16 janeiro 2024

Uma crônica de Cícero Belmar

Mapa magnético

Cícero Belmar*

 

O ônibus sobe a Chapada do Araripe como um desenhista que faz a letra S várias vezes. Passamos há pouco pela entrada do município de Exu, onde foi instalada a estátua de Luiz Gonzaga, rei de todos os sertões. Sorriso largo e aberto, o artista retratado na escultura é o orixá da alegria, abrindo os caminhos que levam à serra. Estou indo de Pernambuco ao Ceará.

Pela janela dá para ver uma paisagem que vai ficando lá em baixo. Do lado contrário, enquanto subimos, uma outra vista se apresenta. Qualquer sertanejo sabe: há tantos pedaços de sonhos espalhados naquele solo que ninguém tem dúvidas ter sido o próprio Deus quem semeou, com suas mãos, beleza e felicidade, por ali.

A Chapada do Araripe é uma companheira de infância, quando os nossos passeios só eram possíveis via Ceará, atravessando aquela serra. Na alvorada, não sei o que é mais bonito de ver pela janela, a caatinga lá em baixo pontuada por cactos, que parecem acenar com os braços erguidos; ou a vegetação desordenada da floresta dali em diante.

A serra é sempre nova e eu me espanto cada vez que a visito. O ônibus reduz a velocidade, carro algum sobe do mesmo jeito que vem. Nas linhas sinuosas da estrada, olho o mato verde e digo: “Parece um cartão postal”. Adriano vê a mesma paisagem e me pergunta: “O quê?”. Meu irmão faz esse percurso tantas vezes por mês que já acostumou o olhar.

Em poucos minutos, o ônibus já desfolhou a brisa da estrada e quando chega lá em cima até o Sol já está acordado. A partir dali, saímos do lado pernambucano. Tenho uma paixão pela Chapada e me sinto plenamente correspondido somente porque o verde vem até às margens. Como uma pessoa amada, também se abre em túnel de árvores, para podermos passar.

A Serra do Araripe se veste em 50 tons de verde. Ainda assim, há uma mortalha marrom: Adriano me fala de um suposto desmatamento e só então eu compreendo o seu aparente pessimismo. É um lamento por causa do perigo de uma possível devastação ambiental. Do lado pernambucano, dizem, há um grande faixa de terra que já está desmatada.

A especulação é de que um rico produtor de soja teria adquirido terras do sem-fim para expandir os negócios. Eu mesmo não vi, pois a área desmatada ficaria no interior da chapada, pouco distante da pista por onde passa o ônibus. O que os olhos não veem o coração não sente. O meio ambiente e a cultura, sim, por serem mais sensíveis que o coração.

Na passagem, desta vez, não vi a barraquinha da beira da estrada do homem que vendia o valiosíssimo mel de uruçu. Fico sabendo que Zezito morreu no ano passado. Somente ele sabia observar e entendia a ciência dessa abelha, que faz buracos no chão para instalar a colmeia, em cujos favos deposita gotas do mel raríssimo. Guardo um litro desse mel, com muito cuidado.

Todos os anos preciso ir à serra como um pagador de promessa que sobe o morro. Certa vez li um folheto de cordel, não lembro agora o título ou o nome do autor, que relata a guerra do tejú com a cobra venenosa. Cada vez que o tejú é picado, corre para a loca onde come o pedaço de uma batata amarga, remédio que anula a peçonha. Refeito, volta para a briga. Vence a guerra na insistência de batalhas que parecem perdidas.

Eu preciso ir à Serra do Araripe, reserva de minhas energias, sempre que o ano novo começa. Em férias, faço a passagem na casa dos meus pais, em Bodocó, vizinho a Exu, terra de Luiz Gonzaga. No comecinho de janeiro, aproveito para ir também ao Ceará. Bodocó fica vizinho.

Ir ao Crato e ao Juazeiro do Norte era o passeio máximo, na minha infância. Ir, agora, é revisitar-me. Hoje, não tenho dúvida, existe em mim uma orientação direcional que sempre aponta para o mapa magnético da Chapada do Araripe.

*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras

Lia de Itamaracá, 80 anos https://bit.ly/48Qjzlk

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