Ave
Sangria: 50 anos de poesia e rock´n roll
Cida
Pedrosa/BrasildeFato
Ser
artista, no nosso país, não é fácil. Por mais que a cultura esteja entranhada
no nosso DNA, viver dela não é simples. Requer coragem. Não é todo dia que uma
banda completa 50 anos de vida, ainda mais sendo pernambucana e de rock. Isso,
por si só, já é motivo de celebração. A Ave Sangria não é só um dos símbolos da
efervescência cultural dos anos 70, mas também um dos melhores conjuntos de
rock progressivo e psicodélico que o Brasil já produziu. Que a nossa cidade já
produziu.
Seus músicos esbanjaram, desde
os primeiros acordes, talento e ousadia, mesclando ritmos tipicamente
nordestinos às notas estridentes das guitarras trazidas de longe. Junto aos
artistas, subiram ao palco a resistência, a contracultura e o fim da caretice.
A poesia deles gritava, bulia com a gente. Bocas vermelhas cantavam uma cidade
grande, grávida, pulsante, de filhos que não morrem, nascem.
A Ave Sangria nos ensinou a
correr riscos, a se perder por aí, que a vida tem seu quê de pedaço de céu.
Remexeu nas entranhas do Recife, escandalizando e encantando, com seus perfumes
e baratchos, jovens como eu, sedentos pelo novo. A banda nos lembrava do
Recife- mangue: aquele que cria, diverso e potente. Das nossas raízes ora
fincadas no solo fértil ora radiando, abrindo os pulmões para o mundo.
Com sua poética
antropofágica, os músicos jogaram boliche com as cabeças quadradas das elites,
falando das moças no cio, mesmo em dias de mormaço, cansaço e chumbo. A paixão
por Seu Waldir, seu apito e sua camisa de cetim foi o estopim para os guardas
costurarem silêncios nas bocas dos artistas, durante o AI-5, momento mais árduo
que vivenciamos da Ditadura Militar no Brasil.
Censuraram, recolheram o
disco e interromperam a carreira brilhante da banda, mas jamais conseguiram
enterrá-los na solidão. Ave Sangria é pássaro, renasce depois de cada batalha
perdida para cantar o porvir.
Não há governo autoritário
que apague a nossa história. Mas precisamos manter os olhos abertos para o
front, as ameaças à nossa democracia são constantes ainda hoje. Se não nos
unirmos para gestar um mundo novo, com um projeto robusto de felicidade,
ficaremos à mercê das imposições, navegando como piratas solitários sem
bandeiras e sem espadas.
Com novos músicos, o
renascimento da Ave também foi um clamor da cidade. As canções, escritas há 50
anos atrás, atingem as novas gerações porque trazem em si uma busca histérica,
luas cheias, vendavais e girassóis.
Lembro que a coisa
que eu mais queria era encontrar o disco da Ave. Eram raros os exemplares que
sobreviveram à repressão e à enchente do Capibaribe, em 75. Quando cheguei ao
Recife, com 15 anos, escutei na casa de um amigo e consegui gravar o álbum em
uma fita K7. Era quase um sonho realizado, ouvi até quebrar. Ave Sangria foi
uma ebulição na minha vida, me rodeou de artistas que alimentaram meus sonhos,
afiaram meus dentes e me tornaram poeta.
Da nossa parte, além de uma
sessão solene em homenagem aos 50 anos do Ave Sangria, também protocolamos, na
Câmara Municipal, um projeto de lei que propõe que a banda Ave Sangria seja
Patrimônio Cultural Imaterial do Recife. Estar neste espaço é também fomentar a
cultura da minha cidade e do meu Estado, abrir a Câmara Municipal para que os
artistas e fazedores da cultura tenham poder de fala e possam ser devidamente
reconhecidos pelas suas trajetórias.
No futuro, mesmo os que não
cantaram a plenos pulmões Hei, Man poderão saber que existiu uma banda única na
nossa cidade, pelos lados da Tamarineira, atenta ao todo e aberta ao mundo. Que
sigamos navegantes no mar da poesia. Viva a cultura! Viva a Ave Sangria!
*Poeta, vereadora no Recife pelo PCdoB
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