Caro amigo
Cícero Belmar*
Estava
certo o poeta inglês John Donne: “Nenhum homem é uma ilha”. Apesar dos oceanos
que sempre existirão a nos limitar, precisamos ser-com os outros para nos
constituir. Os amigos é que nos dão amplitude.
Penso no
dom da amizade desde que soube da produção do longa “Depois do trem”, dirigido
pelo paulista Joel Pizzini. Protagonizado por Aramis Trindade, o filme é
baseado na vida e obra do poeta de primeira grandeza da literatura brasileira
Joaquim Cardozo.
As
filmagens, com a trégua da pandemia, começaram neste setembro, no Recife. O
produtor Vitor Campanario, sempre que precisou, ligou para o poeta José Mário
Rodrigues. Foi aqui que me peguei refletindo sobre a amizade. Zé Mário, assim o
chamo, funcionou quase como consultor.
Apesar da
diferença de idade, os dois poetas eram grandes amigos: por mais que não
tenhamos vocação para as travessias que nos afastam de nossas ilhas, somos
viajantes longínquos em busca do amor fraterno.
Através
dos amigos completamos o que a alma ainda não tem. Joaquim Cardozo já era o
humanista, o erudito, o dramaturgo, o poeta, o engenheiro calculista de renome
nacional, quando conheceu o jovem Zé Mário, poeta da chamada Geração 1965, do
Recife.
Quem
apresentou um ao outro, no Rio de Janeiro, em fins dos anos 1960, foi o
escritor José Condé. O encontro possibilitou a empatia, a reciprocidade, a boa
vontade, a afinidade. Virou amizade intelectual, duradoura, nesse exercício
delicado que é ser-no-mundo.
Somos
destinados a dimensões continentais de sentimentos e palavras: desde o primeiro
contato, todas as vezes que ia ao Rio, Zé Mário o procurava para falar da
terrinha, sobre a vida e a poesia. Em 1975, Zé Mário lançou o livro de poemas,
de sua autoria, “Os Motivos”.
Joaquim
Cardozo é que escreveu as orelhas: “A poesia de José Mário Rodrigues dá a
impressão de um jogo de laços topológicos; nele existe o conteúdo de formas
verbais que se entrelaçam. Daí se chega à desnecessidade de símiles, de
imagens, de metáforas, e outras figuras da linguística retórica… Num jogo sutil
de significados e significantes perdura na sua verve, a imagem acústica do
significante, no sentido em que Saussurre a compreendeu”.
Havia
sintonia e admiração. Como também é jornalista, Zé Mário o entrevistou para o
suplemento cultural do Jornal do Commercio e para o Jornal Universitário, em
que trabalhava. Uma entrevista por escrito. Anos depois, o jornalista Geneton
Moraes Neto escreveu o livro “Caderno de Confissões Brasileiras”, que tem um
capítulo com base nessa entrevista.
“A letra
nítida e irregular enche 16 páginas manuscritas que Joaquim Cardozo entregou ao
poeta José Mário Rodrigues, a quem devotava além de amizade, admiração”,
afirmou Geneton. A amizade é a união de terras opostas. E um fim, em si.
A
entrevista foi publicada, depois, no livro “Poesia completa e Prosa de Joaquim
Cardozo”, organizado por Everardo Norões. Nela, Cardozo responde perguntas de
Zé Mário sobre a vida, o tempo, a paz, o Oriente.
Nos
últimos anos de vida, já voltando a morar no Recife, Cardozo teve Zé Mário
sempre por perto. A comemoração dos 80 anos de Joaquim Cardozo foi organizada
pelo amigo, que também foi companhia muito presente quando ele apresentou
sinais de demência. Amizade profunda, de quem cuida, e que prosseguiu até o fim
da vida de Cardozo, em 1978, aos 81 anos. Ser amigo é ser-com o outro, que se
dispõe a sentir.
Muitas
informações importantes foram repassadas ao filme. Entre os telefonemas, Zé
Mário, que não é ator, foi convidado para fazer o papel de um músico que
cotidianamente pegava o mesmo trem que Cardozo, quando este ainda era
secundarista. O músico e Cardozo eram amigos.
É o trem
que dá título ao filme. Uma metáfora da vida? Ou é a própria amizade uma
metáfora para quem veio ao mundo, como todos nós, destinados a “ser-com”?
Assim nos
fala José Mário: “Sou o que vim da montanha/ mesmo sem ter ido à montanha/ sou
o que vim”. Trem que corre, como o tempo, como a vida: “És meu único amigo/ meu
repouso/ e vens justamente/ quando as nuvens estão tramando inverno”.
[Ilustração: Pablo Picasso]
*Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
Veja: Mais
do que nunca vale o diálogo sem preconceitos https://bit.ly/3kbDHqq
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