15 julho 2018

Uma questão ética


Por que a indústria do cigarro está investindo em ONG antitabagista?
CartaCapital

Cientistas de reputação imaculada deveriam aceitar contribuições financeiras de uma companhia de tabaco? Este não é um teste teórico de comportamento ético, mas o dilema que se apresentou dramaticamente para acadêmicos da Universidade de Utrecht (UU), na Holanda.
Quem lançou a isca foi a Philip Morris, gigante mundial do tabaco, e a oferta não era de se jogar fora: 360 mil euros (1,64 milhão de reais) para o trabalho de investigar as consequências do contrabando e falsificação de cigarros. De mais a mais, a companhia acenava com total liberdade para os acadêmicos em suas apurações.
Não são historicamente as mais decentes as relações entre profissionais da saúde e as controvertidas usinas de câncer de pulmão. Décadas atrás, a indústria de tabaco tinha o hábito de recrutar médicos de forma que eles, ao contrário do que já indicavam os alertas patológicos, alardeassem publicamente as virtudes do fumo para os pulmões e as vias respiratórias.
Médicos de prestígio aceitavam alegremente ser cúmplices desse crime. É natural que, hoje em dia, quando a indústria procura a academia, uma fumaça de desconfiança impregne o ar.
O professor de Direito John Vervaele, encarregado de administrar a doação em Utrecht, reagiu às críticas argumentando: “A indústria de tabaco não é ilegal. O comércio ilícito de cigarro, sim”.
O argumento não convenceu os pneumologistas e oncologistas da Sociedade Holandesa do Câncer, os mais desconfiados em relação à pretensa boa vontade da Philip Morris. Cerca de 7 milhões de pessoas continuam morrendo todos os anos, no mundo inteiro, vítimas dos efeitos malignos do fumo – rebateram os clínicos.
A discussão azedou a tal ponto que a UU acabou declinando da doação. Anunciou que ela própria vai bancar a pesquisa do professor Vervaele e sua equipe. 
A Philip Morris, por sua vez, está disposta a verter uma montanha de dinheiro em programas como aquele que tentou, em vão, na Holanda. O combate ao comércio ilegal de cigarro vai lhe custar 100 milhões de dólares – não só em pesquisas, mas também nos custos de repressão ao tráfico.
Outro bilhão de dólares a Philip Morris pretende investir, ao longo de 12 anos, na Foundation for a Smoke-Free World, uma ONG com sede em Nova York. Como entender que a fabricante do Marlboro, a marca número 1, esteja financiando uma fundação que prega “um mundo sem cigarro?”
A tal fundação suscita controvérsias, de fato. A Philip Morris assegura que ela exprime hoje uma preocupação que é de toda a indústria do tabaco: como ajudar os fumantes a encontrar alternativas seguras aos cigarros combustíveis, unanimemente fadados à extinção? 
Já a Organização Mundial da Saúde não tem tanta certeza assim dos objetivos meritórios das campanhas da indústria.
Segundo a brasileira Vera Luzia da Costa e Silva, chefe da Convenção do Controle do Tabaco, com sede em Genebra, o que uma entidade endinheirada como a Foundation for a Smoke-Fee World almeja é atropelar as iniciativas coletivas para impor sua própria pauta, seus próprios métodos e, no final, seus próprios interesses. Que continuam comprometendo a vida saudável. 
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