O livro “Sob o céu de junho” e as manifestações de protesto de 2013
Análise dos prostestos de 2013 à luz do Materialismo Cultural, destacando importância da conscientização e refletindo sobre desdobramentos políticos que levaram à ascensão neofascista no Brasil
Urariano Mota*/Vermelho
Com o subtítulo de “As manifestações de 2013 à luz do Materialismo Cultural”, o jornalista e professor Fábio Palácio procura responder às muitas questões dos protestos de junho daquele ano. No seu precioso texto, ele se fortalece com as lições do chamado Materialismo Cultural, desenvolvido por Raymond Williams. E o resultado é digno de discussão e de qualidade rara. Já na introdução, Fábio Palácio avisa que é preciso investigar como um movimento que prometia uma revolução democrática pôde desaguar numa contrarrevolução conservadora. “Junho foram muitos junhos”, ele escreve.
De imediato, merecem reflexão as seguintes linhas do livro:
“Não basta resolver os problemas ditos ‘materiais’- emprego, salário, transporte, alimentação e moradia – para que ideias avançadas brotem por si mesmas. Vimos, na história recente do Brasil, que as coisas não se passam dessa forma. O florescimento de certas ideias requer meios e planejamento próprios. A negligência nessa área pode ser fatal, como temos visto desde 2013.
No ciclo de governos progressistas que, em nosso país, perdurou de 2003 a 2016, importantes carências foram solucionadas. Mas não havia o mesmo investimento na necessária conscientização sobre o que estava sendo feito”. (Negrito meu)
É verdade e na verdade: no Brasil, quando no poder, governos de esquerda nem sabem como o investimento na conscientização pode ser feito. Deles não se pode dizer que não tentam. Mas no campo da Cultura, por exemplo, muitas vezes valorizam manifestações populares pelo índice do ibope. Ainda que, no ministério da cultura sob Gilberto Gil, ao mesmo tempo que fez o incentivo ao saber popular que antes era marginalizado, não transformou essa prática em conhecimento de massa, para conhecimento de todo o mundo. Não tocava no rádio. O imenso bem valorizado não atingia o conhecimento das massas de estudantes colegiais. E nesse caso, vem o segundo ponto da falta: os gestores e mestres nas escola públicas do Brasil não são conscientizados para o valor civilizatório da literatura. Aliás, nem gostam muito do alimento esquisito, exótico, d a literatura. Graciliano Ramos, para eles, é simplificado ao nível de Vidas Secas, um livro indicado para o Enem. O imenso escritor comunista de Memórias do Cárcere é oculto. Já o gênio de Machado de Assis é imposto com a leitura obrigatória de Dom Casmurro ou de Memórias Póstumas de Brás Cubas para jovens adolescentes. O dano não é pequeno. No Recife e em Olinda, por exemplo, a poesia negra, rebelde, do grande Solano Trindade é um bicho selvagem, de terror. Aliás, Solano quem? Em resumo, a conscientização do pensamento avançado contra a opressão não há. O que, para os governos de esquerda, é um desastre. (Isso deveria ser assunto para outro artigo). Mas voltemos ao necessário livro de Fábio Palácio.
Nele, há o registro flagrante de uma jornalista, testemunha ocular que escreveu: “Os nazifascistas, em pelotões de indivíduos de cabeça raspada e marombados gritavam ‘Sem partido! Sem bandeiras!’ e agrediam os militantes de esquerda. A extrema direita começava a ganhar a disputa nas ruas”. Então, grupos pouco expressivos ligados à direita mais conservadora começaram a ganhar terreno e conquistar adeptos. Escreve o autor: “Usavam para isso um discurso de fácil digestão, repleto de expressões de ódio e preconceito, oferendo soluções fáceis, do mais absoluto senso comum a almas angustiadas, sedentas de uma vida plena de beleza e justiça”.
No livro, Fábio Palácio divulga as luzes de Raymond Williams antes que existisse a internet, quando o pensador alertava para a ilusão de que as pessoas acreditavam, diante da televisão, ver o acontecimento verdadeiro. Afinal, estavam vendo! Mas o telespectador esquecia que eram bem diferentes as imagens, para um mesmo ato de protesto, se a câmera filmava os policiais sendo apedrejados, ou se filmava a população recebendo gases tóxicos e tiros.
Mas depois da internet, as manifestações de 2013 teriam feito ver que se havia deixado uma separação rigorosa entre o mundo real e o virtual. O mundo virtual teria deixado de ser um mundo à parte, fora das ruas. Como observa o autor: as conexões deixaram de depender dos computadores e passaram a ser feitas com smartphones. Segundo citação de Fábio Palácio, as novas tecnologias fizeram uma ubiquidade. O trecho é de Nina Santos, em “Social media logics: visibility and mediation in the 2013 Brazilian protests”:
“Nos dias atuais, quando o uso das novas tecnologias não representa mais uma fuga da realidade, mas, ao contrário, ela se justapõe ao mundo off-line, elas não podem ser vistas ou analisadas de forma separada. Não se trata de entender as ações digitais como acessórias, complementares ou anteriores ao ativismo off-line; em vez disso, pode-se vê-las como parte constitutiva e transformadora do próprio movimento. […] Não se trata de passar do virtual para o real, mas de entender que o próprio virtual tem impactos concretos e reais na sociedade”.
Quanto a essa citação, observo: é sempre necessário escrever sobre o que se vê ou se viu há pouco. É preciso fazer uma narração aprofundada do que se vê, e isso não se consegue no imediato, na velocidade do filme e fotos transmitidos on-line pelo smartphone. A narração da fala “ao vivo”, a narração oral do repórter, do participante do ato, não medita sobre, mesmo que seja de um repentista nordestino. É necessário refletir sobre o que se vê, ter o passo necessário da escrita. O texto consegue ver de modo mais contundente, talvez até acima da destruição on-line de arranha-céus atravessados por aviões suicidas em 11 de setembro de 2001. Para usar a terminologia mais recente, é o mundo off sobre o mundo on. E esse off se torna on, recupera para o presente e futuro o imediato das câmer as, que não fazem mais que o registro flagrante. Entre outros, vejam Norman Mailer narrando a luta de Cassius Clay contra George Foreman:
“Um golpe girou a cabeça de Foreman em noventa graus, um cruzado de direita com luva e antebraço que bateu na lateral da mandíbula; o contato duplo não tinha como Foreman não ter sentido; primeiro da luva, depois do braço nu, atordoando e abalando. Paredes devem ter começado a rachar no interior do cérebro. Foreman cambaleou e tropeçou e encarou Ali furiosamente, e foi atingido de novo, pá-pum!, mais dois. Quando aquilo acabou, Ali pegou Foreman pelo pescoço como um irmão mais velho castigando um irmão caçula grandalhão e bobo, e olhou para alguém na plateia, algum inimigo ou talvez um amigo rancoroso que tivesse previsto a vitória de Foreman, pois Ali, segurando George pelo pescoço, botou para fora uma longa língua branca”.
A luta de Clay X Foreman se deu em 30 de outubro de 1974 no Congo, transmitida para milhões de pessoas pela TV. A narração em livro é de um ano depois. Mas que flagrante, novo smartphone!, poderia ser dito. Aliás, o próprio livro “Sob o Céu de Junho” é mais uma prova do valor da reflexão acima do imediato. E com ferramentas teóricas para melhor orientação.
Como o autor esclarece: “o materialismo cultural construiu poderosos antídotos contra o determinismo tecnológico. A obra do marxista Raymond Williams contém libelos contra abordagens tecnicistas da cultura, as quais seguem pontificando nas mais diversas análises sobre as novas tecnologias. O determinismo tecnológico é uma visão poderosa e ainda hoje entranhada sobre as relações entre tecnologia e mudança social.”
No livro, há um capítulo magistral de nome “Consciência e espontaneidade no movimento transformador”. Nele é lembrado que Lênin deu grande contribuição ao movimento socialista quando escreveu a respeito da relação entre o elemento consciente das lutas e a espontaneidade das massas. Se as lutas de resistência não tomam uma dimensão política maior, elas acabam por ser digeridas pelo sistema, que é sempre hábil em transformar bandeiras de revolta em benefício do próprio sistema. Abandonado à espontaneidade, o movimento de massa se torna presa fácil da ideologia dominante. Numa crise econômica, pode até mesmo levar as bandeiras para o fascismo.
No livro, Fábio Palácio chama atenção para o fato de que, na sociedade brasileira, o discurso contra os partidos e a política, levantado a determinada altura nas manifestações de junho de 2013, massificado levou à derrota da democracia e dos interesses do povo, com a posterior ascensão de um governo neofascista, de Temer a Bolsonaro. Mas a sua contribuição vai além desse fato pela análise inspirada.
No final da leitura, ficamos todos pensativos quanto à realidade que ainda virá. As movimentações de 2013, sob nova forma, estão incrustadas no presente e futuro. Ou como Fábio Júnior bem escreve na última página: “As manifestações de junho jamais terminaram. Seu espírito continua no ar. Não apenas porque o episódio continua inspirando debates, interpretações e lições, mas também porque jamais foram esgotadas. O clamor por uma sociedade mais próspera e justa segue entalado na garganta. Esse clamor ainda pode resultar, quando menos esperarmos, em novas explosões de energia nas ruas. Resta saber, uma vez mais, como as forças em disputa se comportarão”.
*Jornalista, escritor
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