Da crise americana ao vazio hegemônico
Declínio dos EUA ameaça a ordem liberal. China, que não se curvou aos mercados, emerge; porém, não aspira ao papel de Washington. Neste vácuo, haverá riscos (inclusive de guerra) mas, também, possível cenário favorável ao Sul Global
Walden Bello | Tradução: Antonio Martins/Outras Palavras
Pouco importa se a chamamos de “policrise”, como o Professor Adam Tooze da Universidade de Columbia, ou de “era da catástrofe”, como o notável marxista Alex Callinicos. Não há dúvida de que estamos vivendo em um período onde os próprios alicercesda ordem mundial contemporânea estão rachando. Há aquela frase enigmática que Gramsci usou para descrever sua era e que também é apropriada para a nossa: “O velho mundo está morrendo, e o novo mundo luta para nascer: agora é a hora dos monstros.”
Este curto ensaio concentra-se em uma dimensão chave da policrise: o desmantelamento da hegemonia global dos Estados Unidos. O declínio do império norte-americano tem várias causas, mas as principais são a superextensão militar, a globalização neoliberal e a crise da ordem política e ideológica liberal. Vamos discutir cada uma delas.
Superextensão e Bin Laden
O termo “Superextensão” refere-se à lacuna entre as ambições de uma potência hegemônica e sua capacidade de alcançar essas ambições. É quase sinônimo do conceito de excesso de alcance (overreach), usado pelo historiador Paul Kennedy, com a ligeira diferença de que a superextensão, como eu a emprego, é principalmente um fenômeno militar. O império em apuros que os Estados Unidos são hoje está muito longe do poder unipolar que tinha há um quarto de século, em 2000. Se nos perguntarmos o que levou a essa situação, inevitavelmente nos remetemos a um indivíduo: Osama bin Laden.
O objetivo do ataque de bin Laden às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 era precisamente provocar a superextensão do império, forçando-o a lutar em várias frentes no mundo muçulmano, que seria inspirado a se revoltar por sua ação dramática. Mas em vez de desencadear uma revolta, o ato de Osama desencadeou repulsa e desaprovação entre a maioria dos muçulmanos. O 11 de setembro teria sido um grande fracasso se George W. Bush não o tivesse visto como uma oportunidade de usar o poder norte-americano para remodelar o mundo e restabelecer o status unipolar de Washington. O presidente caiu na armadilha de Osama e lançou os Estados Unidos em duas guerras de vitória impossível, no Afeganistão e no Iraque. Os resultados foram devastadores para o poder e o prestígio dos EUA.
Durante o debate de 7 de junho de 2024 entre Donald Trump e Joe Biden, Trump referiu-se à derrota no Afeganistão como a pior humilhação já infligida aos Estados Unidos. Como todos sabemos, ele é propenso a exageros, mas havia um elemento de verdade em sua declaração.
Segundo a analista da CIA Nelly Lahoud, “embora os ataques de 11 de setembro tenham se revelado uma vitória pírrica para a Al Qaeda, bin Laden mudou o mundo e continuou a influenciar a política global por quase uma década após.” Se os Estados Unidos são hoje uma potência global confusa e titubeante – e agem além disso como um cachorro agitado pelo rabo sionista – isso se deve em grande parte a bin Laden.
Reconhecer a importância do 11 de setembro não implica, claro, endossá-lo. Para a maioria de nós, o ataque a civis foi moralmente repulsivo. Mas deve-se dar ao diabo o que é do diabo, como dizem, ou seja, apontar o impacto objetivo e histórico mundial do feito de um indivíduo, seja essa pessoa um santo ou um vilão.
Globalização e troca de posições
Vamos nos voltar para a segunda grande causa do desmantelamento do status hegemônico dos EUA: a globalização neoliberal. Trinta anos atrás, o capital corporativo dos EUA, junto com o governo Clinton, vislumbrou a globalização, promovida por meio do comércio, investimento e liberalização financeira, como a ponta de lança de sua maior dominação da economia global. Wall Street e Washington estavam errados. Foi a China a maior beneficiária da globalização; e os Estados Unidos, uma de suas principais vítimas.
A liberalização de investimentos significou que bilhões de dólares em capital corporativo dos EUA fluíram para a China. As corporações queriam aproveitar a mão de obra, que custava uma fração dos salários pagos nos Estados Unidos. Mas foram obrigadas a promover em troca transferência de tecnologia, voluntária ou forçada, que ajudou a China a desenvolver sua economia de forma abrangente. A liberalização do comércio fez da China a fábrica do mundo, abastecendo principalmente o mercado dos EUA, no início com produtos baratos. Tanto a liberalização de investimentos quanto a de comércio contribuíram para a desindustrialização dos EUA e a perda de milhões de empregos na indústria – eles caíram de 17,3 milhões em 2000 para cerca de 13 milhões hoje. Os efeitos deletérios da desindustrialização foram agravados pela financeirização da economia dos EUA – ou seja, pelo movimento de fazer do setor financeiro super-rentável a vanguarda da economia. Também contribuiu a tributação cada vez mais regressiva, que levou a uma distribuição extremamente desigual de renda e riqueza.
A China trocou de lugar com os Estados Unidos na economia global. Agora é o centro de acumulação de capital global ou, na imagem popular, a “locomotiva da economia mundial”. Segundo cálculos do FMI, o país representou 28% de todo o crescimento mundial de 2013 a 2018, mais que o dobro da participação dos Estados Unidos. O que deve-se sublinhar é que, enquanto os Estados Unidos seguiram políticas neoliberais de dar total liberdade às forças de mercado, a China liberalizou seletivamente. O poderoso Estado chinês dirigiu o processo, protegendo setores estratégicos do controle estrangeiro e exigindo agressivamente tecnologia avançada das corporações ocidentais em troca de mão de obra barata.
Em termos do valor nominal da produção em dólares, os Estados Unidos ainda são a maior economia. Mas outras medidas – como o PIB calculado segundo o Paridade do Poder de Compra (PPP) do Banco Mundial – colocam China na condição de maior economia do mundo. Nos EUA, 11,5% das pessoas vivem na pobreza enquanto, segundo o Banco Mundial, apenas 2% da população da China é pobre.
Claro, a China enfrentou desafios em sua ascensão ao cume econômico mundial. Mas o desenvolvimento, como o economista Albert Hirschman apontou, é um processo necessariamente desequilibrado. As crises da China são crises de crescimento, comparadas às crises dos EUA, que são crises de declínio.
Da Guerra Civil De Fato à Guerra Civil Armada?
A superextensão militar e os efeitos da economia neoliberal contribuíram não apenas para afastar a popoulação da política, mas também para a turbulência nos Estados Unidos. Um dos dois principais partidos, o Republicano, tornou-se a ponta de lança da política de extrema-direita ou fascista, alimentada pelo racismo, sentimento anti-imigrante, medo e declínio de status econômico entre os brancos. A política tornou-se intensamente polarizada, e alguns alertam que agora há um estado de guerra civil de fato. Em suma, o regime político e ideológico da democracia liberal está em grave perigo, com muitos liberais e progressistas alertando que o Plano 2025 de Trump pode resultar no estabelecimento de uma ditadura fascista. Eles não estão errados.
Eis o que Steve Bannon, o ideológico-chefe da extrema-direita dos EUA, diz:
“A trajetória da esquerda está em pleno colapso. Eles sempre se concentram no ruído, nunca no sinal. Eles não entendem que o movimento MAGA, à medida que ganha impulso e cresce, está se movendo muito mais para a direita do que o presidente Trump… Não somos razoáveis. Somos irracionais porque estamos lutando por uma república. E nunca seremos razoáveis até conseguirmos o que desejamos. Não estamos procurando compromisso. Estamos procurando vencer.”
Uma segunda presidência de Trump é agora muito provável, com a forte possibilidade de que a guerra civil de fato se transforme em uma guerra civil armada. A tentativa de assassinato de Trump em 13 de julho pode bem ser um grande passo em direção à violência desenfreada retratada em Civil War de Alex Garland.
Crise da ordem internacional liberal
Washington tem sido a policia da ordem internacional, e com a crise econômica e política dos Estados Unidos, essa ordem também entrou em uma crise profunda. Quais são os aspectos chave do que foi caracterizado como a ordem internacional liberal? Primeiro, liderança global dos Estados Unidos e do Ocidente sustentada pelo poder militar dos EUA. Segundo, uma ordem multilateral que serve como cobertura política para o capital ocidental, tendo por principais pilares o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio. Em terceiro lugar, uma ideologia que promove a democracia ao estilo ocidental como o único regime político legítimo.
Essa ordem liberal agora está em apuros em duas frentes: na frente internacional, perdeu legitimidade entre o Sul Global, que vê o sistema multilateral como projetado principalmente para manter a periferia subjugada; internamente, a democracia liberal, que é sua ideologia orientadora, está sob ataque da extrema-direita. Se a extrema-direita chegar ao poder nos Estados Unidos e em Estados-chave da Europa, a ordem internacional perseguida por ela provavelmente continuaria a afirmar a supremacia econômica ocidental; mas adotaria uma abordagem muito mais unilateralista e protecionista para assegurá-la, em vez de usar o complexo FMI-Banco Mundial-OMC. Certamente, a extrema-direita abandonará o apelo hipócrita à democracia liberal como modelo para o resto do mundo.
Rumo à guerra?
A China sustenta que não busca substituir os Estados Unidos como hegemonia global. A elite dos EUA, no entanto, vê na China uma potência revisionista determinada a desalojá-la. Especialmente nos anos de Biden, os Estados Unidos tornaram-se cada vez mais determinados a usar o poder militar – a dimensão da hegemonia em que gozam de superioridade absoluta sobre a China – para proteger seu status de número um.
É por isso que o perigo de guerra entre os Estados Unidos e a China não deve ser subestimado, e essa é a razão pela qual o Pacífico Ocidental é um barril de pólvora, muito mais do que a Ucrânia. Na Ucrânia, os Estados Unidos e a China se confrontam por meio de proxies (Rússia e OTAN), enquanto no Pacífico confrontam-se diretamente.
Os Estados Unidos têm dezenas de bases cercando a China, desde o Japão até as Filipinas, incluindo a imensa base flutuante que é a Sétima Frota. O Mar do Sul da China agora está cheio de navios de guerra rivais realizando “exercícios” navais. Entre os “visitantes” mais recentes estão embarcações da França e da Alemanha, aliados dos EUA que foram arrastados para longe da área tradicional de cobertura da OTAN para conter a China. Navios de guerra dos EUA e da China são conhecidos por jogarchicken games – um dirigindo contra o outro e desviando no último minuto. Um erro de cálculo de alguns metros poderia resultar em uma colisão, com consequências imprevisíveis. Os temores de que o Mar do Sul da China será o próximo local de conflito armado não são alarmismo.
Na ausência de quaisquer regras de resolução de conflitos, a única coisa que previne a guerra é o equilíbrio de poder. Mas regimes de equilíbrio de poder são propensos a colapsos, muitas vezes com resultados catastróficos — como foi o caso em 1914, quando um evento deste tipo, na Europa, levou à Primeira Guerra Mundial. Washington está mobilizando agressivamente o Japão, a Coreia do Sul, as Filipinas, cinco forças-tarefa de porta-aviões da Marinha dos EUA, a OTAN, e a recém-criada aliança AUKUS (Austrália, Reino Unido, Estados Unidos) em uma postura confrontacional contra a China, Isso torna os riscos de uma ruptura no equilíbrio de poder da Ásia Oriental cada vez mais prováveis — podendo talvez ser abaladas por algo fortuito como uma colisão ou um erro de distância.
Transição Hegemônica ou Estagnação Hegemônica?
O que o futuro reserva? Alguns dizem que uma disputa pela hegemonia, seja ou não pacífica, é inevitável.
Mas vamos propor outra possibilidade. Talvez, devêssemos olhar não tanto para uma disputa hegemônica, mas para a emergência de um vácuo hegemônico semelhante – mas não exatamente igual – ao que se seguiu à Primeira Guerra Mundial. Então, os enfraquecidos Estados da Europa Ocidental já não podiam restaurar sua hegemonia global pré-guerra; enquanto os Estados Unidos não levaram adiante o impulso do presidente Woodrow Wilson para afirmar sua liderança política e ideológica.
Em tal vácuo ou estagnação, a relação EUA-China continuaria sendo crítica, mas com nenhum dos atores capaz de definir tendências, tais como a reação aos eventos climáticos extremos, o crescente protecionismo, a decadência do sistema multilateral que os Estados Unidos colocaram em prática durante seu apogeu, o ressurgimento de movimentos progressistas na América Latina, a ascensão de Estados autoritários, a provável emergência de uma aliança entre eles para substituir uma ordem internacional liberal falida e tensões cada vez mais descontroladas entre regimes islamistas radicais no Oriente Médio e Israel.
Tanto os conservadores quanto os formuladores de políticas liberais pintam um cenário amedrontador para sublinhar que o mundo precisa de uma hegemonia. Os primeiros advogam um Golias unilateral, que não hesita em usar ameaça e força para impor ordem; os últimos preferem um Golias liberal que, para revisar ligeiramente o famoso ditado de Teddy Roosevelt, fala suavemente, mas carrega um grande porrete.
Existem, no entanto, aqueles – e eu sou um deles – que veem na crise atual da hegemonia dos EUA não tanto anarquia, mas oportunidade. Embora haja riscos e grandes perigos envolvidos, uma estagnação hegemônica ou um vácuo hegemônico abre o caminho para um mundo onde o poder poderia ser mais descentralizado; onde poderia haver maior liberdade de manobra política e econômica para atores menores e tradicionalmente menos privilegiados do Sul Global; onde uma ordem verdadeiramente multilateral poderia ser construída por meio da cooperação, em vez de ser imposta por meio de hegemonia unilateral ou liberal.
Sim, a crise da hegemonia dos EUA pode levar a uma crise ainda mais profunda, mas também pode levar a uma oportunidade para nós. Para voltar à imagem de Gramsci com a qual comecei este ensaio, podemos estar entrando em uma era de monstros. Porém como Ulisses, não podemos evitar passar pela perigosa passagem entre Cila e Caríbdis, se quisermos chegar ao porto seguro prometido.
Imagem: Basquiat, “A culpa dos dentes de ouro” (1982)
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