Jair
pelado
Um
presidente pulando de culto em culto
Fernando
de Barros e Silva, revista piauí
A três meses da eleição presidencial, a disputa pelo poder se cristalizou entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro. A campanha oficial ainda não começou, mas há tempos está claro que a terceira via não passa de uma fantasia das elites. As mesmas elites que ajudaram a eleger Bolsonaro em 2018 e estão hoje à procura de alguém que saiba comer com garfo e faca, de preferência sem uma pistola ao lado do prato, desde que não lhes ameace o banquete e as regalias.
A exemplo do que se viu no Chile, no final de 2021, e na Colômbia, no
mês passado, o embate político no Brasil também está sendo travado entre forças
progressistas maleáveis, que pregam o diálogo, estão comprometidas com a
democracia e têm como horizonte o reformismo social moderado, de um lado, e a
direita que atira, do outro. No caso de Bolsonaro, isso não é uma metáfora.
No Chile, Gabriel Boric derrotou José Antonio Kast no segundo turno com
quase 12 pontos percentuais de vantagem. Na Colômbia, também em dois turnos,
Gustavo Petro superou o empresário Rodolfo Hernández com 50,44% dos votos
válidos. Nos dois casos, os derrotados reconheceram logo os resultados e
parabenizaram o vencedor. Os rituais da democracia foram respeitados. Sabemos
que Jair Bolsonaro não os seguirá se for batido nas urnas. Seu script é o de
Donald Trump. Segundo o depoimento recente de uma ex-assessora da Casa Branca
ao comitê parlamentar que investiga o ataque ao Capitólio, Trump sabia que
havia gente armada entre os invasores. Deu ordens ao serviço secreto para que
fossem dispensados os detectores de metal e tentou se juntar aos delinquentes
para barrar a certificação de Joe Biden. O motorista do carro presidencial se
recusou a levá-lo até o Capitólio, e Trump chegou a agarrá-lo pelo pescoço num
acesso de fúria.
Nos Estados Unidos, as instituições reagiram à insanidade do
ex-presidente. Não sabemos o que acontecerá no Brasil. Alguém, nas atuais
circunstâncias, tem motivos para confiar no compromisso dos militares com a
democracia? Pelo contrário. A confirmação do general Braga Netto como candidato
a vice não se baseia em cálculos eleitorais (havia nomes mais fortes para
expandir a base de votos de Bolsonaro, a começar pela ex-ministra da Agricultura,
Tereza Cristina). Braga Netto não acrescenta nenhum voto à chapa, mas é útil a
um projeto político de vocação essencialmente autoritária. As Forças Armadas,
que nunca renegaram os horrores do regime instaurado em 1964, sentem-se cada
vez mais à vontade para abrir um champanhe a cada 31 de março. Atitudes e
declarações do ministro da Defesa nos últimos meses não deixam muitas dúvidas
sobre a participação militar no esforço bolsonarista de descredenciamento do
Tribunal Superior Eleitoral como juiz da eleição. Onde irão parar?
Ao integrar a Marcha para Jesus, no último sábado de junho, em Balneário
Camboriú, Bolsonaro voltou a insistir na retórica golpista. “Tenho certeza, se
preciso for, e cada vez mais parece que será preciso, nós tomaremos as decisões
que devam ser tomadas”, disse, diante da multidão que o incensava entre
aplausos e gritos de “mito, mito”. A frase de efeito ameaçador foi precedida
por um discurso que, como de costume, avançava aos solavancos, com sintaxe
truncada e passagens entre enigmáticas e incompreensíveis. Visto no conjunto,
no entanto, o recado era claríssimo. Como se a dificuldade com as palavras se
convertesse num recurso de linguagem, num ganho de comunicação, numa arma de
Bolsonaro.
Ele começa evocando a passagem bíblica (Conhecereis a verdade etc.
etc.). A seguir, ressalta como pode ser difícil e doloroso alcançá-la. E
emenda: “Sequer a verdade da Constituição essas pessoas querem admitir.” “Essas
pessoas”, fica implícito, são os ministros do Supremo Tribunal Federal que lhe
atrapalham o caminho. Vem então o arremate: “Cada um quer a sua própria Carta
Magna.” Ou seja, quem usurpa as leis sagradas do país em benefício próprio não
é ele, são os capas pretas. Ecoam no litoral catarinense gritos de “mito,
mito”.
O presidente atravessou o último mês pulando de culto em culto, em vários pontos do país. No dia 17 de junho, uma sexta-feira, participou de dois diferentes em Belém do Pará. A imprensa deu mais atenção ao segundo deles, no templo central da Assembleia de Deus, que comemorava 111 anos. Antes disso, Bolsonaro passou pelo Mangueirinho, o ginásio poliesportivo com capacidade para mais de 11 mil pessoas, ao lado do estádio do Mangueirão. Lá a Igreja Quadrangular realizava o seu culto.
Veja:
Bolsonaro, os militares e a democracia https://bit.ly/3NwQssg
Um dos convidados no palco era Silas Malafaia, líder da Assembleia de
Deus Vitória em Cristo. Também no palco estava o pastor Gidalti Alencar, da
Igreja Cristo Nossa Rocha, denominação neopentecostal com sede nos Estados
Unidos. Mas quem anunciou Bolsonaro aos fiéis foi o pastor Josué Bengtson,
líder da Quadrangular, a quem o presidente se referiu como “meu velho amigo de
Parlamento”. Deputado federal por quatro legislaturas pelo PTB de Roberto
Jefferson, Bengtson foi flagrado em 2006 no “escândalo dos sanguessugas”. Era
um dos integrantes da chamada “máfia das ambulâncias”. Só em 2018 a Justiça
Federal o condenou à perda do mandato e suspendeu seus direitos políticos por
oito anos, além de multá-lo em 150 mil reais. O dinheiro desviado da
saúde por Bengtson foi parar na sua conta e na conta da Igreja Quadrangular.
Ele ainda recorre da sentença.
Um dos filhos do pastor, Paulo, é deputado federal pelo PTB e integra a
bancada ruralista na Câmara. Seu outro filho, Marcos, é quem cuida dos negócios
de pecuária da família. Em 2010, Marcos chegou a ser preso, acusado de ser o
mandante do assassinato do líder sem-terra José Valmeristo Soares, o Caribé,
ocorrido em 4 de setembro daquele ano. Os assassinos eram seguranças de Marcos,
e o carro que usaram no crime também pertencia ao filho de Josué. Marcos foi
solto meses depois por decisão do Tribunal de Justiça do Pará. Passados doze
anos, ninguém foi julgado, e o caso continua sem solução. Na cosmologia de
Bolsonaro, os Bengtson são a própria encarnação do cidadão de bem (ou de
bengtson).
No sábado, 18 de junho, o presidente foi a Manaus para o congresso
promovido pelo Ministério Internacional da Restauração, também uma denominação
neopentecostal. Como na véspera, em Belém, participou de uma motociata. E,
apesar de estar na capital do Amazonas, evitou falar dos assassinatos de Bruno
Pereira e Dom Phillips, cujos corpos haviam sido encontrados na mata três dias
antes. No mesmo dia 15 em que os corpos desfigurados foram transportados a
Brasília para reconhecimento, Bolsonaro disse em entrevista a Leda Nagle que
“esse inglês era malvisto na região porque ele fazia muita matéria contra
garimpeiro” e “muita gente não gostava dele”. Phillips, segundo o velho amigo
de Josué Bengtson, “tinha que ter mais do que redobrado a atenção para consigo
próprio”. É como se dissesse diante da vítima: perdeu, cowboy.
Bolsonaro é o presidente da República, mas fala da perspectiva do
bandido. Raciocina como os piratas que diz existir nas águas daquela região.
Ele é o pescador ilegal. Em 2012, foi multado enquanto pescava numa área de
proteção ambiental em Angra dos Reis. Não só deixou de pagar a multa como
perseguiu o fiscal do Ibama que havia feito a coisa certa, até exonerá-lo do
cargo no início de 2019, assim que chegou à Presidência.
Pelado e seus comparsas não teriam agido como agiram se o governo de
Jair Bolsonaro não tivesse desmantelado a Funai. Numa entrevista de leitura
dolorosa concedida por Bruno Pereira, 44 dias antes de ser assassinado, ele
conta à repórter Rosiene Carvalho que “já imaginava o que vinha” ao ser
demitido da função de coordenador-geral de Índios Isolados e Recém-Contatados.
Diz também que o general Franklimberg Freitas, presidente da Funai no governo
de Michel Temer, reuniu alguns quadros da instituição assim que foi desligado,
já no governo Bolsonaro, e disse: “Se preparem que ele vem para arrebentar
tudo.”
Difícil encontrar definição mais justa.
Veja: O inferno astral de Jair Bolsonaro https://bit.ly/3Pf8TTy
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