Recursos
para pesquisa estão protegidos, afirma Luciana Santos
Para a ministra do MCTI, sem inteligência
artificial não haverá reindustrialização. Entrevista para o Valor em 31.05.2023
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É
bem provável que a engenheira pernambucana Luciana Santos seja a ministra que
mais transita entre ministérios. “É que a ciência está em todo o lugar; na
mudança climática, no combate à fome, na transição energética”, diz. Primeira
mulher à frente da pasta de Ciência, Tecnologia e Inovação, Santos briga contra
o tempo para tentar reerguer um dos ministérios mais atingidos pelos contingenciamentos dos últimos
quatro anos. Ela garante que desta vez os recursos do Fundo Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal base financeira do
conhecimento científico do país, estão protegidos.
O
engajamento do pai, professor de matemática que passava os sábados dando aula
aos quatro filhos, foi o que a fez interessar-se pelas ciências exatas. O
esforço do professor deu resultado. Dois dos três meninos e Luciana tornaram-se
engenheiros elétricos.
A
primeira experiência pública com ciência e tecnologia foi como secretária da
área no governo de Pernambuco na gestão de Eduardo Campos, morto em 2014.
Santos também foi deputada estadual, prefeita de Olinda, deputada federal e
vice-governadora de Pernambuco. Aos 57 anos, ela também é presidente nacional
do PCdoB.
A
ministra está, agora, concentrada em programas voltados à biodiversidade e não
vê como a reindustrialização brasileira possa dar certo sem o domínio da
inteligência artificial. Para ela, com uma estrutura mais arrojada, o reajuste
no valor das bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), após longo período de congelamento, e o aumento da oferta
podem evitar o êxodo de talentos para o exterior. Abaixo, os principais trechos
da entrevista ao Valor:
Valor: Há pouco tempo o governo
liberou mais de R$ 4 bilhões para o MCTI. O que isso representa para um
ministério que passou um longo período com cortes de recursos? Há riscos de
mais contingenciamento?
Luciana Santos: O contingenciamento de
recursos do FNDCT no governo anterior foi uma demonstração do descompromisso
com a ciência e a tecnologia. Esse fundo é formado com contribuições da própria
iniciativa privada como contrapartida de isenções fiscais. Mas a recomposição
integral foi aprovada pelo Congresso em tempo recorde. Não há nenhum risco de
contingência. Mesmo com a reforma fiscal o fundo está salvaguardado. Não é
simples porque mexe no orçamento federal. Mas há poucos dias tivemos a primeira
reunião do conselho-diretor do fundo para debater ações.
Valor: E quais são as
prioridades?
Santos: Assinei uma
portaria para garantir que os recursos do fundo vão ao encontro do programa
eleito nas urnas: um país inclusivo e sustentável para modernizar a
infraestrutura de pesquisa, gerar inovação e ampliar a qualificação dos
recursos humanos. Isso inclui transformação digital, continuidade de uma matriz
energética sustentável, um legado do Brasil, e com atenção à mudança climática.
Também precisamos de uma reindustrialização em novas bases em função da grande
revolução tecnológica que ocorre no mundo.
Valor: Que tipo de
reindustrialização a senhora imagina?
Santos: Não podemos pensar
em reindustrialização sem dominar a inteligência artificial nas várias cadeias.
Não há como garantir a fabricação de qualquer produto sem robôs, seja na
indústria automobilística ou farmacêutica ou numa fábrica de talheres. A
biodiversidade brasileira tem potencial pouco explorado. Podemos ter um papel
relevante na bioeconomia, por exemplo. Isso garantirá a reindustrialização em
bases verdes.
Valor: Já existe algum
projeto voltado à biodiversidade?
Santos: O MCTI vai lançar
chamada pública de R$ 20 milhões para apoiar projetos de inovação na Amazônia,
com foco no uso sustentável da biodiversidade. Outra, de R$ 50 milhões, vai
avançar nos territórios de povos indígenas e populações tradicionais, que, além
de contribuírem para a manutenção da vegetação nativa, abrigam conhecimento
associado à biodiversidade local.
Valor: E como valorizar os
pesquisadores brasileiros? O aumento no número de bolsas pode ajudar?
Santos:
Estamos trabalhando para fortalecer o CNPq, ampliando o orçamento da agência.
Depois de dez anos de congelamento, anunciamos reajuste de 40% nas bolsas do
mestrado e doutorado; 25% para pós-doutorado; 75% para a iniciação científica
(graduação); e 200% para a iniciação científica júnior (ensino médio). Isso
contempla 258 mil
estudantes e pesquisadores, num investimento de R$ 2,38 bilhões.
Valor: Muitos talentos
acabam indo para o exterior. É possível reverter esse movimento?
Santos: Esse é um fenômeno
que queremos enfrentar. Tínhamos um cientista de 43 anos no Laboratório
Nacional da Ciência da Computação, em Petrópolis, que foi levado pelo Google.
Às vezes, o profissional nem precisa sair do país. Mas também temos coisas que
atraem o pesquisador. O circuito de luz do CNPEM, por exemplo, é um equipamento
singular no mundo. Quando há base científica, estrutura e equipamentos
arrojados você consegue fazer o movimento inverso. Além disso, é preciso uma
base industrial com capacidade de competir com o que chamo de “ataque
especulativo”, a “guerra pelo cérebro”. Na área de TI há déficit de 100 mil
desenvolvedores de softwares hoje no Brasil e chegará a 500 mil em três anos.
Valor: A pandemia revelou
a importância da ciência na saúde pública. Que lições podem ser tiradas?
Santos: A primeira lição é que
mesmo em países com capacidade para produzir vacinas, como no nosso caso,
faltava o ingrediente farmacêutico ativo (IFA). A dependência da Ásia mostrou
uma vulnerabilidade. Depois, a guerra na Ucrânia trouxe a falta de
fertilizantes. Isso colocou em xeque a globalização liberal. Hoje, os países
fazem arranjos em cadeias regionais e locais. Temos que garantir isso.
Valor: No caso das
vacinas, de que forma o MCTI pode atuar?
Santos: O MCTI integra o grupo
executivo do complexo industrial da Saúde, que retoma o debate. Voltamos a ter
sarampo e poliomielite, que eram páginas viradas na história do país. A UFMG
está na fase final dos testes da vacina contra covid 100% brasileira. E
trabalha em outras doenças, como a de Chagas. Se o Brasil não cuidar de suas
doenças tropicais, quem cuidará? E nossa pretensão não é pequena. Queremos
também exportar para América Latina e África.
Valor: E na área da
educação? A pandemia expôs a desigualdade no acesso ao ensino à distância.
Santos: Além do programa
conectar e capacitar, para resolver o déficit de profissionais, temos parceria
com o Ministério da Comunicação em questões como fibra óptica, para facilitar o
ensino a distância e a telemedicina. Só isso pode atingir a população excluída.
Se a desigualdade já é cruel, a desigualdade digital aumenta o abismo.
Valor: O governo anunciou
a reativação da Ceitec, fabricante de semicondutores. Quais são os planos?
Santos: A gente só domina
a tecnologia quando fabrica. Claro que não queremos uma base de alta
complexidade como a de Taiwan. Mas, se o Brasil não desenvolver, vai ter que
importar. E temos inteligência para isso. Criamos grupos de trabalhos
interministeriais com prazos para apresentar as condições econômicas e a viabilidade
técnica.
Valor: Muito se fala sobre a
necessidade de ampliar parcerias entre empresas e academia, já que ambas fazem
pesquisa. O que a senhora pensa sobre isso?
Santos: Esse é um desafio
desde que eu era estudante. O Brasil tem uma produção científica relevante.
Somos o 13o no mundo em produção de papers, com conhecimento validado
internacionalmente. No entanto, isso não se traduz em produtos e serviços. No
ranking da inovação, o Brasil é o 57o. Esse paradoxo tem que ser resolvido. Um
dos caminhos é o Estado mediar o encontro entre a universidade e o setor
produtivo. A Embrapii [Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial]
também é uma ferramenta que facilita a interação. Envolveu R$ 2,82 bilhões
em2022 (incluindo recursos de empresas).
Valor: A propagação das
fake news é um tema que envolve a briga com as chamadas Big Techs. O que falta
para controlar melhor a disseminação de notícias falsas?
Santos: Temos o Comitê
Gestor da Internet [CGI.br], que se relaciona com as plataformas digitais. Esse
comitê tem uma câmara técnica que cuida da autorização para quem quer ingressar
nas plataformas brasileiras. Mas precisa de muita regulamentação. Existe também
o projeto de lei do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do PL das fake
news. Os provedores não podem se eximir de algo que virou não só meio de
manipulação política como de violência.
Valor: A senhora é a primeira
mulher à frente desse ministério. O que isso simboliza?
Santos: Primeira mulher e
negra. É preciso ser estimuladora. A engenharia ainda é um universo muito
masculino. Na ciência nem tanto. E as mulheres têm mostrado que fazem bem. Não
se trata só de debate de igualdade de gênero, mas de excelência na profissão
científica e tecnológica.
Vozes diferenciadas no arco-íris do
governo Lula https://bit.ly/3pDwWDO
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