20 janeiro 2023

Qual direita?

A ultradireita e o bolsonarismo: passado e futuro

Dos resultados nas eleições à capacidade de pautar o debate público, não faltam sinais de consolidação da ultradireita. O diagnóstico ainda deixa, todavia, perguntas no ar. Qual é o papel de Bolsonaro? Há uma coincidência entre bolsonarismo e ultradireita? Para onde vai a parte da coalizão bolsonarista afinada com os discursos e performances da direita tradicional?
Jorge Chaloub/Le Monde Diplomatique


A eleição de 2022 ofereceu sinais distintos para os próximos anos. Destaca-se, por um lado, a impressionante vitória de Lula e a demonstração de força do Partido dos Trabalhadores (PT). Vencer pela primeira vez um candidato à reeleição depois de ter sido preso e alvo de uma sistemática campanha de ataques públicos, durante ao menos uma década, é uma notável demonstração de vigor político. Fazê-lo em meio a um uso ostensivo da máquina estatal com fins eleitorais, qualitativamente distinto de qualquer eleição da República de 1988, é um feito político para poucos e sem dúvida dá ao novo governo, e por meio dele, um horizonte que há muito se via perdido na cena política brasileira.

A vitória da esquerda transcorreu, contudo, ao lado da consolidação da ultradireita na política institucional brasileira. Depois da vitória no pleito presidencial e do significativo crescimento em 2018, as últimas eleições deixaram claro que não estamos diante de um acidente ou ponto fora da curva, mas de um novo momento da política brasileira, no qual a ultradireita é um dos protagonistas. Dos resultados nas eleições para Câmara, Senado e governos dos estados à capacidade de pautar o debate público e influenciar tanto aliados como adversários, não faltam sinais de que 2022 contribuiu para a consolidação desse campo político.

O diagnóstico ainda deixa, todavia, muitas perguntas no ar. Qual é o papel de Bolsonaro? Há uma coincidência entre bolsonarismo, esse conceito ainda em formulação, e ultradireita no Brasil? Para onde vai a parte da coalizão bolsonarista mais afinada com os discursos e performances da direita tradicional do pós-1988? Essas são apenas algumas das questões fundamentais para melhor compreendermos os caminhos dos próximos quatro anos.

Distinguir de certos conceitos, tão utilizados quanto nebulosos em muitas das boas análises sobre o tema, pode ser um bom modo de avançar na resposta, mesmo que inicial, a parte dessas dúvidas. O esforço não é um simples exercício acadêmico, mas um momento necessário para ver as particularidades e trajetórias diversas do que é muitas vezes tomado como uma coisa indistinta, o que impede uma melhor compreensão não apenas do passado, como também dos caminhos do futuro.

Comecemos pelo bolsonarismo. Destaca-se, à primeira vista, sua similaridade com outros conceitos que buscam relacionar distintas práticas políticas às várias formas de institucionalização de lideranças carismáticas na história brasileira ou latino-americana. Falamos aqui de termos como varguismo, peronismo, lacerdismo, lulismo, entre tantos outros. A centralidade do líder é algo comum a todos esses conceitos, mesmo que suas representações públicas transcendam muito os limites da ação de qualquer uma dessas figuras históricas e que eles também expressem certa separação entre a pessoa física, que exerce a liderança, e os movimentos mobilizados por seu nome ou os símbolos a ele relacionados. O bolsonarismo, nesse sentido, tanto é profundamente vinculado a Bolsonaro quanto ganha certa autonomia relativa quando consolida uma rede de atores políticos, que se organizam em torno do nome do presidente, mas não são completamente controlados por ele.

Para esse movimento de institucionalização, a internet ocupa lugar central. Distintamente dos outros casos citados, o bolsonarismo não se estrutura por meio de partidos, movimentos sociais tradicionais, jornais, rádios ou televisões, mas com base em uma institucionalidade virtual, no qual as distintas redes sociais são principal mecanismo de construção de novas formas de rotinização do carisma.1 O bolsonarismo, por um lado, cultiva as regularidades típicas de um processo de institucionalização, que vincula a liderança política a padrões e a submete às imposições de aliados, mas, por outro, aguça uma dimensão caótica graças à dimensão dispersa e descentralizada da internet, que por vezes desconcerta adversários, mas também traz custos na disputa política, como ficou muito claro nas eleições de 2022. A impossibilidade de um controle eficaz das bases constrói uma dinâmica com muito mais proximidade com o fascismo, com sua constante mobilização das bases que frequentemente sai do controle das lideranças e da burocracia, do que as formas de autoritarismo burocrático, como o identificado à ditadura militar brasileira.

O bolsonarismo, contudo, não se confunde com o processo de construção do campo da ultradireita no Brasil, mesmo que tenha tal fenômeno como condição necessária para a sua trajetória de sucesso. Quando Bolsonaro surge como um protagonista na cena política brasileira, já havia ganhado corpo a olhos vistos, há ao menos uma década, um campo que reivindicava de forma ostensiva uma identidade pública radical à direita da direita hegemônica no pós-1988. Tal espaço político foi construído pela ação constante de políticos, intelectuais, empresários, entre outros atores, todos muito bem-sucedidos em ocupar lugares privilegiados na grande mídia, construir instituições e pautar o debate público brasileiro, seja por meio de novas propostas e ideias do que seria uma verdadeira direita, segundo eles ausente da história brasileira, seja por meio dos constantes ataques a inimigos e adversários, que se direcionam com mais intensidade ao PT e às esquerdas, mas que acabam por atacar a ordem política construída após a redemocratização. O bolsonarismo ocupou lugar privilegiado nesse campo e aumentou a intensidade desse crescimento, mas não deixa de ser apenas uma parte de um cenário mais amplo.

Não é possível compreender esse movimento político sem olhar para o mundo, que vê ao longo das últimas décadas o fortalecimento de partidos de ultradireita e o surgimento de líderes que se propõem a romper com a democracia liberal predominante no pós-1989. Muitos desses personagens, como Donald Trump e Viktor Orbán, têm inúmeras semelhanças de estilo com Bolsonaro.

O caso brasileiro, contudo, tem algumas especificidades, em regra consequências da nossa formação social e condição periférica. Aqui, a destruição da democracia construída no pós-1988 é, ao menos em um primeiro momento, o grande objetivo desses atores, aquilo que os une em meio às suas sensíveis diferenças e define os limites do campo da ultradireita. A República de 1988 surge, nessa narrativa, como uma experiência política marcada pela subversão dos verdadeiros valores nacionais pela esquerda, desviada da natureza intrinsecamente conservadora da população brasileira e definida por uma lógica de corrupção do Estado e da sociedade. Deve-se ressaltar que corrupção é entendida como um processo mais profundo de plena degeneração da sociedade e da nação, que tem no desvio de dinheiro público apenas um de seus elementos.

Essa retórica da terra arrasada2 assume feições diversas que, por vezes, retratam a história brasileira em chave puramente negativa, enquanto em outros momentos vê as origens do mal em registros mais recentes. Ela opera como amálgama de uma heterogênea coalizão, composta de reacionários, libertários, fascistas e parte de uma direita tradicional, todos críticos de uma vaga ideia de esquerda muito rapidamente identificada com a República de 1988.

A força política desse grupo e o processo de normalização da ultradireita em parte decorrem da naturalização de um discurso profundamente crítico à ordem política brasileira, hegemônico na maior parte da grande mídia e em muito fortalecido a partir dos governos petistas. A ordem de 1988 passou a ser regularmente retratada – em grandes jornais, redes de televisão e emissoras de rádio – pelas lentes da corrupção endêmica, da natureza inepta do Estado e da má-fé dos políticos, o que criou, ao longo de mais de uma década de reiteração contínua dessa narrativa, o desejo público de ruptura radical com a democracia brasileira realmente existente. É evidente que parte desse sentimento passa pelos limites da própria experiência política e pelo fracasso das promessas da redemocratização, mas não só. As representações da Lava Jato em boa parte da mídia são uma evidência particularmente didática para demonstrar a força e resiliência do discurso mencionado.

A profunda crise da democracia no pós-2013 não se confunde, todavia, com a emergência da ultradireita. Por um lado, a crise democrática decorre em parte de um movimento mais longo de descrédito das instituições e da ordem de 1988; por outro, o fortalecimento da ultradireita teve alguns de seus principais capítulos ao longo dos governos Lula, em tempos de forte otimismo sobre a democracia brasileira. A importante distinção entre os fenômenos não implica, de modo algum, a ausência de relação entre eles. A ultradireita é tanto um ator oportunista, que vê no cenário de crise as possibilidades de construir um campo influente no debate político brasileiro, quanto um elemento central no aprofundamento da situação crítica. Se por um lado é possível afirmar que a crise democrática antecede o protagonismo da ultradireita, por outro cabe destacar que a conjuntura crítica é não apenas terreno propício ao crescimento de tais atores, como também tem tais grupos como agentes centrais de seu aprofundamento e consolidação como novo regime de normalidade. O bolsonarismo é a parcela da ultradireita, organizada em torno de Bolsonaro e com forte uso de linguagens políticas fascistas, que melhor soube se aproveitar desse cenário e assumiu, nas urnas e nas ruas, a liderança do campo, ao menos até o momento atual.
As distinções conceituais não são relevantes apenas para melhor compreender o passado, mas também para imaginar futuros possíveis. As diferenças entre ultradireita e bolsonarismo tornam possível esboçar um cenário no qual o primeiro grupo permanece como um dos principais polos da política brasileira, por sua representatividade eleitoral e nas ruas, mas não tem na família Bolsonaro suas principais lideranças. Se o tempo na Presidência, a boa organização nas redes e os vínculos com as instituições de segurança são bons trunfos, a ausência de um partido organizado, a distância de máquinas estatais importantes e a possível responsabilização por crimes cometidos durante o mandato podem colocar em xeque o lugar do bolsonarismo.

Outros desafios, capazes de desgastar a autoridade de Bolsonaro, vêm de sua estratégia de atuar constantemente em duas frentes: o golpe e a disputa eleitoral. Se durante o governo, sobretudo por uma fraca resposta das instituições, o movimento lhe proporcionou vantagens, desde as eleições a escolha pode gerar insatisfações diversas, capazes de indispô-lo tanto com seus aliados no sistema político, que precisam da manutenção de uma mínima legitimidade do regime, quanto com sua base explicitamente golpista, parte da qual está hoje militando contra a democracia em frente aos quartéis.

Não é simples, entretanto, a construção de uma liderança como Bolsonaro, algo que depende de oportunidades políticas, como as criadas pelo peculiar cenário entre 2013 e 2018, difíceis de repetir de maneira semelhante nos próximos anos. Durante os últimos anos, todos os que tentaram disputar o campo da ultradireita com Bolsonaro acabaram derrotados – caso de Moro, Weintraub, entre outros. Se a inegável perda de poder após a derrota do dia 30 de outubro aumenta a chance dos desafiantes ao posto de líderes da ultradireita, a base fiel torna o atual presidente uma liderança difícil de ser superada, seja nas ruas ou nas urnas. Um embate acirrado pode, inclusive, enfraquecer o campo como um todo.

Mesmo ante tais riscos, é muito provável uma disputa aberta no campo. Resta saber se a aposta será em um candidato que replique elementos da ultradireita global, como o ataque aberto a minorias e a representação das esquerdas como inimigos a serem exterminados, mas que busque reforçar sua aura de normalidade, reduzindo o espaço da linguagem política do fascismo, ou se estaremos diante de alguém que procurará se vender como mais radical que Bolsonaro, que pode, ironicamente, ser retratado por esse eventual adversário como excessivamente covarde ou fraco, sobretudo no momento em que deveria ter dado o passo decisivo rumo ao golpe. Danilo Gentili, candidato esboçado pelo MBL, é desde já concorrente ao primeiro posto; resta saber se e quando haverá algum forte pretendente ao segundo perfil.

A manutenção da democracia brasileira depende, contudo, do isolamento da ultradireita, que deve outra vez ser recolocada em seu lugar de outrora: fora do centro da cena política brasileira. Caso a disputa entre esquerda moderada e direita extremada permaneça a longo prazo, em lógica próxima ao que ocorreu nas últimas duas eleições nacionais, dificilmente escaparemos, cedo ou tarde, de uma ruptura democrática. Para superar tal cenário, três movimentos são necessários: a reconstrução de uma direita ou centro-direita democrática, o amplo reconhecimento da esquerda como ator democrático legítimo, algo que foi profundamente relativizado ao longo dos últimos anos, e a punição dos atos e discursos contra a ordem democrática de 1988. Se a crise democrática e o fortalecimento da ultradireita são processos de temporalidades distintas, os últimos anos reforçaram suas relações, de modo que não há como superar o abismo no qual nos metemos sem combater explicitamente os que atuaram e atuam ativamente para aprofundá-lo.
 
*Jorge Chaloub é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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