo que não consigamos realmente ver os olhos dela. A moça está
sem blusa e sem sutiã, portanto, com os dois seios à mostra para quem quiser
observá-los.
Não há qualquer
idealização, mas sensualidade e reflexão, simultaneamente. Ali, a modelo, como
a alemã Nico canta na música da banda Velvet Underground, parece nos dizer “I’ll be your mirror” (“Eu serei seu espelho”).
Esse reflexo da vida
segue pelas obras de Clarice Gonçalves para desvelar tanto afeto e desejo na
intimidade – por exemplo, em Apetite sensível, em
que duas mulheres nuas se beijam na boca enquanto uma terceira, também nua,
observa a cena com expressão de excitação – quanto em público. Em As candangas, por exemplo, observamos duas jovens com
os corpos entrelaçados, cheias de cumplicidade, sensibilidade e erotismo.
Clarice Gonçalves não
aprecia a utilização do termo pornô feminista para
definir essa temática de seu trabalho. “A estrutura do pornô é toda pavimentada
dentro de uma estrutura patriarcal e violenta. Acho que a própria ideia de
capitalizar em cima disso é uma coisa dúbia. Então, eu não gosto do
pornográfico. Estou mais para o erótico”, afirma. “Gosto de flertar com o
erotismo. Ele está no corpo, numa música, num alimento, no Sol que pega sua
pele. Ele é muito maior.”
É a vontade de viver
que a pintora coloca em destaque em suas produções, numa busca de poder falar
abertamente sobre liberdade sexual, de Eros e do amor. Exemplo evidente é Foda, quadro no qual ela dispõe vários corpos em sexo
grupal, algo como se as mulheres celebrizadas na pintura cubista Les demoiselles d’Avignon, do espanhol Pablo Picasso
(1881-1973), estivessem participando de um bacanal. Ou talvez mais aparentado a
obras da inglesa Cecily Brown (1969), uma das referências contemporâneas de
Clarice nas artes plásticas.
REFERÊNCIAS E INFLUÊNCIAS
“Eu sou uma coletora de sensações, de textos, de imagens”, diz Clarice.
“Posso estar lendo um jornal e, de repente, tem alguma disposição de palavras
que eu falo ‘Nossa, essa palavra com essa palavra. Caramba!’” Algo parecido com
uma chave, ativando os “estalos”, como ela os chama. “Aí eu meio que tento
imaginar, formar uma imagem daquilo”, explica a respeito de seu modo de
trabalhar, de captar as influências.
As ideias podem vir
de uma cena de novela, do conteúdo de uma revista, de uma conversa, de
pesquisas. E também da Flona, a Floresta Nacional de Brasília, da qual é
vizinha, em Taguatinga. “Diferentemente dos meus colegas – todo mundo foi para
o Rio e São Paulo – eu permaneci aqui. E a Flona é um dos motivos pelos quais
eu não arredo o pé”, afirma.
A unidade de preservação
estimula Clarice. “É um refúgio para mim desde a adolescência, um lugar para
onde vou quando estou surtando”, diz. De lá saíram ideias inspiradas, por
exemplo, na cubana Ana Mendieta (1948-1985). Ela produzia, em plataformas como
vídeo, fotografia, escultura e pintura, obras que denunciam a violência contra
mulheres, fundindo ser humano e natureza, num experimentalismo de junção entre
corpo e obra.
A partir do diálogo
com a obra de Mendieta, a brasiliense fez, por exemplo, Estigmergia, acrílico sobre tela que traz, na vegetação
do cerrado, uma mulher com os braços levantados e as mãos abertas, à maneira
de Tree of life, registro em foto a cores de performance da artista cubana, realizada em 1976.
Relaciona-se com a
Flona, ainda, o conceito para a série Especulação imobiliária.
Em 2022, o Senado aprovou uma lei, sancionada pelo governo federal, que diminui
em 40% o tamanho da floresta. “É a minha forma de lidar com essa notícia
horrível”, afirma Clarice.
O universal visível
em suas obras sempre parece voltar ao lugar de origem. O começo foi assim: ao
encontrar em casa, com outros livros da mãe, o romance Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez
(1927-2014), ela achou um fio da meada para seguir. Na história escrita pelo
vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1982, a pintora descobriu como
gostaria de inventar os próprios mundos, a sua Macondo específica. “A atmosfera
que ele trazia, a riqueza de detalhes, de textura, a complexidade e a
profundidade de cada personagem são coisas incríveis”, situa. “E a partir
daquele processo repetitivo, claustrofóbico, dentro desse processo familiar, eu
comecei a olhar para os meus processos familiares.”
O impacto da leitura
da obra do autor colombiano foi tamanho que ela se inspirou em uma frase do
livro para batizar um quadro. As estirpes condenadas a cem
anos de solidão não terão uma nova chance sobre a terra foi
criado a partir de uma foto ao estilo árvore genealógica, de uma tia-avó dela
posando com a avó, uma tia e uma prima diante de uma parede, reproduzida em
tela.
Gabo é parte vital de
seu ciclo criativo. Uma linha com a qual ela faz questão de costurar almofada e
alfinete. “Ele foi o ponto de partida para tudo isso, para todo esse
estranhamento existencial que segue até hoje.”
A
realidade é furta-cor https://bit.ly/3Ye45TD
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