18 julho 2023

Uma crônica de Urariano Mota

A Tropicália, Tropicalismo 55 anos depois

As páginas do romance “A mais longa duração da juventude” expressam que opções estéticas são também opções de vida.
Urariano Mota*


 

Nesta semana, visitei o Memorial da Democracia de Pernambuco, no Sítio da Trindade, no Recife. Ali, em companhia de Francêsca, Carla, Alfredo e Zanoni, pudemos acompanhar o trabalho de recuperação da nossa história dos anos 60 até hoje. Documentos, vídeos, pinturas vinham até nossos olhos guiados por Lilia Gondim. Súbito, diante de fotos de militantes assassinados pela ditadura, de Soledad, Pauline, Jarbas, Anatália, Ramires, e tantas e tantos, surgiu a imagem e José Bartolomeu Rodrigues.  E apontando a sua foto, lembrei: 

– Um dia, depois de muito tempo sem vê-lo desde o Ginásio Ipiranga, onde estudamos na infância, eu o reencontrei em 1970 no Colégio Alfredo Freyre, em Água Fria. E lá iniciamos uma discussão, em que ele me disse: “Que Chico que nada, rapaz! Esse Chico é o cara dos olhos verdes, das meninas Carolina.  A música da revolução é o Tropicalismo. Presta atenção: el nome del hombre muerto, isso é Guevara. É a música dos revolucionários, rapaz!

Bartolomeu, na sua foto, estava de volta. A história é assim, quando menos esperamos, ela retorna à nossa memória. E nessa volta, bem sabemos que os acontecimentos fundamentais não têm data de morte. Eles sempre se renovam, eles se reinvocam. Então veio o sol da política, as divisões entre os jovens contra a ditadura. Não à toa, Bartolomeu era conhecido na clandestinidade pelo nome de guerra Tropi. Em nosso rencontro no Alfredo Freyre, ele não citou os versos “Estou aqui de passagem / Sei que adiante / Um dia vou morrer / De susto, de bala ou vício”. Mas em 1972, com a idade de 23 anos, Bartolomeu foi morto em “troca de tiros”, expressão com que a ditadura carimbava os mortos sob tortura, presos e desarmados. Naquele dia, no Alfredo Freyre, eu não me dei conta da antevisão dos tropicalistas na esquerda armada.    

Então chega fevereiro de 2007.Numa entrevista que Gilberto Gil me concedeu, ele se referiu a uma parcela do público brasileiro que adorava o Tropicalismo. Em nenhum momento ele explicitou que eram jovens militantes da luta armada, foquistas, como a grande maioria da resistência estudantil os chamava. Mas ele fala isso de outra maneira, por um método de aproximação. À minha pergunta:

– Na ditadura militar, eu lembro que o movimento tropicalista era relacionado a determinada linha de combate clandestino. Você faz essa relação? Por exemplo, tinha a ala da esquerda que era do lado de Chico Buarque, tinha outra ala da esquerda que era do Tropicalismo, você vê isso?

Gil me responde:

– Acho que sim. Acho que era. As pessoas associavam sua política, seu compromisso… (tosse) a determinados campos, na própria política e no campo estético também. Então o Tropicalismo estava ligado às correntes mais … mais audaciosas, mais, que predicavam uma ruptura maior, que predicavam uma ruptura de um convencionalismo estético, artístico, e etc., e também político, não é? Nós gostávamos das correntes políticas mais autônomas, mais abertas, menos subordinadas a linhas programáticas clássicas.

Para mim isso era claro desde a vida e morte de José Bartolomeu Rodrigues de Souza, o Tropi. A música dos tropicalistas me deu um referencial preciso de reconstrução da vida na memória, no romance. E a eles voltei no livro “A mais longa duração da juventude”, para expressar uma discussão viva dos anos da ditadura: 

 “– É muito melhor compositor. Não acha? – Vargas me questiona.

– Hum. Quem é maior? – respondo sem entender a pergunta.

– Caetano Veloso, é claro. Está dormindo? – Ele volta.

– Eu? Nada. Sim, Caetano Veloso é bom – falo.

– Ele não é bom. Ele é o melhor compositor da música popular brasileira – Vargas responde.

– Não, aí é demais – falo. – Olhe, já é uma batalha gostar de Caetano. Mas ver Caetano como o melhor é demais.

– Eu gosto de Caetano Veloso – Alberto fala. – Ele tem umas coisas boas.

– Boas?! – Vargas se exalta. – Ele é o melhor compositor da música brasileira…. – ‘de todos os tempos’, ele ia dizer. Hoje percebo que se conteve com uma modéstia do Barão de Itararé, que ia se chamar de Duque, mas baixou o título para Barão. E continuou Vargas:  – É o melhor! Caetano Veloso é o melhor compositor do tempo da revolução.

Olho em volta e percebo que nas mesas vizinhas se faz um silêncio. Todos nos escutam, concluo. Assuntos de música popular, no Brasil, são os que mais despertam interesse, depois do futebol. Mas na ditadura falar na altura da voz de Vargas, usando a palavra ‘revolução’, é demais. Nelinha lhe toca o braço e sussurra ‘cuidado’. Ele sorri:

– Tranquilo, minha santa. Estou falando de cultura.

– Estamos falando sobre música, não tem problema – Alberto fala.

– E tudo é revolucionário, não é? – Vargas completa. – O cinema de Glauber é revolucionário, a juventude é revolucionária, tudo é revolucionário. Menos Chico Buarque.

Todos riem. Ocorre o que às vezes se chama brincar com o perigo. Zombar do abismo. Mas na hora o que me ocorre é o cometimento de uma injustiça.

– Eu não acho – falo. – Chico, para mim, é o melhor compositor de música popular brasileira hoje. Ele tem uma poesia que não tem Caetano. Chico é de fazer música, não é de dar espetáculo. Caetano é escandaloso, entende?

– A revolução é um escândalo! – Vargas quase grita. Alberto ri, Nelinha sorri para o companheiro, que se vê estimulado. – Chico é o compositor de Carolina, Januária na janela. É o poeta dos olhos verdes das meninas. Isso é revolucionário? Preste atenção: a música de Chico é o passado. Ele é um compositor de 1960 pra trás.

– Olhe… – eu queria dizer, se compreendesse então, que Chico ligava a tradição à música de 1970, assim como Paulinho da Viola fez essa ligação com o samba. Mas há um tempo em que possuímos o sentimento e não encontramos as palavras, que ainda não nos chegaram pela experiência. Então arquejo, como um náufrago, diante da catilinária. – Olhe, você quer poesia melhor que … – e tento cantarolar ‘se uma nunca tem sorriso, é pra melhor se reservar…’ – que ‘a dor é tão velha que pode morrer’, hem? – E baixo a voz: – Chico é a esquerda do futuro.

– Ele não é nem do presente – Vargas responde. – Que dirá do futuro. Preste atenção, muita atenção: ‘sei que um dia vou morrer de susto, de bala ou vício’. Escutou? Esta é a música de agora, dos jovens revolucionários de hoje.

– Isso não é de Caetano. É de Gil, Torquato e Capinam – digo.

– De Gil? – Vargas responde. – Não importa. Está no disco de Caetano. Ele fez da música um hino revolucionário. Isso é o que importa”.

As páginas do romance “A mais longa duração da juventude” expressam que opções estéticas são também opções de vida.

[Imagem: reprodução/Llew Mejia]

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