A barbárie é branca
Ataque em Brasília também foi alimentado
pela falsa ideia de supremacia – e é mais uma prova cabal do tamanho do racismo
no Brasil. Todos sabemos que minorias sociais seriam barradas muito antes de
chegar perto da Praça dos Três Poderes
Ynaê Lopes dos
Santos, na DW Brasil
Ao assumir o
Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania no último dia 4 de janeiro, Silvio
Almeida fez de seu primeiro ato público como ministro uma ode à necessidade de
dizer o óbvio – depois de quatro anos de um governo que beijou a boca do
autoritarismo e andou de mãos dadas com o fascismo.
Direto e reto, em
pouco mais de 90 segundos, Silvio Almeida afirmou que trabalhadores e
trabalhadoras, mulheres, pessoas pretas, povos indígenas, lésbicas, gays,
bissexuais, transsexuais, travestis, intersexo, não binários, pessoas com
deficiências, pessoas em situação de rua, idosos, vítimas da violência, vítimas
da fome e da falta de moradia, anistiados e seus filhos, empregadas domésticas,
pessoas com pouco acesso à saúde e ao transporte e todos aqueles que tiveram
seus direitos violados: vocês existem e são importantes para nós.
Com esse
compromisso, o agora ministro Silvio Almeida olhava e via as ditas “minorias
sociais”, demonstrando não só suas existências plurais, mas também atentando
para o fato de essas minorias serem enormes, a maior parte do Brasil. Um grande
quinhão da população brasileira que por muito tempo ficou relegado ao segundo
escalão da possibilidade do exercício da cidadania e até mesmo da ideia de
humanidade.
Mais um ato
simbólico que aponta o abismo existente entre o governo que findou no dia 31 de
dezembro de 2022, e o que começa com o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da
Silva no raiar de 2023.
No entanto, como já
disse tantas vezes aqui, lembrando a frase célebre de Tom Jobim, “o Brasil não
é para amadores”.
O pior do Brasil
Exatamente
uma semana depois da posse presidencial mais importante desde a
redemocratização brasileira (talvez a mais importante de toda a experiência
republicana), e quatro dias depois do discurso contundente de Silvio Almeida, o
maior símbolo da democracia do país foi atacado por meio de atos criminosos.
Vestidos com camisetas da seleção brasileira e empunhados da bandeira do
Brasil, milhares de vândalos terroristas invadiram os palácios dos Três Poderes
em Brasília, orquestrando uma onda de destruição e saque nunca antes vista na
história do país.
Desde
a derrota de Jair Bolsonaro nas urnas em 30 de outubro de 2022, um grupo da
extrema direita se organizou com o intuito de inviabilizar a posse do
presidente eleito. Acampamentos em frente a quartéis e batalhões do Exército
pipocaram, a titulação de Lula foi marcada por tensões, que se somaram às
ameaças de ataques terroristas em Brasília durante a posse. O caldeirão
explodiu uma semana depois, jogando dejetos para todos os lados.
O
pior do Brasil apareceu nesse dia 8 de janeiro.
Temos
pessoas das mais variadas áreas analisando os eventos de 8 de janeiro, pensando
não só na sua magnitude, simbolismo e destruição, mas também nas maneiras
corretas de punir os terroristas envolvidos. Uma primeira e importante resposta
já foi dada: a repactuação pela democracia brasileira, entrelaçando os três
poderes, a imprensa, a opinião pública nacional e internacional de maneira
nunca antes vista no Brasil.
No
entanto, é fundamental lembrarmos duas coisas: a primeira é que a história
brasileira nunca foi pacífica, mesmo que ataques terroristas desse porte sejam
inéditos. A segunda é que o fascismo não é uma camisa que se veste e tira, ao
sabor da moda. O fascismo é uma ideologia e um movimento político mantido a
fogo baixo pela extrema direita, que além de autoritário, ditatorial e
violento, se alimenta da falaciosa ideia da desigualdade humana.
Supremacia
branca foi determinante
Não
é por acaso que, ao olharmos bem a cara da maior parte dos terroristas (que,
como bons fascistas, se declaram “pessoas de bem” e patriotas acima de tudo),
veremos que a imensa maioria deles não faz parte de nenhuma “minoria social”. A
maior parte das pessoas que invadiram os palácios dos Três Poderes são homens e
mulheres brancos, da classe média, com alguns representantes da burguesia.
É
crucial fazer uma análise racial e de classe desse episódio, porque sem ela não
entendemos como o movimento ganhou as proporções a que assistimos. Inúmeros
vídeos comprovam que parcela significativa da Polícia Militar do Distrito
Federal foi conivente com os ataques terroristas, chegando a escoltar os
vândalos até a Esplanada, mantendo-se propositadamente inertes às ações
extremistas.
Essa
postura não se explica apenas por uma possível simpatia política da Polícia
Militar e de alguns dos seus comandantes pela causa criminosa. Mas também
porque a Polícia Militar foi, historicamente, formada para obedecer às pessoas
com o mesmo “biotipo” dos terroristas. Descer o cacetete e agir de forma mais
firme (e truculenta) é uma prerrogativa liberada apenas contra negros,
indígenas, LGBTQIA+, trabalhadores, pessoas em situação de rua e
miserabilidade.
Essa
cara feia do Brasil que vimos no dia 8 de janeiro é uma cara branca. E aqui não
se trata de uma generalização, porque sei que a grande maioria da população
branca do país condena veementemente os ataques terroristas. Entretanto é
fundamental encarar de frente que a ideia da supremacia branca e a maneira como
ela é orquestrada no Brasil há décadas foi determinante para o sucesso dos
ataques e crimes cometidos. Todos nós sabemos que as minorias citadas no
discurso do ministro Silvio Almeida seriam barradas muito antes de chegarem
perto dos palácios dos Três Poderes.
Esse
incidente foi mais uma prova cabal do tamanho do racismo no Brasil, e como a
perspectiva da luta antirracista precisa permear todas as instâncias do governo
Lula, sobretudo no que diz respeito à segurança pública. Porque o racismo não é
apenas as limitações e violências que ordenam a vida daqueles que não são
enxergados como seres humanos, ele também é o castelo de privilégios que não
nos deixa ver que, no Brasil, a barbárie é outro nome para a supremacia branca.
Ynaê
Lopes dos Santos é mestre e doutora em História Social
pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É
autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de
Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil
Afrodescendente (Pallas, 2017)
Os fatos em órbitas sucessivas https://bit.ly/3Ye45TD
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