Paisagem
originária
Cícero
Belmar
Recesso de janeiro, casa dos meus
pais. O dia vai se descortinando em paz. Da varanda, tudo é claro, passado,
presente e futuro. Sinto essa brisa antiga e antecipo nostalgias olhando a rua
que se estende silenciosa, preguiçosa, com a mesma arquitetura de décadas.
Amanhece em Bodocó. Vejo um
espetáculo na rua vazia. Sopra a brisa calma e os pardais se agitam em torno de
frondosos fícus-benjamin da Praça da Independência. É a pracinha em frente à
casa mais sólida do mundo. É o único lugar onde me descubro diante de mim.
Um homem cruza a rua nas primeiras
horas, para fazer compras na mercearia, que fica rua acima, onde se vende café
em pó, açúcar, biscoito, ovos e margarina, coisas assim, de primeiras
necessidades ao começo do dia. Todos os dias, na mesma hora, haverá de fazer
esse percurso. Ele me vê na varanda, baixa o olhar, por timidez, deseja bom dia
por regra de educação. Eu respondo da mesma forma e ele segue. No passo sem
pressa.
Quase não há mais vestígios de minhas
identidades onde, certo dia, elas mesmas começaram. Pela manhã os pardais
voejam com uma alegria como se a copa dos fícus-benjamin fosse o universo
inteiro. Por meia hora ninguém mais passa na rua, só um cachorro sarnento cruza
a praça num trotar de cão sem rumo e sem destino.
Fantasias ansiosas à parte, será que,
de fato, minhas identidades começaram ali? Ou será que as identidades é que
morrem aos poucos cada vez que tentamos rever e não encontramos as pedras do
passado?
Dou conta de que os becos que ficam
nas proximidades da casa dos meus pais, becos por onde andei, ainda estão e ao
mesmo tempo não estão mais ali. Vejo-os agora da varanda, calçados com os
mesmos paralelepípedos de quando fui criança e jovem. Tapetes de
paralelepípedos, porque são assim as coisas do passado.
Beco do Exu, onde morava seu João Enéias; Beco Estreito, da costureira dona Geracina; Beco das Bananas, da bodega de Seu Justino. Da bodega de Marca Peixe. Da bodega de seu Chico das bananas. Becos que hoje não são mais de ninguém. Ficaram sem personalidade.
Todos os becos convergiam ao centro
de tudo, a Praça da Independência. Antes que eu me esqueça, praça que hoje tem
outro nome, justíssimo, José Gomes de Sá, ilustre morador da cidade. Praça da
Independência, onde nos encontrávamos todas as noites. Onde compartilhávamos a
felicidade indiscutível. Hoje, solitária residência de pardais.
Época dos meus risos. Da varanda da
casa dos meus pais, sou capaz de ouvir as sonoras gargalhadas que ríamos das
piadas inventadas por Pitanga. Pelo menos, aqui, ainda há uma brisa. Mandei
dizer a um amigo da capital, pelo whatsapp, que em nenhum outro lugar do mundo
há o sopro leve dessa brisa. E ele me retornou dizendo que já foram inventados
os ventiladores turbo, tudo muito mais prático e eficiente.
Não sei o que mudou, se fui eu ou se
foram aquelas pedras esquecidas dos calçamentos. Meus pais estão idosos e no
retorno à minha cidade, para revê-los, sinto imensa gratidão. Meu Deus muito
obrigado por essa graça. Só de pensar no amanhã me dá calafrios.
Apenas uma coisa não mudou, além da
brisa subjetiva e passageira: o espetáculo de ontem à noite: o céu estrelado do
Sertão: há milênios está ali e é sempre novo: o céu do Sertão, não oh gente:
meu pai me chamou:
– Venha ver as estrelas! (Ele olhou
para o Cruzeiro do Sul e seus olhos brilharam. Que emoção era aquela?).
– Me ensine a ver.
Não há como ver as estrelas se esta
manhã não se transformar em dia pleno, vir a tarde, e a noite chegar. Eis a
suave tirania do tempo.
[Ilustração: David Falkão]
*Jornalista, escritor
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