Sorriso de festa
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65
Desde que a Humanidade evoluiu para o estágio assim considerado, foram-se criando, nas mais diversas culturas mundo afora, as chamadas convenções. Para o bem ou para o mal. Para o prazer ou para o desprazer. O fato é que a gente se sente na obrigação de adotar determinado comportamento em tal ou qual situação. Para não sair da linha, dizia-se quando eu era menino. Para não fugir ao politicamente correto, anotava-se até bem pouco tempo.
O convencional se estabelece com
status de mediação do comportamento humano, para que possamos de fato agir como
civilizados, e não como bárbaros. Mas em geral é de uma chatice sem tamanho - o
que termina atrapalhando a vida, enquadrando-a indevidamente. E tornando
forçado o modo de sentir e expressar nossas emoções.
Quando o sujeito mantém a carranca no
âmbito de uma festa, logo é notado e, de certo modo, marginalizado. Afinal, não
se sabe o porquê daquela expressão de mau humor, ou mesmo de tristeza, quando
todos se confraternizam e a alegria é geral.
Foi assim que no correr de milhares
de anos - mais de dois mil só na Era Cristã - que se instituiu o sorriso de
festa. Sim, numa festa faça tudo menos esconder aquele sorriso que lhe insere
definidamente no grupo. Pode ser um simples e discreto sorriso, mas o
suficiente para denotar alegria; ou uma retumbante gargalhada. Tem gente que
queima todo o estoque acumulado de gargalhadas numa festa. De fim de ano,
sobretudo. Ganha logo a fama de boa gente, capaz de levantar a moral e alegria
de todos, quando não - por excesso de empenho -, como efeito colateral, passa a
ser considerado amostrado.
Fim do ano passado, como fazemos
todos os anos, a família se reúne em São José da Coroa Grande, onde realizamos
o melhor réveillon do mundo, segundo a própria avaliação dos realizadores. Com
direito a espetáculo pirotécnico, oferendas a Iemanjá, sortilégios e comes e
bebes. Em média, do Dia de Natal à meia-noite do dia 31 de dezembro, dura uma
semana. Para alguns, impedidos de largar o trabalho, dois ou três dias. E é
fuzarca o tempo todo. Sobressai-se a gargalhada de Luci, no papel de matriarca
moderna (porque não abre mão da irreverência, ao contrário das matriarcas
"convencionais"), mas todos riem à vontade. Com ou sem motivo
aparente. Tudo vira piada. E quando piada não há, a gente ri assim mesmo - de
felicidade por estarem todos ali numa comunhão natural e espontânea para
celebrar o ano findo e o que se aproxima.
Pois bem, quando o resto da turma ia
chegando, já no sábado, precisei anunciar que minha cara de poucos amigos nada
tinha a ver. Que entendessem como uma modalidade eventual de sorriso de festa.
É que meu corpo estava me maltratando, impondo-me terrível lombalgia em razão
de algo errado surgido de última hora na coluna vertebral. Ou seja: tratei de
avisar que nem de longe estava desrespeitando a norma convencional de sorrir
naqueles dias, naquele ambiente, ao lado de tanta gente querida.
Mas o diabo é que o bom cumprimento
de atitudes convencionais pode levar ao exagero. Amigos meus e amigos de minhas
filhas, conheço alguns, que de tanto sorrir o sorriso de festa passou a sorrir
emendado, sempre, em toda e qualquer ocasião. Encara todo mundo com um sorriso
largo, generoso e, em alguns casos, cativante. Neles o sorriso incorporou-se
com tal intensidade à alma e ao corpo que ganhou vitaliciedade. Essas pessoas
em geral agradam pelo seu jeito de ser, porém ficam privadas de darem notícia
ruim a quem quer que seja. Não podem, por exemplo, comunicar a morte, a
falência, a derrota eleitoral, a perda de um grande amor... Com aquele sorriso
de felicidade, jamais!
Assim, creio que é preciso reeducar
os brasileiros e as brasileiras para o bom exercício do sorriso de festa. A
começar do pré-escolar, instruindo a meninada de modo a guardarem para sempre a
advertência: sorria com moderação.
[Crônica publicada aqui no blog em janeiro de 2014]
Ilustração: Toulouse-Lautrec
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"A festa", poema de Cida Pedrosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/palavra-de-poeta_20.html
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