Alceu Valença: 'A selfie acabou com a coisa do artista'
Cantor pernambucano de 77 anos, que teve público renovado por seu bloco temático, lança o disco 'Bicho Maluco Beleza' dia 26, mesma data que o Mombojó leva ao streaming o álbum 'Carne de caju', só com recriações de canções de Alceu
Silvio Essinger/O Globo
Inaugurado em 2021, em Olinda, o centro cultural Casa Estação da Luz é um desses lugares que fazem o andarilho (e patrono da instituição, além de autor da canção que lhe deu nome) Alceu Valença reclamar — entre risos — de não poder mais frequentar.
— A selfie acabou com a coisa do artista! — esbraveja ele, convalescente de Covid-19, por Zoom, de sua casa em Olinda. — De vez em quando, estou aqui na sala, e passa (um ônibus) dessas empresas de turismo, com guias chamando as pessoas e dizendo (emposta a voz): “Esta é a casa do cantor Alceu Valença, e ela tem um banheiro ao ar livre lá no segundo andar!” Que loucura da p*, né?
Aos 77 anos, o cantor e compositor pernambucano vive um pico de popularidade, no qual se juntam seus fãs angariados no auge comercial dos anos 1980 aos jovens que vão atrás do Maluco Beleza, seu bloco que já atraiu 600 mil pessoas, na região do Ibirapuera, em seu desfile paulistano no pré-carnaval. Para uns e para outros, é que ele lança no dia 26 o disco “Bicho Maluco Beleza — É carnaval”, cheio de frevos e cirandas festivos. E, no mesmo dia, o grupo pernambucano Mombojó vai para o streaming com “Carne de caju”, seu primeiro álbum não autoral, só com recriações de canções de Alceu.
Assim como fez em 2014, com o disco carnavalesco “Amigo da arte”, Alceu resolveu homenagear o amigo e parceiro Carlos Fernando (1938-2013), mentor da série de LPs “Asas da América”, que juntou grandes nomes da MPB para divulgar o frevo pernambucano. Desta vez, o cantor pensou em reunir em seu disco, para duetos com ele, “pessoas que são carnavalescas”. E aí entraram de Ivete Sangalo, Maria Bethânia, Elba Ramalho e Lia de Itamaracá a Lenine, o compadre Geraldo Azevedo, o filho Juba e o cantor Almério (esse, “da turma daqui que tá surgindo com a música legitimamente pernambucana e brasileira”).
— Sendo simpático e cantando bem, vai cantar comigo! — diz Alceu, que no disco entregou a produção e os arranjos ao seu maestro Tovinho, e gravou pela primeira vez com o guitarrista Zi Ferreira, depois de quase 50 anos de trabalho contínuo com seu braço-direito, Paulo Rafael, vitimado por um câncer em 2021. — Zi toca muito, acho que Paulinho mandou ele para a gente!
Lançada pelo cantor em 1991, “Bicho Maluco Beleza” abre o disco frevando feroz, num dueto com Ivete Sangalo. Já a seguinte, “De janeiro a janeiro”, vai num embalo de frevo-canção, para a participação de Maria Bethânia (que, de Alceu, já gravara “Na primeira manhã”). De frevo em frevo, o disco chega a “Maracatu” e ao trio de cirandas “Quem me deu foi Lia”/”Moça namoradeira”/”Janaína”, com Lia de Itamaracá. Mais uma ciranda (a sua “Luar de prata”) e, já que o papo é Lua, tudo termina em frevo, numa versão, com Geraldo Azevedo, de “Táxi lunar” (parceria Alceu-Geraldo-Zé Ramalho).
— Às vezes as pessoas não notam, mas em tudo que eu faço tem que ter uma viagem. Você pode ouvir esse disco inteiro, de uma vez, ou música a música — avisa o cantor, que faz shows de “Bicho Maluco Beleza” no Rio (dia 26, no Casa Bloco no MAM), em São Paulo (3/2, em desfile de seu bloco), Olinda (8/2, na abertura da folia) e Recife (13/2), no encerramento do carnaval, no Marco Zero).
O disco de intérprete do Mombojó
Um dos grupos mais vitoriosos da música independente brasileira, nascido em Recife em 2001, de uma geração posterior ao mangue beat, o Mombojó vinha de um álbum com o projeto Modern Cosmology (com Laetitia Sadier, cantora do grupo inglês Stereolab) e estava preparando seu sétimo álbum autoral quando o vocalista Felipe S veio com a ideia de “Carne de caju”.
— Achei que seria legal agora, que já tem mais de 20 anos de banda, a gente tentar criar um projeto especial que possa revisitar a cada verão. Nessa época entre dezembro e o carnaval, historicamente o Mombojó faz poucos shows, a gente não tem muita conexão com esse momento — diz. — Podia ser um exercício de um disco de intérprete. E, nesse processo, me veio a música “Amor que vai”, de Alceu, que eu adoro desde muito cedo e pensei: “Caramba, ficaria muito boa com um arranjo Mombojó!”
O tecladista Chiquinho Moreira foi um dos que torceram o nariz para a ideia.
— A meta era gravar duas músicas e ver o que acontecia. Mas aí essas músicas de Alceu estavam tão presentes no nosso inconsciente coletivo bairrista, pernambucano, recifense e olindense, que a gente conseguiu, em dois dias, fazer a base de oito músicas — conta. — A gente conhecia as harmonias e as melodias, foi muito natural dar uma interpretação Mombojó às músicas. Não queríamos mudá-las da água para o vinho.
“Estação da luz”, “Como dois animais”, “Tomara” e “Olinda” estão entre as músicas que o grupo releu e que, de certa forma, o levaram de volta a Pernambuco depois de anos morando em São Paulo e correndo o país.
— Por mais que se meta a querer fazer música cosmopolita, nosso passaporte é a música pernambucana. A gente não consegue se desprender desse sotaque nem tem esse desejo — diz Chiquinho.
Alceu Valença, que ouviu algumas das versões do Mombojó, deu a sua aprovação:
— As pessoas fazem as versões e as subversões que elas quiserem, é sempre assim. Quando vou cantar uma música de Luiz Gonzaga, “Juazeiro”, por exemplo, eu faço minhas subversões também.
E Felipe S reconhece a continuidade que existe na música nordestina:
— Alceu sempre lutou para não ser tachado como roqueiro ou como artista pop, ele sempre teve um respeito muito grande por Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Ele pegou essa bagagem deles e passou adiante da maneira dele.
Poema de Aberto da Cunha Melo com ilustração de Emilio Pettoruti http://tinyurl.com/23cdpsax
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