Entre o consignado e a
fome: tumultos e cozinhas solidárias
Ao lidar com a condição de
insegurança alimentar distribuindo refeições gratuitas, as cozinhas promovem o
caminho para a segurança alimentar, garantindo que parcela importante da
população tenha acesso regular a alimentos de qualidade
Denise De Sordi, Le Monde
Diplomatique
“Eu até me emociono quando lembro,
eu pensei que nós fôssemos morrer de fome”, me disse um homem em situação de
rua com a filha de uns quatro anos no colo que acenava concordando com o pai.
Pacientemente, ele respondia às minhas perguntas sobre como ele e outras
pessoas na mesma situação utilizam, avaliam e pensam o trabalho das cozinhas
comunitárias abertas por organizações religiosas e grupos de pessoas, e o
trabalho da cozinha solidária do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o
MTST, na cidade do Rio de Janeiro.
Em meio ao período mais agudo da
pandemia, ele encontrou no circuito formado por estas cozinhas um recurso de
sobrevivência. Já em 2022, após meses imerso no vazio deixado pós-Auxílio
Emergencial e pela transiç ão entre o Programa Bolsa Família e o Auxílio
Brasil, buscando atendimento em um “lotado” Centro de Referência de Assistência
Social (CRAS), ele conseguiu o benefício que não é suficiente para se alimentar
todos os dias e que “mal dá para pagar o aluguel de um quarto”, o que pretendia
fazer tão logo o crédito consignado fosse liberado.
Desde meados de julho, pelo menos,
as pessoas que retiram quentinhas têm sido abordadas nas ruas inúmeras vezes
por empregados de agências financeiras oferecendo uma simulação do crédito
consignado num total de R$ 2.04 4,57 feita com o valor base da parcela do
auxílio de R$ 400. Em meados de agosto deste ano, uma fila de pré-cadastro foi
organizada por uma agência que oferece “empréstimo rápido e fácil” com a linha
de crédito “Auxílio Brasil Novo Plus BR”. Em meio às incertezas sobre a
continuidade do programa, ou mesmo sobre a permanência das pessoas enquanto
beneficiárias, as 24 parcelas de R$ 160 reduziriam o benefício a R$ 240. A fila
de atendimento para o pré-cadastro, maior que o esperado, acabou em tumulto por
causa de um desencontro de informações sobre quando o crédito efetivamente
seria disponibilizado &a grave;s pessoas. A agência precisou encerrar as
atividades às pressas naquele dia e este foi o assunto nas filas das cozinhas
ao longo da semana.
Esse tem sido o circuito de
experiências de muitos dos 33 milhões de trabalhadores que estão em situação de
insegurança alimentar grave: passando fome. São pessoas que estão não só nas
portas das padarias, mas dentro dos supermercados pedindo para aqueles que
ainda têm condições, que comprem algo, nas filas para coletar restos de ossos
de açougues, ou revirando caçambas de lixo. Parte importante dessa população
tem encontrado em cada uma das 31 Cozinhas Solidárias que foram erguidas em
treze estados, com o projeto homônimo, pelo MTST em parceria com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), a única refeição completa e saudável
do dia.
É na fila de uma dessas cozinhas,
na Lapa, que todos vão chegando desde as primeiras horas do dia e marcando seus
lugares na fila. Usam pedras, cobertores, sacolas e pertences que podem ser
deixados ali para que, às 13h, quando a refei&c cedil;ão é servida, tenham
garantida uma das 250 quentinhas. Muitos moram ali por perto de onde está a
cozinha, mas há famílias que atravessam a cidade com o passe social do
transporte público para chegar até lá, e não é incomum que trabalhadores
empregados marquem seus lugares na fila e retornem mais tarde para retirar a
quentinha.
Os alimentos utilizados pela
Cozinha Solidária são agroecológicos, fornecidos pelo MPA; isso significa que
são sem veneno, plantados por pequenos agricultores. Batata-doce, hortaliças,
tomates, ovos, feijão, abobrinh a, inhame, fubá, linguiça, limão galego,
farinha, banha de porco, café, banana e arroz, dentre outros que, além de
produzidos sem veneno, são a tradução do trabalho das famílias de camponeses em
diferentes estados do país. Não só alimentam quem precisa, mas ao serem
adquiridos em larga escala, combatem a reprodução da pobreza no longo prazo
pois permitem que as famílias se fixem no campo. Promovem também a preservação
ambiental e de saúde da população, ao passo que a previsão de escoamento da
produção abre a possibilidade para que estas mesmas famílias realizem a
transição agroecológica, deixando de produzir alimentos com venenos. Em cada
entrega feita nas cozinhas há o acompanhamento dos produtores para saber sobre
o destino dos alimentos e sobre a qualidade da produçã o. Por trás de cada
alimento consumido há uma geração de uma família de camponeses trabalhando na
produção.
Ao lidar com a condição de
insegurança alimentar distribuindo refeições gratuitas, as cozinhas promovem o
caminho para a segurança alimentar, garantindo que parcela importante da população
tenha acesso regular a alimentos de qualidade. Frente ao desmanche de programas
como o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), iniciativas
como esta indicam um caminho para a reconstrução das políticas públicas de
segurança e soberania alimentar que precisarão ser pensadas nos próximos anos.
Agroecologia, uma vertente do
combate à fome https://bit.ly/3Ot0mgz
A discussão sobre a fome, quando
reduzida ao valor do benefício dos programas de transferência condicionada de
renda, tal como feito pelo Auxílio Brasil, erode a rede de proteção social,
intensificando a reprodução da pobreza porque se baseia na falsa premissa do
“incentivo ao esforço individual”. Ignora-se, em favor de uma agenda política e
econômica, o fato de que a produção da condição de pobreza e uma de suas faces
mais cruéis – a fome – estão ligadas à forma de organização da sociedade. Ou,
como nos lembra Josué de Castro em seu Geografia da fome, aos “sistemas
econômicos e sociais”.
Nesse mesmo sentido, se ações de
combate à fome são tematizadas em frentes de ação isoladas como a distribuição
de alimentos, como a experiência dos anos de 1990 – que tem sido ignorada pelo
formato do Programa Alimenta Brasil (PAB) que substituiu o PAA – nos ensina, os
programas e ações não se mostram sustentáveis nos médio e longo prazos. A
garantia da segurança alimentar está conectada à capacidade das políticas
públicas em regular, mediar e constituir o circuito dos alimentos de forma
sustentável e somada às condições políticas e econômicas do país, trata-se de
uma pauta que caminha junto com a urgência da fome e da democracia. Esta
última, por sua vez, é valor que permite que pensemos o lugar da política e o
ponto de partida para ações de combate à fome.
O combate à pobreza também não se
resume à suposta liberdade econômica e à capacitação dos trabalhadores para
empregos inexistentes, com o incentivo a um tipo de empreendedorismo que
mascara a informalid ade. Cabe sublinhar que, em um dos dias da semana, a
Cozinha Solidária do MTST entrega quentinhas diretamente nos pontos de descanso
dos trabalhadores de aplicativo que cumprem sua jornada de entrega de refeições
e alimentos: com fome.
As Cozinhas Solidárias são compostas por voluntários, jovens e idosos que têm
feito muito todos os dias, colocando em xeque a naturalização da fome no país.
Além das refeições, oferecem café, água e um espaço de convivência, apoio e
organização política: de horizonte de cidadania.
Nem sempre as quentinhas
distribuídas nas cozinhas comunitárias e solidárias são suficientes e, nas
últimas, semanas o número de pessoas nas filas não para de aumentar. Em alguns
dias, a fila se estende por do is ou três quarteirões. A tensão também escala
e, não poucas vezes, as pessoas discutem e se empurram disputando a fila, o que
provoca tumultos. É um tumulto provocado pelo medo explícito de ficar sem
comida. São cenas brutais que expressam a condição indigna da fome em nosso
país, líder mundial na produção de grãos e de carne bovina.
O receio de ficar sem a quentinha,
que tem como base arroz, feijão, legumes e uma carne, só é acalmado quando a
própria cozinheira ou a coordenação vai até a fila e conversa com as pessoas.
Quando as quentinha s não são suficientes para todos, o momento posterior à
entrega, de organização da cozinha pela cozinheira e pelos voluntários, é
silencioso. Pesa no ar o entendimento doloroso de que, naquele dia, pessoas
ficaram sem se alimentar. Ficaram sem, talvez, a única refeição completa do
dia.
Denise De Sordi é historiadora, pesquisa dora da FFLCH/USP e
da COC/Fiocruz.
Comida desperdiçada, todos os anos, poderia
alimentar 1,26 bilhão de pessoas https://bit.ly/3zgNkg0
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