03 junho 2023

Sustentabilidade energética

Transição energética vai demandar uma política de educação planetária.

Célio Bermann, da USP, defende que o Brasil só conquistará sustentabilidade energética com redução no consumo e políticas de eficiência energética.
A entrevista por Ellen Nemitz, publicada por ((o))eco/Unisinos

 

A partir da posse da nova gestão federal, em 2023, o Brasil passou a investir fortemente em uma agenda ambiental de destaque internacional, ao menos no discurso. No que tange à descarbonização, no âmbito dos compromissos globais de combate às mudanças climáticas, o Ministério de Minas e Energia anunciou, somente nas últimas semanas, diversos programas de estímulo aos biocombustíveis, notadamente o RenovaBio e o incentivo ao etanol, além de projetos para colocar o país na liderança da geração de energia renovável – com enfoque em fontes solar e eólica. Com efeito, a fatia da oferta energética brasileira fornecida por estas modalidades vem crescendo: pela primeira vez em 12 anos, o primeiro trimestre deste ano registrou mais de 90% de energia produzida a partir de fontes renováveis em um crescimento de 3,3 gigawatts até abril de 2023.

Em que pesem decisões importantes e celebradas, como a negativa do Ibama para a exploração de petróleo e gás da foz do rio Amazonas e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso para a construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) que impactariam as bacias do Pantanal, contudo, o país tem em andamento projetos com alto potencial nocivo ao meio ambiente. Um exemplo notório é a intenção de implantar uma usina nuclear às margens do rio São Francisco, região conhecida pela escassez hídrica e já impactada por barragens anteriores para a geração de energia hidrelétrica, além de projetos de energia eólica offshore (em alto mar) que ainda carecem de estudos mais aprofundados.

Conversamos com exclusividade com Célio Bermann, professor associado do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo e coordenador do Grupo de Pesquisa em Governança Energética, que destacou a fragilidade da transição energética brasileira — que ele chama de diversificação energética, dadas as características da oferta de energia em países do sul global, em geral menos dependentes dos combustíveis fósseis. “A gente precisa tomar cuidado para não ir no sentido contrário do esforço internacional apoiados nessa presunção de que, como nós temos uma contribuição das energias renováveis na nossa oferta energética bastante acentuada em relação ao contexto internacional, isso nos permitiria avançar na utilização dos combustíveis fósseis ou da energia nuclear”, alerta Bermann.

O pesquisador salienta ainda que o Brasil e o mundo apenas conquistarão a sustentabilidade energética se investirem em educação para reduzir o consumo e em políticas de eficiência energética, uma vez que não é possível atender a demanda, nos níveis atuais, com fontes alternativas. Além disso, ele lembra: energia renovável, grande estrela brasileira, não significa energia limpa, e casos de significativo impacto ambiental, como a hidrelétrica de Belo Monte, podem se repetir se não mudarmos os rumos da política energética. Há rumores, segundo ele, da retomada da intenção de se construir usinas hidrelétricas no Rio Tapajós, região ocupada pela etnia Munduruku, a ser financiada pelo capital chinês. “É uma situação que eu espero que não aconteça. Mas se já houve um acordo de que o capital chinês está aberto a construir usinas hidrelétricas no Brasil, vai ter muita coisa ainda para a gente acompanhar.”

Eis a entrevista.

No artigo “Energy transition or energy diversification? Critical thoughts from Argentina and Brazil” o senhor e demais pesquisadores fazem uma análise bastante crítica sobre a transição energética brasileira e argentina, dizendo que ela deveria, em realidade, ser chamada de diversificação energética. Por quê?

A percepção que hoje se tem da necessidade de uma transição energética foi construída com base na extrema dependência de vários países, principalmente do chamado norte global, considerados ou identificados como desenvolvidos, em relação aos combustíveis fósseis e as emissões de gases de efeito estufa, notadamente dióxido de carbono e metano. [Estes gases são] identificados como um grande problema referente às mudanças climáticas, cujos efeitos afetam, ainda que principalmente as economias de países menos desenvolvidos, também nações como ItáliaAlemanhaEstados Unidos e Inglaterra, por exemplo. Para evitarmos os eventos extremos, é preciso limitar as emissões derivadas dos combustíveis fósseis, e daí se cunhou o termo transição energética, ou seja, a necessidade de uma transição energética significa reduzir essa extrema dependência que hoje o mundo tem em relação aos combustíveis fósseis, notadamente carvão e petróleo, mas também gás natural, de forma que sejam evitadas as consequências do seu ponto de vista ambiental.

Isso define a ideia da necessidade de que todo o planeta assuma ou passe por um processo de transição energética no sentido de uma descarbonização. Não vamos discutir aqui as queimadas e a perda da cobertura florestal, que também é mais um ingrediente para o desequilíbrio climático e que, no caso do Brasil, exerce uma responsabilidade maior em função do desmatamento nos seus biomas florestados. Mas a dependência dos combustíveis fósseis, embora seja generalizada, tem níveis diferentes entre os países do norte e do sul global. Então esse estudo que foi publicado na revista Energy Policy faz uma referência a duas economias latino-americanas, Brasil e Argentina, mostrando que nesses países – e aí sim a possibilidade de se generalizar para todo o continente latino-americano e para o chamado sul global, envolvendo Índia e África – a inserção das chamadas fontes renováveis não é um processo de transição no sentido cunhado pelos países do norte global, mas de diversificação energética, na medida em que passam a participar de forma mais efetiva fontes energéticas que até então eram marginais, como a energia solar e a energia eólica, além das biomassas.

Até porque a participação de energia renovável já é muito maior na América Latina em relação aos países do norte global, certo?

Nós já temos uma oferta de energia em que, diferentemente do contexto internacional, a presença das energias renováveis é bastante significativa. Mas a gente tem percebido, ao longo do tempo, que a presença das chamadas energias não renováveis, como os combustíveis fósseis e a energia nuclear, têm aparecido nos últimos anos com uma presença mais significativa do que ela já teve em épocas passadas. A gente precisa tomar cuidado para não ir no sentido contrário do esforço internacional apoiados nessa presunção de que, como nós temos uma contribuição das energias renováveis na nossa oferta energética bastante acentuada em relação ao contexto internacional, isso nos permitiria avançar na utilização dos combustíveis fósseis ou da energia nuclear.

Eu desconheço formalmente qual é a posição do atual governo, mas o governo anterior falava que até 2040 seriam instalados 10 gigawatts de energia nuclear no país, com a perspectiva de incluir Angra 3 e uma usina que já tem o projeto, em princípio, definido de 6,6 gigawatts no médio São Francisco. Esta região na beira do Rio São Francisco é ocupada por uma população que tinha sido anteriormente expulsa das suas terras para dar lugar ao reservatório da usina hidrelétrica Luiz Gonzaga. Essa usina deslocou uma população e foi ocupar uma área que agora é objeto de um projeto dessa envergadura numa região de restrição hídrica – a produção de energia nuclear demanda água para refrigerar o reator e depois lança essa água de volta para o mar ou para o rio cinco graus mais aquecida, o que altera toda a biota. Além disso, a água deixa de estar disponível para a agricultura, irrigação e abastecimento. Também não há um programa de destino dos resíduos, do chamado lixo nuclear. Então, o que é energia dita limpa em relação à energia nuclear? E qual é a posição do atual governo em relação a esses projetos?

Outro ponto de atenção é a hidroeletricidade. Acompanhamos o problema de Belo Monte, no Rio Xingu, e o que aconteceu com as comunidades ribeirinhas e com a população indígena. Uma das coisas que eu soube que o Lula foi fazer na China, dentro dos projetos que foram ativados, foi a usina de São Luís do Tapajós, que é uma usina no Rio Tapajós, uma região ocupada pela etnia Munduruku [projeto iniciado em 2009, arquivado pelo Ibama, cujos estudos foram retomados já no governo Bolsonaro]. É uma situação que eu espero que não aconteça. Mas se já houve um acordo de que o capital chinês está aberto a construir usinas hidrelétricas no Brasil, vai ter muita coisa ainda para a gente acompanhar.

A Petrobras vem anunciando novos investimentos de longo prazo em energias renováveis como a eólica offshore, mas também existe um indicativo do governo em ampliar o investimento em novas refinarias, por exemplo. Este movimento é condizente com uma política energética sustentável?

O último plano decenal de energia, por exemplo, prevê que até 2031 a gente pode ter um aumento na produção diária de petróleo no Brasil, principalmente em função do pré-sal, dos atuais 3,4 milhões de barris por dia para 5,2 milhões de barris. Naturalmente isso não quer dizer que esses 5,2 milhões de barris por dia seriam queimados em território nacional, mas a perspectiva de aumento acentuado na produção de petróleo e também de gás natural indica uma definição de política energética que encontra na exportação de petróleo e de gás natural um expediente para alavancar recursos.

Esse esforço de aumento da produção de petróleo e de gás está presente em todas as grandes empresas petrolíferas. Todas elas falam da preocupação em diminuir as emissões de gases de efeito estufa na sua operação, algumas falam em investir no hidrogênio ou em energias renováveis de uma forma geral, mas todas elas preveem aumento da produção de petróleo, busca por novas reservas e aproveitamento de hidrocarbonetos não convencionais.

A Petrobras prevê um investimento no plano estratégico de 2023-2027 de 4,4 bilhões de dólares para o que ela chama de iniciativas de baixo carbono. Mas o volume total de investimento previsto pela empresa é de 78 bilhões de dólares, ou seja, estamos falando de apenas 6% da previsão de investimento que iria para iniciativas de baixo carbono. Isso dá uma boa ideia da lógica petrolífera que ainda preside o mundo: há muito mais a intenção de um greenwashing do que efetivamente contribuir de forma célere para a transição energética ou para a diversificação energética, como é o nosso caso.

O Brasil historicamente vem investindo em energia hidrelétrica, com impactos ambientais importantes, como a já citada Usina de Belo Monte. Paralelamente, temos projetos de energia nuclear preocupantes, afora a sensibilidade envolvida em grandes projetos de energia eólica onshore e offshore. Neste sentido, podemos entender que energia renovável não é necessariamente sustentável. Como o senhor avalia o atual caminho trilhado pelo Brasil em termos de políticas energéticas?

O termo “energia limpa”, usado inclusive pela ONU (Organização das Nações Unidas) no Objetivo do Desenvolvimento Sustentável número 7, não existe sob o ponto de vista do rigor acadêmico. Toda energia é produto do processo de conversão físico-química, com consequências ambientais.

Energias renováveis, ao contrário dos combustíveis fósseis, podem ser obtidas no curto prazo e não no tempo geológico que os combustíveis fósseis exigem. E aí a energia hidráulica é considerada uma energia renovável porque faz parte do ciclo da água, bem como outras fontes, entre as quais a solar, a energia dos ventos, das biomassas, a geotérmica e, mais recentemente no debate internacional, o hidrogênio verde. Mas nem toda a energia renovável pode ser considerada sustentável. Essa é uma denominação que, às vezes, aparece misturada nas referências bibliográficas ou nos documentos oficiais.

No caso brasileiro, quando a Empresa de Pesquisa Energética ou o Ministério de Minas e Energia apresentam seus dados em relação ao que se considera energia renovável, aparece lá lenha e carvão vegetal como biomassas renováveis, como se toda lenha consumida e todo carvão vegetal produzido no Brasil fossem originários de florestas plantadas, produção de pinus e eucalipto. Isso não é verdade. Nós temos ainda de forma considerável a lenha e carvão vegetal originários de mata primária, da floresta amazônica. E isso, em função das carvoarias que existem na região amazônica hoje, mostra que há uma dificuldade de a gente ter essa referência do quanto que é originário de reflorestamento e o quanto que é mata nativa, muitas vezes derrubada de forma ilegal. Então, essa questão da renovabilidade da nossa oferta de energia também tem esses problemas na forma como os dados são apresentados.

Então, não existe energia limpa. A única energia limpa é aquela que não é consumida. Aquela que é resultante de uma mudança cultural de hábitos, tanto em países do norte como do sul global, para reduzir a necessidade de utilização de energia para a satisfação das necessidades. Também as políticas de eficiência energética, com equipamentos mais eficientes ou com formas de utilização que não envolvam a [mesma] quantidade necessária de energia.

O governo brasileiro também vem anunciando o fortalecimento de programas de incentivo ao etanol, por exemplo, e aos biocombustíveis. Como o senhor avalia este movimento em prol de combustíveis automotores menos poluentes?

Apesar dos esforços de transição energética, a dependência de combustíveis fósseis no mundo vai passar do limiar que hoje está definido em vários países de descarbonização até o ano 2050. É impossível descarbonizar a economia internacional até 2050. Além disso, a possibilidade de substituição, na escala internacional, da gasolina automotiva pelo etanol, seja de cana de açúcar, milhobeterraba ou de outras fontes, é extremamente difícil, porque, segundo um estudo que eu e meu grupo de pesquisa elaboramos com dados que estavam disponíveis em 2018, o percentual de substituição a partir da produção de etanol, das mais variadas origens, não chegava a 5% do total de gasolina consumida. Ainda, uma área ocupada na plantação de monoculturas de cana-de-açúcar, de milho ou de beterraba levantavam a questão do conflito “terra para alimento ou para energia”, “terra para satisfazer 2 bilhões de pessoas que passam fome no mundo ou para em torno de 1,4 bilhão de veículos que hoje rodam em todo o planeta”. Este é um debate energético importante de ser levado em consideração também.

biodiesel que hoje é utilizado para mobilidade, produzido não só no Brasil, mas também na Argentina e nos Estados Unidos, por exemplo, usando matérias-primas como óleo de dendê, óleos de girassol ou banha animal, não chega a substituir 2% do consumo de óleo diesel no mundo. Em termos de combustíveis para veículos, nós estamos muito aquém da possibilidade física de alcançar de forma mais significativa a transição energética. Durante o evento Rio+20, em 2012, eu publiquei um trabalho em que demonstrava que a perspectiva de substituir o óleo diesel, na época, pelo biodiesel, demandaria a ocupação de uma terra que superaria a terra arável disponível para agricultura, da forma como a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) entende. Então, a gente está numa escala em que dificilmente a transição ou a diversificação energética no Brasil vai ser alcançada, senão com a redução significativa da demanda de energia. Não vamos simplesmente substituir por fontes renováveis, não vai ser possível fisicamente fazer isso. E isso exige uma política que não é apenas energética, não é apenas industrial, mas é uma política que envolve educação planetária.

O que isso significa, na prática?

A gente está hoje muito preocupado com a inteligência artificial e com a submissão tecnológica que os habitantes do planeta Terra têm em relação aos aparelhos, como os celulares… A preocupação maior deve ser hoje também com a mudança de costumes, de hábitos, de forma a se aprender a reduzir a necessidade de ter energia. Eu não estou querendo dizer com isso que a gente vai voltar à Idade das Pedras e que a eletricidade não vai ser mais necessária, não é isso. Mas há sim a necessidade de se reduzir de forma substancial o comércio internacional de alimentos, por exemplo, e que a satisfação alimentar seja encontrada localmente e não mais a partir da vinda de produtos de outras regiões ou de outros países para satisfazer esta demanda.

Eu vou dar o exemplo do Brasil, também de uma pesquisa que foi feita pelo meu Grupo de Pesquisa em Governança Energética. O que foi apurado? A melancia encontrada num supermercado no Recife, em Pernambuco, tinha vindo de caminhão do Ceagesp, em São Paulo, tendo sido produzida no meio do [rio] São Francisco. Essa lógica se estende aos grãos, à carne, ao frango e toda a comercialização de alimentos, via de regra por combustíveis fósseis. Então, se queremos reduzir as emissões, uma das pré-condições é reduzir ou extinguir essa lógica que transforma o alimento em alimento mais combustível e mais emissões.

E isso passa por políticas públicas, não é, professor? Porque senão você passa essa responsabilidade para o consumidor que, afinal de contas, está apenas indo ao supermercado comprar seu alimento.

Sim, o consumidor quer consumir a melancia e fica exasperado pelo preço, porque, afinal de contas, não é só o preço de produção da melancia, que era o preço de venda do agricultor lá no médio São Francisco, mas precisou agregar todo o custo do transporte, que envolve não só o consumo de energia, mas toda a manutenção dos caminhões, os pedágios que são cobrados para poder chegar até São Paulo e depois despachar para o Recife.

Voltando ao artigo “Energy transition or energy diversification? Critical thoughts from Argentina and Brazil“, o grupo defende a necessidade de uma distribuição justa de energia e também da participação das comunidades na definição das políticas energéticas. De que forma uma política energética mais participativa e não tão verticalizada como é hoje poderia contribuir para um cenário mais adequado às nossas necessidades?

Essa é uma questão absolutamente importante: a chamada descentralização energética. No Brasil, a Constituição Federal define que é a União que tem a atribuição de legislar sobre energia, uma pré-condição que impede a desejável descentralização, uma vez que é na legislação que você define as possibilidades de iniciativas de Estados e municípios em termos de produção, gestão e descentralização energética. Apesar desta restrição, que precisaria ser alterada via Proposta de Emenda Constitucional (PEC), um quadro mais recente abriu a possibilidade de irmos nessa direção. Por exemplo, a Resolução Normativa da ANEEL número 482 de 2012 [hoje atualizada pela ANEEL a partir de novas resoluções] normatizou a micro e minigeração distribuída de energia elétrica no nosso país e instituiu o sistema de compensação de energia elétrica que hoje alimenta o aumento da micro e da minigeração, o que faz com que a potência hoje de usinas fotovoltaicas no Brasil seja da ordem de 8,6 gigawatts e as eólicas de 25,7 gigawatts — a eólica representando quase 14% da oferta de energia e a solar fotovoltaica 4,5% da oferta, segundo os dados mais recentes do SIGA (Sistema de Informações de Geração da ANEEL). Então, a possibilidade de se investir no telhado e produzir a sua própria energia ganhou força e possibilitou esse aumento da participação da geração distribuída na oferta de energia, com todas as consequências benéficas que ela traz para o país.

O caleidoscópico tempo presente https://bit.ly/3Ye45TD

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