A inteligência artificial (ia) no cinema brasileiro
É inegável que, antes mesmo da marcha veloz da IA, vivemos sob imposições de mercado que sufocam a liberdade criativa de artistas e produtores no audiovisual
Renato Vallone/Le Monde Diplomatique
Jonathan Crary, crítico de arte e professor norte americano, em “24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono”, argumenta que a cultura contemporânea é dominada por uma lógica de funcionamento ininterrupto. A tecnologia não apenas facilita essa constante atividade, mas também modifica as condições de percepção e experiência humanas. A adoção rápida e descontrolada de tecnologias como a Inteligência Artificial (IA) exemplifica essa lógica. A violência capital com que entusiastas nas empresas de audiovisual no Brasil adotam essas novas tecnologias sem regulamentação, impacta profundamente as relações de trabalho.
Dziga Vertov, teórico soviético do “Cine-Olho“ e do cinema como ferramenta ideológica de transformação social, denunciava as estruturas de poder que moldam a produção de imagens e suas relações. Sua visão, assim como de Sergei Eisenstein, de um cinema que rompe com as convenções burguesas é relevante aqui: a tecnologia pode ser um instrumento atrativo de emancipação ou de opressão, dependendo de quem a controla e com que finalidade.
A visão predatória e o apagamento de processos anteriores na história da arte e cultura são evidenciados, por exemplo, no comercial publicitário da Apple para o lançamento do novo iPad. O anúncio sugere que todas as ferramentas, instrumentos e métodos de criação anteriores são obsoletos, os destruindo e promovendo a narrativa de que a inovação tecnológica é o único caminho para a relevância artística e cultural. Do prisma de que arte e cultura são apenas mercado, fazem isso com a imagem-metáfora de uma prensa hidráulica esmagando instrumentos musicais como piano, violão, tambores, entre outras coisas, até tudo virar uma única chapa de alumínio com tela reluzente, que é o produto a ser oferecido. O Desejo aqui, pela lógica impositiva de mercado, sendo vendido como vazio e falta, não como potência. Dizer não a todas as coisas, para afirmar o novo através da perspectiva de dominação, nada além disso. Isso reflete e talvez sintetize formas de apagamentos históricos e impede o surgimento de novas linguagens, através da lógica de consumo incessante e a obsolescência programada criticada por Crary, as quais todas e todos nós somos submetidas e submetidos nessa esteira fascista e ultraliberal na nossa sociedade do consumo e espetáculo.
“O erro dos discursos sobre cinema até hoje foi a impossibilidade de situar o domínio da linguagem no seu devido lugar. Foi não saber percorrer o caminho que leva até a linguagem, querendo atingi-la instantaneamente.” – Arthur Omar
A imposição de padrões narrativos por Players e Labs (Laboratórios de Cinema importados e com grande aderência nos Festivais de países colonizados) continua a filtrar e impor nossa imagem e construção de memória através do viés ideológico do dinheiro e invadir além de corroer brutalmente nosso território sem fiscalização jurídica ou moral. Isso é ressonância de um processo histórico de exploração, expropriação e desumanização no cinema, desde o set de filmagem até a ilha de edição na pós produção, assim como na construção de narrativas e personagens subjugadas, atreladas a estereótipos e esvaziadas de contradição, repletas da visão conservadora unilateral – de uma mesma classe social – propagadora de equívocos sobre nossas regiões e nosso povo. A submissão ao desejo de temas sociológicos, de denúncia, eróticos, etnoexóticos e personagens trágicos ou cômicos sem profundidade, são eleitos pelo filtro arrogante, paternalista e preconceituoso de alguns Festivais de renome europeus, que fazem da tela de cinema suas jaulas para uma espécie de Zoológico humano, como em séculos anteriores, esperando ver na tela espetáculos Kafkianos de artistas encoleirados aos anseios alheios a sua própria vontade. É o sadismo europeu de acordo e parceria com o eurocentrismo sul continental.
Em que medida as questões levantadas pela IA emergem ou atropelam situações ainda mal resolvidas, como as questões jurídicas de proteção ao trabalhador e trabalhadora, as quais envolvem autoria e coautoria na criação e produção de um filme, como o trabalho das e dos roteiristas, dubladoras e dubladores, musicistas e músicos, diretoras e diretores de fotografia, montadoras e montadores, entre tantos outros segmentos? Ignorar ou minimizar esse aspecto no Brasil e América Latina é manter o privilégio cego e protegido por aqueles que desejam ocupar o lugar de poder no mercado da arte e cultura e continuar com a elaboração das mesmas narrativas e com o acumulo de poder. A memória e a identidade no audiovisual, antes de serem commodities para o exterior, são fomentadas também na violência cotidiana, segregação e no ódio de classe com nossa imagem e inteligência vendidas a preço de banana e cooptadas como matéria-prima para a construção dessa memória hegemônica e estrangeira, revendidas em nossa própria terra.
No Brasil, enfrentamos um processo de não aprovação de projetos de leis que visam regulamentar e equilibrar a invasão de players produtores de vídeo sob demanda (VOD), como a PL8889/2017. Essa resistência à regulamentação pode ser vista como uma tentativa de manter o status quo e preservar certos interesses econômicos obscuros, o que evidencia os desafios enfrentados no país para garantir uma distribuição equitativa e justa de conteúdo audiovisual, além de sua produção local. Resta saber como junto a entidades, associações e sindicatos de cinema nesse país, conseguiremos ter voz junto às bancadas e ao Ministério da Cultura no Brasil e representantes, em contraponto aos interesses empresariais dos mais ferozes, e defendermos taxações importantes como a CONDECINE e com isso fomentar mos e promovermos uma reforma abrangente e democrática de inclusão, descentralizando desde a produção, com linhas inovadoras de criação, até a distribuição nacionais e internacionais. Talvez seja a hora de fazer do cinema uma política de Estado e não de governo.
Não seria então a IA, nesse momento crucial, uma nova aliança e um reflexo desse cercamento imposto por padrões ultraliberalistas estrangeiros e comportamentais abusivos nas micro relações de trabalho, resultante da distância e esfriamento na relação humana em países como o nosso e nas pessoas que se veem obrigadas a aderir, com velocidade, novas técnicas e plataformas antes mesmo de certos debates e regulamentações avançarem no combate aos diversos tipos de exploração em nosso setor?
É inegável que, antes mesmo da marcha veloz da IA, vivemos sob imposições de mercado que sufocam a liberdade criativa de artistas e produtores no audiovisual.
Também é inegável que quase todas as pessoas que fazem parte da infraestrutura dessa indústria em eterna (de) formação receiam denunciar certas violências sofridas no set ou na ilha de edição, como em qualquer ambiente de trabalho no Brasil. Isso ocorre, inclusive, para garantirem suas oportunidades de sobrevivência. No audiovisual não seria diferente, onde a ideia de democracia no segmento não é ajustada às demandas estruturais mais importantes no direito dos trabalhadores e das trabalhadoras deste país.
Certas violências psicológicas e de persuasão no fazer audiovisual parecem convencer indivíduos no topo da pirâmide de que ocupam lugares que não ocupam, com mentiras inventadas para satisfazer a manutenção dos seus alicerces de privilégios estruturais e promover a mea-culpa liberal burguesa.
Geralmente são os detentores dos meios de produção aderentes ao colonizador, os chamados “cipaios” nas culturas indiana e andina. Seriam os “Capitães do Mato”, por aqui, os chamados neocolonizadores.
O que acontece é que a abertura e o afeto criativo que trabalhadoras e trabalhadores oferecem para esses mesmos detentores dos meios de produção terminam quando a experiência de exploração moral cotidiana começa. Pois quase sempre são invisibilizados os seus direitos garantidos por lei, ou forjados por estratégias coloniais na cultura liberal, com a ilusão de que a presença glomorousa no cinema é o suficiente para esses contratados estarem sempre em dívida com os contratantes.
Cinema é, antes de tudo, respeito à dignidade do trabalho. E como disse Nise da Silveira sobre a força monumental do trabalho na pintura de Fernando Diniz, “não o trabalho como algo servil, mas que exprime a alma da pessoa”.
Não será a IA, assim como outras tecnologias que só os ricos podem acessar, como aqueles grandes navios que cruzaram os continentes para expedições ambiciosas, iludindo os nativos como deuses libertadores? Antes disso, certos nativos sonhavam e pressentiam a chegada de novos tempos, acreditando que aqueles seres flutuantes sobre os mares eram inofensivos. Seres de luz, anjos libertadores, domadores de grandes Caravelas que logo os domariam.
Dos nativos que ainda estão aqui, como estão hoje em nossa profissão? Já são autônomos e proponentes de seus próprios projetos ou continuam sendo minas de ouro para expedicionários com mentalidade liberal formados no exterior? A hegemonia continua intacta. Quantas inteligências já são artificializadas, compradas e manipuladas por alguma injustiça jurídica ou má fé colonial inserida nas cláusulas de modelos de contratação que são base para produtores e produtoras, sem se darem conta da perpétua exploração e saque aos direitos fundamentais de trabalhadoras e trabalhadores da arte submetidas às mazelas estruturais que performam e compram boa relação mas escondem o racismo, o machismo, a homofobia e o ódio de classe no meio da produção e criação audiovisuais?
E em que medida a IA será um instrumento violento para acelerar certas injustiças e desvios de condutas que são desfavoráveis à maioria absoluta? Ou, pelo contrário, teremos uma aliança estrangeira de alto nível para nosso progresso e desenvolvimento amplo e inclusivo no mercado? Profeta é quem tem memória. E qualquer ferramenta que seja uma aliada à esquiva do burguês diante da consciência de classe na defesa de seus direitos será oportuna.
Uma parte da sociedade, atrofiada pela situação colonial, se vê representada por estruturas de poder – nacionais e internacionais – que não permitem avançar. São barreiras materiais e psicológicas criadas por um desejo falacioso, perverso e publicitário de que um dia alcançará o topo da superestrutura e fará a arte e o filme que quiser, como quiser. Só que não.
Renato Vallone é montador e realizador do subúrbio do Rio de Janeiro. Montou diversos filmes premiados em festivais nacionais e internacionais, a exemplo de Cinema novo (L’Oeil d’or-Cannes-2016), Humberto Mauro (Veneza-2018), Sertânia (Ficviña-2019). Em 2021, dirigiu o curta-metragem Centelha. Integrou o corpo docente da Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro/BR), e o corpo docente da Escuela Internacional de Cine y Televisión – EICTV (Cuba). Assina a montagem do filme A queda do céu dos diretores Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha.
Ilustração: Intervenção digital em uma das gravuras da serie “Desastres da guerra”
Imagem: Renato Vallone
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