06 janeiro 2024

Futebol: paixão e cultura

Nem amor: notas sobre o sentimento, futebol e esgotamento
Nelson Rodrigues foi muito influenciado por Nietzsche: talvez sua percepção sobre o amadorismo no futebol seja um eco disso
Helcio Herbert Neto/Le Monde Diplomatique

A palavra amador deriva do mais cantado dos sentimentos – mesmo em usos vulgares, é a isso que o termo remete. Geralmente, é estabelecida uma oposição diante uma vocação mercantil, interesseira, mercenária. Em espantosa abrangência, serve para manifestações tão diferentes quanto pornografia, arte e os esportes. Talvez no futebol isso esteja à flor da pele, com o abismo que separa a relação obstinada dos torcedores e o crescente volume de dinheiro envolvido nos negócios, com os modelos de Sociedade Anônima do Futebol (SAF) no horizonte. 

O debate é antigo e desgastado. A defesa do amadorismo, no princípio do século XX, era um eco aristocrático dos primeiros momentos da modalidade no Brasil: os clubes de estratos sociais médios e elevados, os sócios bem-alimentados, as cerimônias pomposas e a restrição para a circulação de negros, pobres e desviantes de qualquer gênero por esses circuitos reforçavam a tendência. Apesar de inúmeras transformações, essas tradições se mantiveram na composição de diretorias e nas decisões excludentes de entidades esportivas.   

A cruzada contra o amadorismo equivalia ao confronto perante o caráter de segregação do futebol. A mitologia consagra o Vasco da Gama como um símbolo na disputa pela profissionalização dos atletas – o mesmo time que foi impedido de jogar em seu próprio estádio em 2023 por conta da proximidade com uma favela. Havia sido privada de acompanhar os jogos a segunda maior torcida do Rio de Janeiro, cidade marcada pela ocupação irregular de encostas, pela desigualdade social e pela carência de recursos básicos para sobrevivência.   

A oposição se deslocou com o tempo. Nos anos 1990 se tornou comum que as arquibancadas atacassem os jogadores que sinalizavam que poderiam sair dos clubes. Era a emergência do futebol globalizado, com o fluxo dos principais nomes do esporte para a Europa. O assédio das milionárias propostas novamente abriu o abismo entre a experiência espontânea dos torcedores e o pragmatismo de quem vive do futebol. No mesmo período, houve mais investimentos privados, a exemplo do caso da ISL, que dispararam as comparações com um passado idílico, de craques e pureza. 

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A Gaia Ciência é um dos livros mais comentados de Friedrich Nietzsche. Não devido à retidão de seus argumentos ou a uma exposição menos prolixa: ali, a escrita é novamente fragmentária, com aforismos que se sucedem e raramente se conectam. A bem da verdade, é uma tendência do filósofo alemão. Quando não se expressa assim, como em O Nascimento da Tragédia, fica nítido o apelo a um germanismo intenso e hidrófobo – a juventude do autor é marcada pela influência do músico de Richard Wagner, com a visão redentora para a Alemanha e, no limite, com o antissemitismo. 

O que torna o trabalho tão interessante para os pesquisadores é a incidência de termos-chave. Tragédia, Dionísio, Zaratustra e eterno retorno se interpõem de forma sufocante, em sintonia com os últimos anos de vida do autor. Conceitos que aparecem em controversas anotações, cuja legitimidade foi questionada por anos, ganham corpo em A Gaia Ciência. Destino e tempo se colocam com urgência naquelas linhas, com desdobramentos éticos e epistemológicos. Em outras palavras, com o novo panorama, o modo como agir perante o mundo e o que é possível saber sobre a realidade se alteram. 

Todo o blá-blá-blá na metafísica de Nietzche fica menos abstrato no instante em que vem à tona amor fati. O conceito é a resposta a qualquer fatalismo – amor-destino, amor ao destino. O propósito passa a ser desejar a vida como de fato é, sem lamentar pelo passado, sem esperar a redenção no futuro. Aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Essa disposição para o mundo, até à beira de doloroso desterro, é um fator que pode atribuir certa coesão ao mosaico de intuições do autor alemão. Não surpreende que isso tenha virado moeda corrente nos discursos motivacionais de autoajuda. 

Para que não soe frívolo, o conceito precisa se resolver no agora: os gestos estão no presente, definem a capacidade de se colocar à altura dos acontecimentos do passado e, em algum sentido, do futuro. Sem a inclinação para agir, no momento decisivo, de maneira condizente, tudo se perde. Palavras e silêncios mal empregados fazem ruir histórias inteiras. As atitudes precisam ser tomadas nos instantes críticos, na iminência de tudo se esvair. É divertido imaginar que o Nietzsche que tanto pragueja contra seus adversários, que filosofa com martelo, encontre esse sentido no amor. 

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Nelson Rodrigues foi profundamente atravessado pela filosofia nietzscheana. A sua gramática induz a essa conclusão: os nomes de seus livros, colunas em publicações da imprensa e até as suas tiradas também. A vida como ela é para o escritor e jornalista se assemelha, sob esses aspectos, com essas necessidades a que o autor alemão faz referência quando pensa amor fati. Ao se deparar com o futebol, sua reação é defender a aura amadora e o que a cerca – a paixão do torcedor, a dimensão épica dos jogos, a dedicação dos jogadores aos times.

Isso resgata o histórico do futebol no país, Nelson Rodrigues era abertamente reacionário e se vangloriava de assim ser chamado, à luz do seu apoio ao golpe de 1964 e às tradições menos abertas da cultura brasileira. Há um saudosismo de tempos que não mais voltam, quando a realidade era ingênua e intensa. Isso se manifesta na defesa do jornalismo no passado, em oposição à modernização da imprensa a partir da década de 1950. De certa maneira retoma igualmente ao futebol, a despeito de as conquistas da seleção entre esse período e 1970 desmontarem a nostalgia.  

Nietzsche não se esquivava da pecha de aristocrático. Defendia a noção de nobreza, inclusive para a filosofia, ao manter a contraposição entre senhor e escravos viva no pensamento alemão. Não foram os textos nietzscheanos que começaram a utilizar essa relação para dar conta de dinâmicas sociais. Mas seu simples emprego é, no mínimo, desconfortável para os leitores de um país que conviveu com séculos de sequestro de enormes contingentes populacionais da África para trabalho forçado. E que, mais de cem anos depois da abolição, ainda convive com os impactos desse mecanismo

Se em geral o amor em Nelson Rodrigues é mais dramático e folhetinesco – leiam suas peças! –, o sentimento de certa forma é uma constante na sua relação com o futebol. Até em comentários na televisão, o jornalista se esforça para demonstrar a condição de apaixonado por seu clube, o Fluminense. Com relação à seleção brasileira, o amor é transposto para cobrança, exigência, bronca. Mesmo assim, é mantido nas colunas da imprensa e nos programas televisivos dos quais participava. De forma ambígua, o sentimento conduz esse relevante leitor de Friedrich Nietzsche. 

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Nos últimos anos, discussões precipitadas sobre os rumos do futebol brasileiro se arrastaram por horas. Para alguns, os campeonatos a partir de então seriam dominados por dois clubes – aqueles de saúde financeira e aparente organização. Para outros, não era mais possível considerar competitivos times tradicionais, que depois de insucessos consecutivos estavam há bastante tempo distantes das principais disputas nacionais e continentais. As duas hipóteses apressadas foram derrubadas sem misericórdia pela temporada em curso. 

A formação das diretorias, com seus responsáveis não remunerados pelos serviços nos clubes a se servirem da exposição no cargo para autopromoção, faz com que nem a diferença de orçamento seja intransponível em competições como o Campeonato Brasileiro. O exemplo da sequência de agressões no Flamengo, em poucos meses, evidencia como a gestão do futebol se distancia dos parâmetros mínimos de seriedade e civilidade. Embora pareça esgotado, o amadorismo se mantém nos clubes profissionais e seus desdobramentos são brutais.  

A realidade não é parecida com a da Europa e importar esses padrões estrangeiros é um equívoco. Não haverá espanholização. A liderança do Botafogo, sob os riscos do calendário de pontos corridos, demonstra que a tradição mantém o abrangente número de candidatos aos títulos nas temporadas do país. Nem uma eventual frustração no Campeonato Brasileiro poderia rasurar a campanha na temporada de 2023, com estilo de jogo definido ao longo dos meses de disputa ou as derrotas impostas a equipes com astros e folhas salariais sem comparação à do atual líder da competição.

A militância como no futebol https://bit.ly/3Sa94nu

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