30 janeiro 2023

Espionagem

Emirados Árabes, laboratório mundial da vigilância cibernética
Em duas décadas, os dirigentes da federação dos Emirados Árabes Unidos adquiriram importantes meios digitais para fiscalizar e controlar sua população, inclusive a mão de obra estrangeira. A ponto de, hoje em dia, exportar essa tecnologia
Éva Thiébaud/Le Monde Diplomatique



O telefone do taxista toca novamente. Seguimos pela rodovia de quatro pistas entre Abu Dhabi, cidade conservadora e riquíssima capital dos Emirados Árabes Unidos, e a liberal Dubai, meca do turismo e hub do comércio internacional. Agora é meu telefone que vibra. Uma mensagem avisa que acabou de acontecer um acidente na rodovia. Nem eu nem o motorista nos inscrevemos em lugar nenhum para sermos avisados em caso de problemas, mas o alerta chegou. Observamos a estrada: o acidente foi do outro lado.

O recebimento da mensagem ajuda a ilustrar o permanente controle digital, supostamente com o objetivo de oferecer conforto e tranquilidade, que faz parte da vida cotidiana dos Emirados, cujos habitantes são os maiores consumidores de dados móveis do mundo, com uma média de 18 GB por pessoa ao mês.1

“A tecnologia digital está muito integrada à vida dos emiradenses”, explica James Shires, pesquisador de seguran&ccedi l;a cibernética da Universidade de Leiden, nos Países Baixos. “Fascinados pela modernidade, eles se apresentam como líderes tecnológicos, vangloriam-se de suas cidades conectadas (smart cities) e da facilidade do cotidiano pela tecnologia digital. O outro lado da moeda é que tudo é rastreado e coletado.” O constrangimento não passa despercebido aos emiradenses, mas alguns o consideram necessário em um país exposto a inúmeras ameaças geopolíticas. “A digitalização leva à prosperidade econômica ao mesmo tempo que melhora a segurança”, avalia o professor universitário emiradense Abdulkhaleq Abdulla. “Nesse contexto, muitas pessoas estariam di spostas a fazer concessões entre isso e seu direito à privacidade.” O controle é facilitado por uma população de tamanho limitado – 10 milhões de habitantes, sendo 10% emiradenses, 30% árabes ou iranianos, 50% sudeste-asiáticos e 10% ocidentais. “Os emiradenses são uma minoria em seu próprio país. A tecnologia de vigilância também os ajuda a criar uma onipresença”, comenta Andreas Krieg, pesquisador especializado em segurança do King’s College de Londres.

Os entraves que a vigilância em massa impõe à liberdade de expressão são facilmente reconhecidos por nossos in terlocutores. Muitos preferem desligar o telefone quando falam sobre assuntos delicados, enquanto outros acreditam que nem essa precaução é suficiente. “Supomos, ou sabemos, que estamos sob vigilância permanente e que não devemos enviar mensagens de teor político, inclusive pelo WhatsApp”, explica um expatriado europeu que prefere manter o anonimato. A exigência de discrição é a mesma para dois pesquisadores que vivem ali. “Os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos foram um ponto de inflexão neste país”, explica um deles. “O evento fez surgir uma rejeição categórica de qualquer forma de islã político e acirrou a vigilância sobre as mesquitas.” Dependentes da mão de obra estrangeira, os Emirados Árabes também mudaram sua política migratória. “Até então, o pa ís recebia muitos migrantes oriundos de países árabes”, continua o segundo pesquisador. “Após o 11 de Setembro, foram reforçadas as verificações de antecedentes de alguns deles, sobretudo quando se trata de profissões ligadas aos setores educacional e religioso. Já os migrantes do Sudeste Asiático, considerados mais dóceis, passaram a obter visto com muito mais facilidade.”

Mas não basta monitorar o islã e as migrações. Por meio do controle majoritário dos dois operadores nacionais , o governo exerce o direito de fiscalizar as comunicações, que se tornam acessíveis a seus serviços de segurança. “A Etisalat e a Du [antiga Emirates Integrated Telecommunications Company] são obrigadas a filtrar o conteúdo que circula em suas redes de acordo com as prioridades do Estado”, observa a esse respeito o escritório de advocacia Simmons & Simmons.2 Na internet, essa filtragem é realizada por meio de sondas e softwares que verificam o tráfego: a inspeção profunda de pacotes de dados dá acesso aos metadados, ou seja, a quem se conecta com quem ou a quê e quando, bem como ao conteúdo das comunicações não criptografadas. 

Comprometimento a longo prazo

As tecnologias necessárias são compradas pelos Emirados Árabes no Ocidente, por exemplo, da empresa norte-americana McAfee. 3 “Assim como se passa em relação às armas convencionais, as vendas de ferramentas de vigilância não são simples operações comerciais”, explica Tony Fortin, do Observatório dos Armamentos, uma associação que milita por mais transparência para a questão dos equipamentos de guerra. “Elas são parcerias de inteligência que comprometem os países envolvidos a longo prazo.” E é por causa dessas parcerias e do grande número de cabos digitais que passam pelo território dos Emirados Árabes que Shires acredita ser provável “que Abu Dhabi tenha passivamente coletado dados e os tenha fornecido ao governo dos Estados Unidos&rdq uo; no contexto da luta contra o terrorismo.

Após os atentados do 11 de Setembro, os levantes populares árabes de 2011 reforçaram nas autoridades o desejo de monitorar e reprimir tudo o que designam pela expressão inimigo interno. Em março de 2011, mesmo com a renúncia dos presidentes da Tunísia e do Egito, uma petição pela reforma democrática nos Emirados Árabes foi dirigida ao líder do país, Khalifa bin Zayed al-Nahyan. Pouco depois, um de seus signatários, Ahmed Mansoor, um engenheiro que milita pela defesa dos direitos humanos, e quatro de seus companheiros foram presos e condenados – em seguida, acabaram recebendo perdão da pena. “O ano de 2011 foi um ponto de inflexão brutal na segurança”, recorda um pesquisador universitário. “Para lutar contra o que se considerava um risco de contágio das revoltas no mundo árabe, os Emirados Árabes lançaram mão do espantalho do extremismo religioso para endurecer ainda mais a segurança e legitimar a repressão”. A Irmandade Mu çulmana, muito ativa no Egito e com muitos contatos na Península Arábica, foi particularmente visada. Popular e com chances de vencer eventuais eleições em diversos países árabes em caso de transição democrática, a Irmandade era então apoiada pelo Catar, com quem os Emirados Árabes mantêm uma forte rivalidade.

Para reforçar a vigilância e cortar pela raiz qualquer forma de contestação política, em 2012 foi criada a Aut oridade Nacional de Segurança Eletrônica (Nesa), com possibilidade de acessar todas as comunicações do país. A instância está sob a autoridade do Conselho Supremo de Segurança Nacional, cujo diretor adjunto é ninguém menos que Tahnoun bin Zayed al-Nahyan (TBZ), meio-irmão do presidente da federação, irmão do príncipe herdeiro e verdadeiro homem forte dos Emirados Árabes, Mohammed bin Zayed al-Nahyan (MBZ). Além do controle das telecomunicações, as redes sociais foram colocadas sob um pente fino e passaram a ser constantemente monitoradas. “Na época da Primavera Árabe, essas redes permitiam a livre expressão dos povos e foram percebidas como uma tecnologia de libertação”, comenta Krieg. “Então passaram a ser altamente regulamentadas.” A vigilância visual também está se d esenvolvendo, com a instalação de milhares de câmeras nas ruas de Abu Dhabi, Dubai e nos outros cinco emirados.

A defesa que as autoridades fazem desse sistema de vigilância de todos e em todos os momentos é clássica. Ela permitiria reg ular o comportamento dos indivíduos – nos comportamos de maneira diferente quando sabemos ou acreditamos estar sendo observados. No caso de um ataque “terrorista”, ela ofereceria a possibilidade de retomar os eventos a posteriori e identificar os autores. A vigilância em massa também permitiria detectar pessoas que devem ser monitoradas, com a ajuda de ferramentas de inteligência artificial que percorrem e cruzam as massas de dados coletados para localizar comportamentos considerados suspeitos. “No entanto, as ferramentas analíticas usadas para extrair informações ditas ‘utilizáveis’ a partir de grandes conjuntos de dados ainda não deram resultado [contra o terrorismo]”, alerta o criminologista canadense Stéphane Leman-Langlois.4 Porém, ainda que sua eficácia seja questionada, essas ferramentas são muito populares nos Emirados Árabes. E, entre os softwares de processamento de grandes massas de dados, está o Gotham, produzido pela norte-americana Palantir, uma fornecedora das agências de inteligência dos Estados Unidos, bem como da Direção-Geral de Segurança Interna (DGSI) francesa, que se instalou em Abu Dhabi. “Esse software foi vendido sem nenhuma transparência para muitos consumidores em todo o mundo e tem um forte mercado no Golfo”, continua Shires. “É preciso observar que o software sozinho não resolve: ele precisa ser manuseado por especialist as.”

Técnicas sofisticadas

As empresas que fornecem ferramentas para os serviços de inteligência dos Emirados Árabes precisam treinar os agentes para u tilizar esses instrumentos altamente técnicos. No caso dos Emirados, os especialistas em inteligência ocidentais foram ainda mais longe: Lori Stroud, ex-agente da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, revelou à Reuters que a divisão da Nesa especializada em ciberofensiva – isto é, na implantação de programas espiões nos telefones ou computadores de alvos – contratou para executar suas atividades a CyberPoint, empresa norte-americana na qual Stroud foi contratada em 2014. Assim, segundo ela, entre dez e vinte ex-agentes da NSA tinham de cumprir sua missão por alguns anos, até que os agentes dos Emirados fossem suficientemente qualificados para assumir.5

E esses mesmos cidadãos norte-americanos dedicados à luta contra o terrorismo aderiram aos objetivos anti-Primavera Árabe d os Emirados Árabes, lançando inclusive ataques recorrentes contra Mansoor. Mas a CyberPoint não podia ultrapassar certos limites, como hackear o material de cidadãos ou de empresas norte-americanas. Para se libertar desses limites, os Emirados Árabes decidiram, em meados da década de 2010, criar sua própria estrutura, a Darkmatter, que desviou a preço de ouro alguns dos ex-agentes dos Estados Unidos que trabalhavam para a CyberPoint. Três deles – Marc Baier, Ryan Adams e David Gericke – foram condenados, em setembro de 2021, por um tribunal federal norte-americano, a multas de várias centenas de milhares de dólares, correspondentes aos emolumentos dos Emirados Árabes recebidos no âmbito das operações de desestabilização do Catar, como também por operações de vigilância contra alvos dos Estados Unidos. No julgamento de setembro de 2021 do tribunal norte-americano de Columbia contra os três ex-agentes que tinham trabalhado para a Darkmatter, foi observado que “os acusados obtiveram, utilizaram e possuíram de forma fraudulenta dispositivos […] para acessar computadores protegidos localizados nos Estados Unidos”.

Ao longo do tempo, a vigilância foi sendo reforçada com técnicas cada vez mais sofisticadas. Agora sob os holofotes por caus a do escândalo de espionagem de diversos políticos e jornalistas ocidentais, o software Pegasus, da empresa israelense NSO Group, foi usado contra Mansoor, que em 2017 foi condenado a dez anos de prisão por “atentar contra a reputação do Estado”.6 O software incriminado foi a priori vendido com conhecimento de causa por Israel. “Tudo o que fazemos, fazemos com a permissão do governo de Israel”, disse à revista The New Yorker o fundador da NSO, Hulio Shalev.7

“Essa vigilância não serve apenas para extrair informações. Ela funciona também e principalmente como um a tática de intimidação e repressão. Infiltrar-se na vida privada, espionar as comunicações com familiares e entes queridos, isso constitui uma forma de violência psicológica que tem o objetivo de silenciar”, estima Marwa Fatafta, da associação de defesa dos direitos civis digitais Access Now. “O que eu falei? Como as informações pessoais que eles têm podem ser um dia usadas contra mim? As mulheres são particularmente vulneráveis nesse ponto”, insiste a militante de origem palestina que hoje vive na Europa. A jornalista da Al Jazeera Ghada Oueiss ficou consternada ao descobrir imagens suas de maiô no Twitter – fotos hackeadas de seu próprio telefone. Ela apresentou uma queixa em um tribunal dos Estados Unidos contra o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman (MBS), contra MBZ – que se tornou o homem forte dos Emirados Ár abes desde o acidente vascular de seu meio-irmão Khalifa em 2014 – e contra a companhia Darkmatter.

Quem pode ser alvo da vigilância dos Emirados Árabes? As várias respostas obtidas para essa pergunta convergem antes de mais nada para uma incerteza habilmente mantida pelas autoridades. Nada é claro, o que alimenta uma sensação de onipresença da vigilância. Assim, conforme diz um professor universitário, “pesquisadores e jornalistas trabalham com medo de cruzar linhas vermelhas que nem sempre são fáceis de identificar. Também é possível que, além do conteúdo, o idioma usado seja importante e que um texto publicado em árabe ou em inglês seja considerado mais sensível do que um escrito em alemão ou em francês”. 

Sem segredo para o governo

Após a reportagem da Reuters, as atividades da Darkmatter podem ter sido transferidas para novas estruturas. “Essa é uma est ratégia clássica desse tipo de empresa”, explica Fatafta, da Access Now. “Ela se desintegra… depois reaparece com outro nome.” Uma nova empresa dos Emirados Árabes, a Groupe 42 (G42) logo chamou a atenção. Presidida por TBZ, que nesse meio-tempo se tornou conselheiro supremo de Segurança Nacional, a G42 se apresenta como especializada em inteligência artificial e computação em nuvem (cloud computing). Ela está por trás do sistema de mensagens ToTok, que desde 2019 oferece um serviço de chamadas telefônicas pela internet (VoIP), enquanto os aplicativos internacionais clássicos, como WhatsApp e Skype, são proibidos nos Emirados Árabes. O ToTok já tinha sido baixado milhões de vezes quando uma reportagem do jornal The New York Times revelou que as infor mações compartilhadas pelos usuários não eram segredo para o governo emiradense.8

De passagem, o jornal observa que o aplicativo de mensagens foi projetado com base no aplicativo chinês YeeCall. Para desgosto dos Estados Unidos, os emiradenses recorrem cada vez mais ao gigante asiático para saciar sua sede de tecnologia digital. E a escolha feita pelos Emirados Árabes de confiar sua futura rede 5G à operadora chinesa Huawei chegou a acirrar as tensões com os Estados Unidos. Em 2020, na Conferência de Segurança de Munique, Mike Pompeo, então secretário de Estado dos Estados Unidos, lançou um aviso inequívoco: “A Huawei e outras empresas de tecnologia apoiadas pela China são cavalos de Troia da inteligência chinesa”. Os norte-americanos então pressionaram os Emirados Árabes: o país só poderia adquirir seus aviões de guerra de última geração, os F-35, se abrisse mão da parceria com a China. Esforço em vão. “O desafio da digitalização era muito importante para nós”, explicou Abdulla. “Foi uma esc olha difícil, mas preferimos o 5G chinês.” Quem saiu ganhando com a briga foi a França, que colocará oitenta aeronaves do tipo Rafale no lugar dos F-35.

As relações entre os Emirados Árabes e a China poderiam se desenvolver ainda mais? “Os Emirados Árabes veem os Estados Unidos como uma potência em declínio e a China como uma potência em ascensão. Além disso, esta não se deixa embaraçar pelo respeito à privacidade, podendo coletar enormes massas de dados nas quais baseia sua pesquisa sobre inteligência artificial”, explica Krieg. “Os Emirados Árabes acreditam que a guerra do futuro será acima de tudo digital, por isso apostam no desenvolvimento dessas tecnologias chinesas.” E, para mostrar ao mundo seu desejo de estar na vanguarda da vigilância, no fim de novembro o país sediou uma reunião de especialistas em inteligência geoespacial para fins militares e securitários.

Um eldorado para os vendedores de programas espiões

Os dirigentes dos Emirados Árabes Unidos sonham com uma sociedade totalmente digitalizada, na qual a maior quantidade possível de atos da vida cotidiana seja informatizada. Para isso, planejam investir maciçamente em tecnologias de informação e comunicação: segundo Frédéric Szabo, diretor da Business France nos Emirados Árabes, os gastos nessa área devem chegar a US$ 23 bilhões em 2024, o que implica uma taxa de crescimento anual de 8% no período 2019-2024.1 As empresas internacionais do setor, claro, correm para se instalar e crescer dentro da federação – e, entre elas, as que fornecem serviços ou equipamentos de vigilância. Além das empresas norte-americanas ali estabelecidas, como a IBM e a Palantir, a recente normalização das relações com Israel permitiu um estreitamento dos laços com empresas israelenses, como a Rafael Advanced Defense Systems. Empresas chinesas como a SenseTime e a Hikvision também estão se estabelecendo… e não podemos esquecer os grupos franceses. A grande empresa de eletrônicos de defesa Thales planeja fortalecer uma de suas unidades nos Emirados Árabes Unidos, a Thales Emarat Technologies. Reunindo cerca de uma centena de colaboradores, a filial tem hoje inclusive um centro de serviços de defesa; para “desenvolver as capacidades soberanas dos Emirados”, sua atividade deve ser reforçada e complementada por um centro de segurança digital capaz de lidar com as áreas da “cibernética, crip tografia e identificação” – com a previsão de um total de trezentos colaboradores até 2024.

“Centenas de empresas estão se instalando nos Emirados com objetivos comerciais. Algumas também aproveitam as fragilidades d a regulamentação para reexportar”, comenta Cathryn Grothe, que trabalha com tecnologia e democracia no Oriente Médio para a ONG Freedom House. Vários modelos foram criados: empresas de importação-exportação podem servir de ligação entre países difíceis de acessar diretamente e fornecedores de tecnologias ocidentais. Assim, para obter os produtos da empresa norte-americana Blue Coat Systems, que permitem observar e filtrar o tráfego de internet, a Síria de Bashar al-Assad passou pela intermediária Computerlinks FZCO, uma unidade na zona franca de Dubai da empresa de origem alemã Computerlinks.2 Com a revelação do caso, a unidade dos Emirados Árabes foi condenada pelo Bureau of Industry and Security dos Estados Unidos em abril de 2013 por violar as regras de exportação nacionais; e foi multada em US$ 2,8 milhões. Em 2013, a Computerlinks foi comprada pela norte-americana Arrow Electronics; em 2019, a atividade na região foi finalmente assumida por uma filial do Midis Group (que reúne muitos distribuidores de produtos de informática), chamada Mindware. Seu diretor, Philippe Jarre, no entanto, garante que as práticas passadas não existem mais. Outra empresa presente no local, a Digital Forensic Dubai, revende equipamentos e programas computacionais legais de diversos fabricantes, a exemplo da israelense Cellebrite. Para quem? Mistério. “Não há regulamentação para controlar o que acontece nas zonas francas”, comenta Grothe.

“Os Emirados são uma zona cinzenta, onde ninguém se mete em seus negócios. Os países fingem combater esse tipo de lugar, mas na verdade precisam deles”, avalia o pesquisador em cibersegurança Sébastien Larinier. “As unidades instaladas nos Emirados permitem ‘proliferar’ no Oriente Médio em total discrição”, acrescenta Tony Fortin, do Observatório dos Armamentos. Em outras palavras, permitem aumentar as vendas sem restrições. Podemos, por exemplo, comprar de Dubai os produtos oferecidos por empresas ligadas à holding francesa Boss Industries, como a Trovicor, companhia especializada em programas espiões, e a Nexa Technologies, especializada em análise de tráfego na internet? Quando essa pergunta foi feita no estande da Trovicor durante a feira de segurança Milipol Paris, em outubro de 2021, pediram gentil, mas insistentemente, que fôssemos dar uma volta. No entanto, segundo o jornalista Olivier Tesquet, foi por meio de uma subsidiária de Dubai, a Advanced Middle East Systems, que o Egipto de Abdel Fattah al-Sissi conseguiu o sistema de vigilância e filtragem na internet da Nexa Technologies3 – uma aquisição que permitiu ao regime caçar seus oponentes. Após uma denúncia apresentada pela Federação Internacional de Direitos Humanos e pela Liga dos Direitos Humanos, quatro dirigentes da Nexa Technologies foram indiciados, em junho de 2021, pelo polo de crimes contra a humanidade, crimes e delitos de guerra do Tribunal Judicial de Paris por cumplicidade em torturas e desaparecimentos forçados. Essas duas associações também apresentaram queixa contra os dirigentes dessa empresa pela venda de tecnologia de vigi lância ao regime líbio de Muamar Kadafi, em 2007.

Assim, nos Emirados Árabes, algumas empresas intermediárias garantem a transmissão de equipamentos e programas de um pa&iac ute;s para outro.

Outras se encarregam dos pagamentos. A Al Fahad, agora uma filial da empresa estatal dos Emirados Árabes especializada em soluções de segurança tecnológicas Etimad, teria servido regularmente como intermediária entre empresas ocidentais e seus clientes, em particular marroquinos e egípcios. Sem que seja possível vinculá-la a determinada venda, o nome da Al Fahad aparece em 2011 em documentos internos da empresa Qosmos – companhia francesa de softwares de análise de tráfego na internet. Suspeita em uma investigação na França de ter fornecido ferramentas de vigilância ao regime sírio, a Qosmos acabou tendo o caso contra ela cancelado pelo juiz em 2021. Documentos bancários mostram que, no início dos anos 2010, a Al Fahad teria pago diversos montantes à empresa francesa Amesys – que depois se tornou a Nexa Technologies – no âmbito da venda ao Marrocos de seu software de análise de tráfego de internet.4 Segundo Tesquet, ainda encontramos a Al Fahad, em 2013, como intermediária entre a Nexa e o Egito.

As companhias francesas, porém, não são as únicas a fazer negócios com a Al Fahad. Segundo uma série d e e-mails internos publicados no WikiLeaks, a empresa italiana Hacking Team teria também vendido, em 2011, seu programa espião à Direção de Vigilância Territorial do Marrocos por meio dessa empresa dos Emirados Árabes. Que depois pagou as faturas pela aquisição e manutenção do software, bem como pagou durante vários anos as faturas da Hacking Team submetidas a outra estrutura de inteligência marroquina, o Conselho Superior de Defesa Nacional. Por que os emiradenses pagariam pelas despesas de equipamentos e programas de vigilância de países como o Marrocos ou o Egito? “Os Emirados Árabes Unidos estão fazendo projetos no Marrocos por meio da Al Fahad”, explica sucintamente um vendedor da Hacking Team a seus superiores por e-mail. “É uma forma de fazer diplomacia com um país terceiro”, sugere o pesquisador James Shires. “No caso do negócio da Nexa com o Egito, é provável que o apoio financeiro dos Emirados tenha sido acompanhado do compartilhamento de dados”, acrescenta. Dados que podem ser explorados pelos serviços dos Emirados, bem como pelos da França. (É.T.)
 
1 Sarah Pineau, “L’orient, nouvel eldorado du cyber?” [Oriente, o novo eldorado cibernético?], S&D Magazine, Denguin, 22 out. 2021.
2 Jennifer Valentino-DeVries, Paul Sonne e Nour Malas, “U.S. Firm Acknowledges Syria Uses Its Gear to Block Web” [Empresa dos Estado s Unidos reconhece que a Síria usa seu equipamento para bloquear a web], The Wall Street Journal, Nova York, 29 out. 2011.
3 Olivier Tesquet, “Amesys: les tribulation égyptiennes d’un marchand d’armes numériques français” [Amesys: as tribulações egípcias de um traficante de armas digitais francês], Télérama, Paris, 5 jul. 2017.
4 “Maroc: Popcorn, le projet qui n’existait pas” [Marrocos: Popcorn, o projeto que não existia], Reflets.info, 15 nov. 2017. 

Uma regulamentação permissiva

Ao expor, em 2013, a captura generalizada de metadados de chamadas telefônicas nos Estados Unidos, bem como diversos programas de escuta e controle em massa da internet pelos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido, Edward Snowden foi o primeiro a revelar a extensão da vigilância em massa. Em 2021, o escândalo Pegasus mostrou o uso generalizado de softwares de vigilância direcionada pelos países – democracias ou não. Multiplicaram-se as ações judiciais contra a empresa israelense incriminada, a NSO Group, e contra os países presumidamente por trás dessas escutas.

No entanto, para além das ações jurídicas, o escândalo Pegasus revelou principalmente as lacunas da legisla&cc edil;ão nacional e internacional sobre a compra e a venda de ferramentas de vigilância. Geralmente diferenciados das armas convencionais, esses softwares e equipamentos são considerados “bens de uso duplo” – isto é, produtos ou tecnologias que podem servir tanto para uso civil quanto militar, como a energia nuclear e os produtos químicos. Apesar dessa classificação, é preciso observar que o papel das ferramentas de cibervigilância consiste essencialmente em monitorar a atividade dos usuários em uma óptica de controle.

Para regulamentar as exportações internacionais de bens de uso duplo, o Acordo de Wassenaar (1996) propõe uma lista evoluti va de produtos e tecnologias que seus 42 Estados signatários devem monitorar. Mas esse acordo não é obrigatório e está longe de ser adotado por todos os países do mundo, o que pode ser ilustrado pela ausência da China e de Israel. Na União Europeia, cujos países são todos signatários, a lista foi transposta para um regulamento de 2009 sobre itens de uso duplo, revisado em 2021. A revisão melhorou a transparência no assunto: os membros agora devem tornar públicas informações sobre as licenças de exportação, aprovadas ou recusadas. Porém, as ONGs permanecem céticas. “A regulamentação deveria impor garantias contra a violação dos direitos humanos, revogações de licenças de exportação para empresas que contribuem para abusos, bem como mecanismos para que as vítimas poss am buscar reparação”, avalia Likhita Banerji, do programa Tecnologia e Direitos Humanos da Anistia Internacional.

Do outro lado do Atlântico, o escândalo Pegasus levou o Departamento de Comércio dos Estados Unidos a adicionar a NSO Group, além de vários outros fabricantes de programas espiões, a uma lista de entidades cujas atividades são consideradas violadoras da segurança nacional ou dos interesses da política externa dos Estados Unidos. A partir de agora, um mecanismo de licenciamento regulará as trocas entre empresas norte-americanas e a empresa israelense.

Uma medida bem menos drástica do que a moratória sobre os programas espiões reivindicada por diversas ONGs até que seja estabelecido um marco regulatório que proteja os direitos humanos. Apenas a Costa Rica se pronunciou a favor dessa medida até o momento. (É.T.)
 
*Éva Thiébaud é jornalista.
 
1 “Les pays du Golfe, laboratoires de la 5G” [Países do Golfo, o laboratório do 5G], Les Échos, Paris, 21 out. 2021.
2 Simmons & Simmons, “In brief: telecoms regulation in United Arab Emirates” [Resumo: regulamentação das telecomun icações nos Emirados Árabes Unidos], Lexology, 24 jun. 2021.
3 Helmi Noman e Jillian C. York, “West censoring East: the use of western technologies by Middle East censors, 2010-2011” [Ocidente censura o Oriente: o uso de tecnologias ocidentais pelos censores do Oriente Médio, 2010-2011], OpenNet Initiative, mar. 2011.
4 Ler “Big data against terrorism” [Big data contra o terrorismo]. In: David Lyon e Davi d Murakami Wood, “Big data surveillance and security intelligence: The canadian case” [Vigilância de big data e inteligência de segurança: o caso canadense], University of British Columbia Press, Vancouver, 2020.
5 Christopher Bing e Joel Schectman, “Inside the UAE’s secret hacking team of American mercenaries” [Por dentro da equipe secr eta de hackers mercenários norte-americanos mantida pelos EAU], Reuters, 30 jan. 2019.
6 Cf. “The Persecution of Ahmed Mansoor. How the United Arab Emirates silenced its most famous human rights activist” [A persegui&cc edil;ão a Ahmed Mansoor. Como os Emirados Árabes Unidos silenciaram seu mais famoso ativista de direitos humanos], Human Rights Watch, 27 jan. 2021.
7 Ronan Farrow, “How democracies spy on their citizens” [Como as democracias espionam seus cidadãos], The New Yorker, 18 abr. 2022.
8 Mark Mazzetti, Nicole Perlroth e Ronen Bergman, “It seemed like a popular chat app. It’s secretly a spy tool” [Parecia um ap licativo de bate-papo popular. É uma ferramenta secreta de espionagem], The New York Times, 22 dez. 2019.

As múltiplas faces do que acontece https://bit.ly/3Ye45TD

Nenhum comentário: