07 fevereiro 2025

IA & trabalho humano

Da internet morta ao mercado de trabalho morto?
Substituição das profissões mais qualificadas e criativas por "inteligência artificial" é a distopia que os bilionários querem realizar.
Luis Felipe Miguel/Jornal GGN  

Quase ao mesmo tempo em que expressava seu descompromisso com o combate às mentiras em suas plataformas, Mark Zuckerberg fez outra declaração. Disse que, ainda esse ano, pretende substituir engenheiros de software de nível médio por rotinas de inteligência artificial.

E outro dia ouvi uma entrevista com Bill Gates – aquele que tem uma fundação caritativa e tenta passar para o mundo a imagem de bilionário do bem. Foi perguntado sobre os efeitos da IA no mercado de trabalho (a Microsoft é sócia da OpenIA, responsável pelo ChatGPT). 

O entrevistador entregou que Gates sorria enquanto dava sua resposta, uma resposta atravessada pelo cinismo. Em resumo, ele disse que não era problema deles: os políticos é que deviam regular.

Ou seja: as corporações jogam todo seu poder para evitar qualquer regulação. E depois dizem que, se não está regulado, a culpa não é delas.

O que estamos vendo é a chamada IA generativa tomar uma parcela cada vez maior dos empregos. Nas plataformas, vemos cada vez mais robôs interagindo com robôs (a teoria da chamada “internet morta”), Será que, no lugar do mercado de trabalho, teremos máquinas passando tarefas para outras máquinas?

Uma empresa nos Estados Unidos, que na verdade vende um software mixuruca para automação de vendas, faz propaganda com o slogan “não contrate mais humanos”. A imagem que ilustra seu anúncio é um avatar dizendo que não se incomoda com jornadas de trabalho excessivas1.

A gente imaginava que o avanço da tecnologia podia de fato eliminar a necessidade de trabalho humano em várias áreas. Mas a gente pensava que seríamos libertados do fardo de capinar a grama, varrer as ruas, limpar as latrinas, minerar carvão, coisas assim. E as pessoas, num mundo minimamente bem ordenado, seriam qualificadas para ocupar outras funções. 

Que nada. Para esse tipo de trabalho, ainda compensa mais pagar muito pouco para uma mão-de-obra superexplorada. Afinal, sempre tem um imigrante ilegal disposto às piores tarefas, sem nenhum direito e por quase nada.

Em suma, é a redução do postos de trabalho mais qualificados e criativos.

São ilustradores, tradutores, redatores, programadores, roteiristas, jornalistas, compositores. Em breve (quem duvida?), professores, médicos, arquitetos, engenheiros civis.

Sim, a IA ainda nos entrega bizarrices, como as biografias ou fontes bibliográficas inventadas no ChatGPT (e no DeepSeek é igual), a surpresa sempre renovada ao contar o número de dedos nas mãos das pessoas nas imagens, o inesquecível Jesus camarão. Mas não há muita dúvida de que logo esses probleminhas podem ser sanados. 

Há uma perda óbvia com a colonização das profissões criativas pela inteligência artificial. É o fato de que ela não tem nenhuma criatividade. Ela é, como disse alguém, uma máquina de plágio.

É verdade que as pessoas se comovem com as fotos fake, seja de criancinhas africanas pobres e sorridentes fazendo monumentos de sucata, seja com os passarinhos nunca encontrados na natureza, com suas cores vibrantes de desenho da Disney. E depois se decepcionam quando descobrem que é tudo falso.

É o apelo do Kitsch. Assim como as pessoas se emocionam com pílulas da autoajuda mais vulgar, desde que, é claro, atribuídas a grandes nomes da literatura como Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade ou Gabriel García Márquez.

Mas o nosso próprio gosto estético se aprimora com o contato com o novo. (Por isso, nunca gostei do sistema de recomendação por afinidade com o conteúdo prévio das plataformas de streaming.) E o novo, para surgir, depende da criatividade humana.

Alguém pode dizer que, de toda maneira, sempre haverá quem se disponha a produzir sua própria arte, a escrever roteiros de cinema autorais e assim por diante. É verdade. Mas sem o mercado de trabalho que os acolha, isso vai se tornar simplesmente o hobby de uns poucos em endinheirados.

Quanto aos outros, aqueles que tirariam seu ganha-pão do mercado de trabalho hoje existente, eles terão que procurar outra coisa para sobreviver — quem sabe capinando a grama ou nas minas de carvão.

Ao mesmo tempo, isso aponta para uma verdadeira distopia: o mundo em que um punhado de multibilionários controla mais riqueza do que é humanamente possível sequer imaginar como gastar, diante de uma massa de despossuídos, que se equilibra no limite da subsistência.

É a profecia que Marx fez sobre o futuro do capitalismo: a polarização cada vez mais gritante entre uma burguesia cada vez mais concentrada e uma classe trabalhadora cada vez mais pauperizada. A profecia foi (até certo ponto) desmentida com desenvolvimento da sociedade de consumo, que exigia a integração de uma classe trabalhadora com algum poder aquisitivo – mas parece espreitar nosso futuro de novo, em sua versão mais radical. 

A manutenção de um tal estado de coisas só é possível com a ampliação da repressão aos movimentos resistência e com desmantelamento de qualquer estrutura minimamente democrática que dê voz aos dominados. É por isso que estes superricos se alinham, de forma cada vez mais ostensiva, com a extrema-direita.

1 – Quem me chamou a atenção para isso, bem como para o discurso de Zuckerberg, foi Marco Rodrigo Silva.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

Leia: A polarização e a radicalização do debate público é a essência do modelo de negócio das redes sociais https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/o-brasil-e-as-big-techs.html?m=1 

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