A ofensiva da extrema direita sobre Terras Indígenas no Brasil
Proposta de Emenda à Constituição que prevê a constitucionalização do Marco Temporal tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, inserindo-se no projeto político adotado por ruralistas para avançar sobre Terras Indígenas
Marcello Amorim Vieira/Le Monde Diplomatique
A PEC 48/2023 objetiva alterar o parágrafo 1° do artigo 231 da Constituição Federal brasileira, acrescentando à sua redação original um trecho em que expressamente se acrescentaria à Constituição a previsão do Marco Temporal. O Marco Temporal consiste na ficção jurídica que vincula os Direitos Territoriais de povos indígenas à sua presença física, na data de 05 de outubro de 1988, nos respectivos territórios pleiteados.
Apesar da tese contemplar situações em que o pleito seria legítimo, historicamente, os povos indígenas foram submetidos a deslocamentos forçados promovidos pelo Estado e pelas elites rurais, além da violência e de demais mecanismos que impediram o seu acesso às Terras tradicionalmente ocupadas sem que se gerasse para tanto um “documento” atestando tal realidade. Os detentores do poder não criariam provas contra si mesmos.
Desta maneira, a redação da PEC 48/2023 e outras normas a ela anteriores se mostram como textos desconectados de aspectos históricos estruturais atinentes à relação entre Estado e povos indígenas. Apesar de ser um “novo passo” dado pela Bancada Ruralista e políticos de extrema direita para tentar conferir alguma legitimidade às ofensivas de latifundiários sobre Terras Indígenas, o objetivo buscado não é inédito e se insere em um projeto político levado a cabo com fôlego pela maioria do Congresso Nacional nos últimos anos.
O aspecto central deste texto é retratar como as estratégias e mecanismos da extrema direita em face de conflitos fundiários se alteram a partir das condições conjunturais experienciadas. O objetivo de avanço do agronegócio sobre Terras Indígenas se conserva. No entanto, busco compreender como se dão as alterações estratégicas para buscar esse objetivo de acordo com o cenário político.
A análise das respectivas conjunturas evidencia o papel do chefe do Poder Executivo como base para desenho das respectivas estratégias políticas. Opõem-se, no recente cenário político brasileiro, as gestões de Jair Messias Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva. Assim, a investigação das alianças e das condições oferecidas pelos respectivos líderes do Governo Federal aos aliados são elementos importantes para a pretendida localização sociopolítica da PEC/48 no projeto político ruralista.
Durante a gestão de Jair Messias Bolsonaro (2018 a 2022), foram implementadas diversas medidas que contrariavam as pautas de justiça socioambiental, o que colocou em risco prerrogativas de povos indígenas pelo Brasil. Um exemplo significativo foi a publicação da Instrução Normativa n° 9 de 16 de abril de 2020 (IN 9/2020) pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), presidida na época por Marcelo Augusto Xavier da Silva, que impactou significativamente as terras indígenas em processo de identificação e delimitação.
Desde 2019, o governo Bolsonaro explicitou sua inclinação para apoiar o agronegócio, como demonstrado pela Medida Provisória 884/2019 (MP 884/2019), que adiou o prazo para inscrição das propriedades rurais no Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado pela Lei 12.651/2012. Esse cadastro é essencial para integrar informações ambientais e combater o desmatamento, mas prorrogações sucessivas adiaram seu cumprimento até que a Lei 13.887/2019 estabeleceu um prazo indeterminado.
A IN 9/2020 da Funai regulava a Declaração de Reconhecimento de Limites em imóveis privados, permitindo que propriedades sobreponham terras indígenas não homologadas ou regularizadas, o que gerou insegurança jurídica e institucional para as terras indígenas em processo de reconhecimento. Essas medidas não só ameaçam os modos de vida tradicionais dos povos indígenas no Brasil, mas também afetam a preservação ambiental.
A relação entre as políticas do governo Bolsonaro e o agronegócio é evidente, como ilustrado pela fala do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em 2020, em que ele mencionou esforços para simplificar e desregulamentar normas de caráter socioambiental, para então “passar a boiada”. Essas ações visaram facilitar as atividades do agronegócio e legitimar invasões de Terras Indígenas por parte deste grupo.
Desde o período pré-eleitoral, Lula realizou gestos simbólicos no sentido de firmar uma aliança com ativistas e movimentos indígenas. No ano de 2023, ao iniciar seu 3° mandato, Lula discursou no sentido de que prerrogativas de povos indígenas estariam pautadas no âmbito de sua gestão.
A gestão Lula introduziu a Medida Provisória 1154/2023 para criar o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), inicialmente responsável pela demarcação, embora esta atribuição tenha sido posteriormente devolvida ao Ministério da Justiça pelo Congresso Nacional.
As nomeações de Sônia Guajajara ao cargo de Ministra dos Povos Indígenas, Joenia Wapichana à presidência da Funai e Weibe Tapeba à Secretaria de Saúde Indígena suscitaram reações diversas entre indígenas mobilizados. Enquanto houve satisfação pela representatividade alcançada, houve também preocupação com as condições de trabalho dentro das instituições governamentais e o receio de que suas agendas fossem subsumidas pela burocracia e pelas forças políticas contrárias nos demais poderes.
A eleição de um presidente que não possui alianças políticas expressivas com congressistas de extrema direita e ruralistas fez com que esses grupos, que seguiram compondo maioria no Congresso Nacional, forçasse uma mobilização ainda maior para empreender ofensivas no que tange a normas que versem sobre Terras Indígenas através de Projetos de Lei e até mesmo PECs, como é o caso da 48/2023, bem como o esvaziamento de pastas ministeriais, como foi o caso da alteração de competências ministeriais do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas na negociação da Medida Provisória 1154/2023.
A PEC 48/2023, portanto, dá sequência às movimentações que aprovaram a Lei 14.701/2023 e se coloca como uma estratégia ambiciosa dos grupos que a defendem em face do contexto de derrota da tese do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) e da eleição de um presidente com quem não possuem alianças diretas.
Atento ao cenário compreendido entre 2019 e 2023, percebo que a chancela de um líder do Poder Executivo afeto às pautas de interesse dos latifundiários fez com que as questões relativas a direitos territoriais fossem negociadas muitas vezes por vias infralegais, as quais não exigem grandes formalidades e ritos para entrarem em vigor.
A mobilização da extrema direita para modificar o regramento em sede de normas constitucionais e infraconstitucionais aponta para uma crescente ofensiva a partir das condições postas no atual cenário. A maioria numérica no Congresso Nacional e a incapacidade de negociação do Presidente da República com a referida parcela de congressistas se tornaram meios que impulsionaram a colocação em pauta de propostas, a exemplo da PEC 48/2023.
Organizações de luta pela defesa dos povos indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e suas instâncias regionais, manifestaram-se contrários à referida PEC, pontuando, para além da lesão ao direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, os possíveis impactos da aprovação no cenário de crise ambiental e climática.
“Não se engane, a Terra é a questão de ordem”, foi a frase que ouvi de uma ativista indígena com quem conversei quando passei por Brasília-DF em abril de 2023. Naquele contexto, a Câmara dos Deputados se preparava para votar o que veio a se tornar a Lei 14.701/2023. Neste ínterim, ocorreu também a já mencionada votação do RE 1.017.365/SC em sede de repercussão geral no STF, quando se formou maioria para declarar a inconstitucionalidade da tese do Marco Temporal.
As estratégias, em relação ao contexto descrito, podem se mostrar diferentes. Todavia, não dá para tratar a propositura da PEC 48/2023 como um artifício inédito em sede das discussões político-institucionais que afetam a questão fundiária no Brasil. Inscrita em um projeto político específico e articulado, a ofensiva da bancada ruralista sobre a Carta Magna do país aponta que estratégias mudam, mas a Terra segue um campo em voraz disputa.
Marcello Amorim Vieira é Doutorando e Mestre no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD-UFF). Historiador, pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFF), e bacharel em Direito, pela Universidade Vila Velha (UVV).
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