Para desnazificar o
“gigante”
Para
quem não se deixou levar pela cegueira intelectual e moral do antipetismo, era
fácil notar os diversos elementos nazifascistas que sustentavam a campanha
bolsonarista, como o nacionalismo exacerbado, a defesa de princípios
conservadores, o militarismo, a personalidade autoritária.
Marco Túlio de Urzêda-Freitas, Le Monde Diplomatic
É impossível lembrar do
assassinato de Genivaldo de Jesus pela Polícia Rodoviária Federal de Sergipe,
ocorrido em maio de 2022, e não fazer uma associação imediata com os assassinatos
perpetrados durante o nazismo. Isso porque estamos falando de um homem negro e
com deficiência psicossocial, assassinado pelo Estado com uma bomba de gás,
dentro do porta-malas de uma viatura. E sabemos que uma das formas clássicas de
extermínio em massa de corpos indesejados pelo Estado nazista era justamente a
asfixia em câmaras de gás. A diferença com o caso de Genivaldo é que a sua
execu&ccedi l;ão se deu em plena luz do dia, tendo como câmara de gás o
porta-malas de uma viatura e sendo assistida – e registrada – pelas pessoas que
estavam no local. Um ato de extermínio convertido em espetáculo.
O debate sobre a presença do nazifascismo no Brasil
ganhou força a partir da projeção do então Deputado Federal, Jair Bolsonaro, no
contexto pós-golpe de 2016 e, de modo mais expressivo, durante a campanha
eleitoral para a Presidência da República, em 2018. Para quem não se deixou
levar pela cegueira intelectual e moral do antipetismo, era fácil notar os
diversos elementos nazifascistas que sustentavam a campanha bolsonarista, como
o nacionalismo exacerbado, a defesa de princípios conservadores, o militarismo,
a personalidade autoritária, a demonização da ciência, da arte e dos Direitos
Humanos, e, principalmente, a construção de um inimigo a ser aniquilado. Com a
vitória de Bolsonaro, esses elementos passaram a constituir a base da sua
política, o que se tornou flagrante durante a pandemia de COVID-19, quando o
governo resolveu colocar em prática, de forma escancarada, o seu nefasto
projeto de destruição. Uma pesquisa realizada pela antropóloga Adriana Dias,
que estuda a presença do nazismo no Brasil há duas décadas, conclui que há no
país hoje cerca de 530 grupos extremistas, o que representa um crescimento de
mais de 270% de janeiro de 2019 – posse de Bolsonaro – até maio de 2021.
Nessa linha de raciocínio, parece fazer sentido a
premissa de que, se a nazificação do Brasil se deu a partir da ascensão
política do bolsonarismo, estaria na derrota eleitoral de Bolsonaro o
ponto-chave para a sua desnazificação. Sem dúvida, a vitória de Lula, em 2022,
nos oferece um horizonte social e político mais democrático e, por assim dizer,
menos hostil e destrutivo em todos os âmbitos. Mas será que essa importante
vitória representa, por si só, a superação do nazifascismo no país? Seria o
governo Lula capaz de varrer o projeto bolsonarista e as su bjetividades que
ele ajudou a (re)produzir para o esgoto moral da nossa história? Caso a
resposta para essas perguntas seja “não”, como acredito ser, devemos, então,
considerar uma terceira pergunta, que talvez seja a mais complexa, desafiadora
e urgente da nossa geração: como desnazificar o Brasil?
O primeiro estágio de um projeto de desnazificação
político-social é, sem dúvida, o reconhecimento de que o nazifascismo, como
visão de mundo, ao contrário do que tendemos a pensar, não foi extirpado do
dito Ocidente com o término da Segunda Guerra Mundial. Como todo significante,
fascismo e nazismo são termos em movimento, que podem se deslocar de
determinados contextos espaço-temporais e se introjetar em outros, promovendo,
assim, uma série de repetições com potencial transgressivo de suas próprias
bases conceituais. Em outras palavras, ao viajar entre contextos, como diria o
linguist a Jan Blommaert, esses termos, ainda que carreguem traços de seus
“contextos originais”, adquirem novos contornos e instauram novas
possibilidades de sentido, as quais dão corpo a um vasto e disputado campo de
significação que (re)produz efeitos concretos sobre a realidade social.
Obviamente, não podemos nos esquecer dos campos de extermínio e das pilhas de
corpos em decomposição dispostos como coisas em covas abertas no meio do nada,
mas, por outro lado, devemos ter ciência de que as recontextualizações do
nazifascismo sempre se materializarão em novas práticas e, consequentemente, em
novas imagens. Ou seja, o fato de não vermos campos de extermínio e pilhas de
corpos não significa que um projeto de morte não esteja sendo implementado,
inclusive por vias democráticas, como ocorre(u) em diversas partes do mundo,
incluindo o Brasil. O que não se pode negar, portanto, como bem lembra Adorno
no ensaio O que significa elaborar o passado?, é que “[o] nazismo sobrevive”.
Tendo reconhecido essa dinâmica em nível macro, é
importante, na sequência, reconhecer como Jair Bolsonaro e seu ignóbil governo
são atravessados pelo que podemos chamar de uma linguagem nazifascista. Com
base na perce pção de que “[a] linguagem pode servir ao que há de mais nefasto
na condição humana”, como afirmam os professores Carlos Piovezani e Emilio
Gentile, entendo que a linguagem nazifascista se constitui, no mundo
contemporâneo, por um conjunto de repertórios sociodiscursivos que repetem e
atualizam sentidos e princípios do Nazifascismo, tais como a defesa de
concepções autoritárias, a desumanização de certos corpos ou grupos, e a
construção de “mundos de morte”, para citar o filósofo Achille Mbembe. Essa
linguagem pode ser facilmente observada, entre outros: no lema “Deus, Pátria e Família”, que cita ipsis litteris o lema do Movimento Integralista
de Plínio Salgado, que foi o maior partido fascista fora da Europa; nos dizeres
injuriosos de Bolsonaro e de seus apoiadores, que atentam diretamente contra a
vida, a dignidade humana e o Estado Democrático; e nas performances
sociodiscursivas hostis encenadas por membros da base bolsonarista, que
recolocam uma série de elementos nazifascistas em circulação. Dentre essas
performances, vale recordar o vídeo em que o então Secretário de Cultura, Roberto Alvim,
reencena uma performance do Ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels,
chegando a parafrasear uma de suas falas mais conhecidas : “A arte brasileira
da próxima década será heroica e será nacional. […] ou então não será nada”.
Acerca da linguagem nazifascista, é importante
pensar, sobretudo, nas condições que possibilitaram a sua livre circulação nos
âmbitos do Estado e da vida cotidiana. Ao analisarmos a conjuntura brasileira
nos úl timos anos, vemos que essa linguagem passou a se constituir como prática
político-social a partir de junho de 2013, quando as classes dominantes se
rebelaram ferinamente contra os tímidos avanços socioculturais promovidos pelos
governos petistas. No entanto, o clímax desse processo se deu durante as
movimentações em prol do Golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, em
2016, mais precisamente quando as instituições se calaram frente à homenagem
que Bolsonaro, então Deputado Federal, fez a um torturador e à tortura no
Congresso Nacional. Outra questão a ser considerada é a natureza performativa
da linguagem nazifascista, isto é, o seu potencial para (re)produzir efeitos
concretamente perversos na política e na vida social. Em relação à política,
destacam-se como efeitos a escalada do autoritarismo e a institucionalização da
in júria, da violência e da morte como políticas de Estado, as quais se
projetaram de modo incisivo durante a pandemia. No tocante à vida social, os
efeitos da linguagem nazifascista se expressam na violência introjetada na
dinâmica das relações cotidianas, a exemplo do caso de Marcelo Arruda,
assassinado por um bolsonarista em sua festa de aniversário, que tinha como
tema Lula e o PT. Vários outros exemplos podem ser observados no espaço
virtual, como no comentário de um jovem apoiador de Bolsonaro no Facebook:
“[aos] lulista e essa cambada de viados, índios safados, ladrões e putas… […]
tinha que ser exterminados igual Hitler matou judeus”.
Essa reflexão nos leva ao terceiro e mais complexo
estágio de um projeto de desnazificação, que é o reconhecimento de que a
linguagem nazifascista brasileira, na contramão do que se pode imaginar, não é
um feito bolsonarista. Se concordamos com Aimé Césaire quando ele diz que o
nazismo foi uma atualização dos métodos coloniais aplicados contra a própria
Europa, não há outra alternativa senão concluir que a linguagem nazifascista
corre pelas veias do Brasil desde sempre. Afinal, foi a partir dos métodos coloniais
– como exploração, escravização e extermínio de seres humanos –, engendrados
sob a ótica da superioridade racial, que a nossa história tem sido escrita.
Digo “tem sido escrita” porque a aplicação desses métodos não se restringiu ao
período colonial, tendo se expandido e se reconfigurado nos períodos
subsequentes, inclusive na dita Nova República, marcada por perseguições,
massacres, desocupações, violência policial, criminalização da pob reza,
desigualdades sociais e fraturas na ordem democrática. Para o historiador Jones
Manoel, o Estado brasileiro, a partir da redemocratização, persegue, encarcera,
tortura e mata – sobretudo, pessoas negras e pobres – mais do que na Ditadura
Civil-Militar, o que nos conduz a uma desoladora conclusão: da Ditadura, resta-nos
“tudo, menos a Ditadura”. Como resultado do apagamento repetido de
significantes que remetem às nossas tragédias históricas, a Nova República
institucionaliza, por vias democráticas, o ethos nazifascista que estrutura a
história brasileira e que, portanto, constitui a nossa linguagem como povo e
nação.
O que é preciso extrair desse terceiro estágio é o
fato de que a precarização e extermínio de corpos indesejados pelo Estado
sempre foi um método de organização político-social no Brasil, além de funcionar
como dispositivo de manutenção e controle do frágil sistema democrático
brasileiro; um sistema que (re)nasce de conluios obscenos com os militares e
que se move a partir dos interesses mórbidos das classes dominantes. Nesse
sentido, parece inapropriado, então, dizer que Bolsonaro nazificou o Brasil, já
que o que ele fez foi criar condições para que o nosso ethos nazifascista se
projetasse de um não-lugar para o centro da realidade social. Aqui, cabe uma
referência à teoria psicanalítica de Jacques Lacan, mais especificamente ao
conceito de forclusão, que, em linhas gerais, designa um mecanismo operatório
da psicose que se manifesta por meio da exclusão de um significante primordial
para fora das leis da linguagem, isto é, do universo simbólico do sujeito. No
entanto, a forclusão não implica que o significante excluí ;do permaneça do
lado de fora, mas, ao contrário, que ele retorne: o que é forcluído do universo
simbólico ressurge sob formas alucinatórias. Partindo desse conceito, podemos
compreender que a linguagem nazifascista que parece nascer com Bolsonaro e seu
governo representa, na verdade, o retorno de um significante forcluído,
historicamente colocado para fora do nosso campo simbólico e que agora ressurge
como surto psicótico no real – que é o lugar da lacuna e, ao mesmo tempo, da
disputa.
Tal ressurgimento nos permite ver como o
nazifascismo brasileiro cumpre a sua trajetória histórico-performativa,
atualizando-se como conceito e prática sociodiscursiva, e (re)produzindo
efeitos concretos de destruição na po lítica e na vida social. Além dos
exemplos já citados, um dos efeitos mais expressivos desse movimento foi a
autorização simbólica do Estado para a livre circulação da linguagem
nazifascista no Brasil, o que se observa no fato de que, hoje, qualquer
brasileiro pode, tranquilamente, reivindicar por intervenção militar na porta
de quarteis, fazer saudação nazista durante a execução do Hino Nacional e
cometer atos terroristas para se opor à diplomação de um presidente eleito
democraticamente. Não é preciso ser muito esperto para concluir que essas
pessoas fazem o que fazem porque têm certeza de que não serão responsabilizadas
– que o digam o silêncio das Forças Armadas e a inércia policial frente aos
atos antidemocráticos que se alastraram pelo país desde o fim das eleições.
Outro e feito que vale destacar é a repetição do nosso problemático acordo
coletivo para o esquecimento do horror, efeito que tem nos impedido não somente
de construir uma memória histórica, mas também de consolidar movimentos efetivos
em busca de reparação e justiça. A prova mais recente dessa lacuna moral foi a
decisão, por parte do governo Bolsonaro, de extinguir a Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos Políticos, cuja finalidade era investigar crimes
cometidos durante a Ditadura Civil-Militar brasileira. Grosso modo, o que se
diz com essa decisão é o mesmo que sempre dissemos ao longo da história: o
horror não importa – e, se não importa, não há problema algum que ele se
repita.
Considerando que a linguagem nazifascista perpassa
os três estágios anteriores, não seria infundado julgar que um projeto de
desnazificação político-social deve atentar-se, de modo especial, aos
movimentos complexos e incertos da linguagem, e aos efeitos que ela pode
(re)produzir em nossa vida concreta, a partir da sua relação com os demais
elementos que constituem a realidade social. Não é por acaso que Marx e Engels
definem a linguagem como o espaço da “consciência prática”, estando, portanto,
“entrelaçada com a atividade e o intercâmbio materiais”. Assim, um quarto e
último estágio que gostaria de propor é o desenvolvimento de uma consciência
linguística crítica, que, nas palavras do linguista Norman Fairclough, designa
a consciência de “como práticas de linguagem estão investidas em relações de poder
e processos ideológicos”. Inicialmente, entendo que essa consciência é
fundamental para que consigamos ler criticamente as paisagens linguísticas que
nos cercam, de modo a identificar a presenç ;a ou os rastros da linguagem
nazifascista nos repertórios – dizeres, imagens, interações etc. – que as
constituem e os efeitos de sua mobilização na vida concreta. Em um segundo
momento, a consciência linguística crítica é importante para que possamos
confrontar a linguagem nazifascista, o que se dá por meio do engajamento
crítico em práticas sociodiscursivas atravessadas por sentidos ligados ao
Nazifascismo, tais como os debates sobre moradia, segurança pública, combate às
drogas, armamento civil, direitos sociais etc. O objetivo final é que sejamos
capazes de mobilizar o que o professor Rodrigo Borba chama de pragmática da
recusa, um movimento que conteste a autoridade de repertórios linguísticos
injuriosos na e pela linguagem, e que, nessa recusa, coloque outros repertórios
e sentidos – não injuriosos – em circu lação.
Como dizia o dramaturgo alemão Bertold Brecht, “a
cadela do fascismo está sempre no cio”. Trazendo para o contexto brasileiro,
poderíamos substituir a metáfora da cadela no cio pela do gigante despertado,
já que um dos enunciados que marcaram o retorno do Nazifascismo, como
significante forcluído, para o centro da nossa realidade, foi “O gigante
acordou!”. À época, o que se pretendia dizer era que o povo brasileiro,
“gigante pela própria natureza”, havia finalmente “acordado” para a corrupção
que sempre ditou as regras da nossa política. Pois bem, levamos quase dez anos
para perceber que o gigante que acordou, em 2013, era o Nazifascismo, que, em
seu retorno alucinatório para o real, fez emergir o movimento que temos chamado
de Bolsonarismo. E o que fazer agora com esse gigante despertado?
Por impulso, tendemos a acreditar que o mais seguro seria conduzi-lo n ovamente
ao sono, porém, esse pode ser um caminho desastroso, uma vez que fazer
adormecer significaria forcluir o Nazifascismo outra vez do nosso campo
simbólico, deixando as portas do real abertas para o seu ressurgimento no
futuro. Retomando a ideia de uma pragmática da recusa, o que devemos fazer,
metaforicamente, é cuspir na cara do gigante – como Jean Whyllys fez com
Bolsonaro, em 2016 –, o que significa contestar linguístico-radicalmente a sua
autoridade, quantas vezes for preciso, até que ele mesmo não consiga falar e se
manter de pé. Devemos isso a Genivaldo e às vítimas do governo Bolsonaro.
Devemos isso às pilhas de corpos amontoados sobre a nossa história. E, por fim,
devemos isso a nós, que – ainda – sobrevivemos ao nosso próprio ethos.
Marco Túlio de Urzêda-Freitas é
doutor em Estudos Linguísticos e professor universitário
Fincar
os pés na realidade concreta https://bit.ly/3Ye45TD
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