A questão militar
A TUTELA
MILITAR SOBRE O BRASIL
Água mole em pedra dura tanto bate até que fura
Ana Penido/Le Monde Diplomatique
A
militarização da política durante o governo Bolsonaro veio, sim, acompanhada da
politização da caserna. Porém, a desmilitarização da política e a
despolitização da caserna não são irmãs siamesas da profissionalização militar.
Militares profissionais interveem na política, dão golpes… Construir o controle
popular sobre os instrumentos de violência estatais não é simples, mas não é
impossível
Passado-presente
A tutela militar sobre
a política , as instituições e a sociedade brasileira é um componente
fundamental da formação social, cultural, econômica e política do Brasil. Não
deve ser pensada como algo pontual do governo Bolsonaro, ou mesmo como resíduo
da última ditadura militar. É, sim, algo permanente, parte do DNA brasileiro,
tal qual o racismo, com raízes ainda no período da independência. Reconhecer
esse passado comum que orgulha a alguns, e envergonha a outros, é o início do
caminho. Pode parecer um início pouco alvissareiro para um texto, mas o
enfrentamento à tutela militar não é apenas uma questão de vontade e exigirá
muita Virtú em uma correlação de forças variável. Felizmente,
a Fortuna parece sorrir atualmente. Voltaremos a esse ponto.
A não punição dos militares que
cometeram crimes como o de tortura durante a ditadura contribuiu para a tutela
militar, e são pertinentes as reivindicações daqueles que lutam por Memória,
Verdade e Justiça. Também é imp ortante reconhecer que a transição “lenta,
gradativa e segura”, feita sob controle militar, deixou suas marcas na
Constituição, como o artigo 142, que permite o emprego doméstico das tropas.
Entretanto, olhando para dentro dos muros dos quartéis, existem quatro áreas de
reserva de domínio que permitem a autorreprodução da autonomia militar: a
educação dos militares, a inteligência militar, a justiça militar e o orçamento
da área de defesa. Enquanto essas quatro áreas permanecerem intocadas, a tutela
militar sobre a política em suas diversas formas mais ou menos explícitas
prosseguirá.
Vez ou outra, a participação
política se torna mais explícita. Recentemente, vemos a atuação de segmentos de
militares militantes como um partido orgânico, o partido militar. Este tem um
projeto de poder e, para iniciar sua implementaç ;ão, precisava, diferentemente
de 1964, chegar ao topo do Executivo por meio de eleições. Para isso, inflou a
candidatura Bolsonaro, forte comunicador, e, por um conjunto de razões que não
aprofundaremos, obteve sucesso em 2018. Destacaremos apenas uma delas: a
instituição militar é muito bem avaliada pela população, assim como as igrejas,
diante de uma desconfiança completa nos políticos, partidos, entre outros. O
partido militar emprestou essa confiança popular na instituição militar ao
governo Bolsonaro, e constitui um difícil esforço identificar até onde vai o
partido e começa a instituição. A instituição militar, por exemplo, permitiu (e
até mesmo estimulou) a montagem de acampamentos em torno dos quartéis. Os
militantes do partido e seus familiares encheram os acampamentos, mas não era
um acampamen to do Exército.
Quanto ao governo Bolsonaro, é
preciso reconhecer que foi militarizado de cabo a rabo, ou, na terminologia da
caserna, militares ocuparam em massa e em profundidade a estrutura do Estado.
Nunca houve (nem faria sentido, pois eram a força dirigente do governo) um
desembarque do partido militar do governo, embora uma ou outra figura tenha se
erigido enquanto crítico público, como o general Santos Cruz. Existem, sim,
nuances importantes que variam entre: 1) votar no Bolsonaro, 2) militar pela
campanha Bolsonaro, 3) apoiar/participar de ações de desestabilização
(inclusive violentas) pró-Bolsonaro com a finalidade de um golpe de Estado, 4)
sublevar unidades militares culminando em golpe de Estado. Entretanto, seguir
em busca de generais “legalistas”, um novo Lott, que ajude na desmilitarização
do governo e na despolitização dos quartéis, parece equivocado.
A fidelidade do partido militar é
à família militar, e não ao ex-presidente; por isso, seguirá atuando na
política. O partido militar une as diferentes vontades individuais em um
discurso coletivo partidário fortemente ideológico e, para isso, cuida da
formação política de seus quadros. Não é monolítico ou homogêneo, mas bastante
coeso. O partido representa os interesses corporativos, priorizando as
políticas públicas e exercendo cargos por base própria, mas também participa,
direta ou indiretamente, das eleições e interpreta a Constituição de acordo com
seus interesses, querendo popularizar seus entendimentos sobre o país. Seu
núcleo é permanente, e não conjuntural ou reflexo de regimes políticos,
encarregando-se de estabelecer alianças e realizar articulações políticas que,
em alguns casos, podem aumentar seu poder. A estrutura organizacional do
partido repete a das forças, baseada na hierarquia e na disciplina, e aproveita
as estruturas estatais para seu funcionamento. Trata-se, portanto, de um
partido com alta disciplina partidár ia e processos decisórios simples e
hierarquizados, comandados por generais do Exército que disseminam suas
opiniões políticas e ocupam as estruturas partidárias de cima para baixo, numa
lógica piramidal. Os generais da reserva gozam de maior proeminência porque têm
liberdade de ação. Eles transferem ideias como guerra e paz, amigo e inimigo,
para o pensamento político e têm um impacto profundo no sistema político.
Finalmente, diferentemente de qualquer outro partido político, o partido
militar mantém relações diretas com a força das armas.1 Seu
projeto para o país está explícito no Projeto Brasil 2030, construído por
institutos militares.
Embora falar em militares seja
algo muito amplo, é possível identificar linhas gerais de coesão no partido
militar, como o sentimento de superioridade diante dos civis. A corporação se
considera a própria essência da nação, ten do como “destino manifesto” a
“missão de salvá-la”. O comunismo é visto como o inimigo histórico e um
antagonista da ordem ocidental. Agendas de identidade (luta contra o racismo,
machismo, homofobia…) são diversionistas. A democracia é responsabilidade das
elites, cabendo ao povo apenas o voto. Defendem um Estado forte na defesa e na
segurança pública, mas, nas demais áreas, ele não precisa atuar como indutor,
muito menos como responsável. Predomina a ética do sucesso e a noção de que os
fortes sobrevivem.
Quando o rochedo se encontra com o mar
Lula pouco
falou de militares durante a campanha. Sinalizou a desmilitarização do governo
e a nomeação de um ministro civil para o Ministério da Defesa. Depois de
eleito, a pauta ficou completamente em segundo plano. Não houve sequer um grupo
de t rabalho para a área de defesa. Lula foi conservador na escolha do ministro
e dos comandantes das três Forças, sinalizando seu desejo de conciliação. Ele
nem mesmo exonerou militares declaradamente comprometidos com o governo
anterior, que seguiram em postos estratégicos no Gabinete de Segurança
Institucional, por exemplo. Mais paz e amor, impossível. É compreensível,
embora incorreto. Diante de um cenário de terra arrasada no Executivo, um
Legislativo fisiológico e uma Avenida Paulista que não afrouxa a pressão, Lula
comprou as brigas que dizem imediatamente respeito à vida do povo comum.
Mas Lula acertou brilhantemente no
dia 8 de janeiro ao não decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem.
Não se trata de ter medo de um golpe, ou da insubordinação, mas de não entregar
para a caserna a imagem de “restauradores da ordem”, uma ordem que eles mesmos,
no mínimo por leniência, ajudaram a quebrar. Lula acertou novamente colocando
um civil para coordenar a intervenção federal na segurança pública do Distrito
Federal.
Da parte dos militares, não são
factíveis dois argumentos sobre o dia 8: 1) não sabiam que ia acontecer, pois
foram fartos os alertas dos muitos serviços de inteligência e até da imprensa,
2) não temos meios humanos e materiais para a tuar nessas situações. No mais,
na melhor hipótese, houve leniência, falha na tomada de decisão ou na execução
da proteção. Na pior hipótese, houve cooperação. Atualmente, as investigações
da justiça estão em processo de individualizar as responsabilidades de quem
planejou, quem pagou, quem fez e quem estimulou a destruição no dia 8 de
janeiro. Quanto ao Judiciário militar, não é possível afirmar o mesmo.
Entretanto, isso é difícil de sustentar a longo prazo. Civis e militares
envolvidos no dia 8 cometeram crimes. O que ocorrerá quando as punições
criminais aos civis começarem a ser anunciadas e nada ocorrer dentro da
caserna? O desgaste dos militares envolvidos não foi apenas com Lula, mas com
todas as instituições destruídas, incluindo o Congresso e o Supremo, e com a
própria opinião pública.
Entre mensagens cifradas e
explícitas, uma ação de Lula deve ser ressaltada: a demissão do general Júlio
César Arruda do Comando do Exército. Diferentemente de seu comportamento nos
primeiros governos, dessa vez, quando houve desencontros c om os militares,
Lula não trocou o ministro civil, e sim o comandante militar, que, no mínimo,
falhou no cumprimento de sua missão. Lula enfrentou, não cedeu, não conciliou.
Se vai ter sucesso, se foi o suficiente, se poderia ser melhor, são todas
questões da correlação de forças, e sem respostas no aqui e agora. O importante
é que o comandante em chefe da nação e das Forças Armadas passou uma mensagem
política assertiva. Outra medida que merece destaque foi a transferência da
Agência Brasileira de Inteligência para a Casa Civil, tirando-a da alçada do
Gabinete de Segurança Institucional.
Lula está em início de um governo
de frente ampla, e é natural que não queira manter sempre alta a temperatura
política com os militares. Sinalizou dois caminhos para o futuro, ambos frágeis
e que repetem equívocos dos primeiros mandatos. O primeiro é oferecer dinheiro
para investimentos em equipamentos. Além de referendar um mau uso do dinheiro
público, militares interpretam essa ação como fragilidade do governo, que os
tentaria comprar com “brinquedos”. O segundo caminho é a revisão dos documentos
de defesa nacional, iniciativa para a qual foi nomeado um grupo composto
basicamente de militares, mais do mesmo…
Entretanto, a correlação de forças
internacional e doméstica neste início de mandato é muito distinta da anterior.
Na área de defesa, a Fortuna se alterou pela confluência
de diferentes fatores: 1) a imprensa está no encalço dos militares que
compuseram o governo Bolsonaro e tem milhares de documentos perdendo sigilo,
denúncias de corrupção, provas materiais de todo tipo para explorar; 2) a
instituição militar perdeu apoio popular em virtude das trapalhadas e da superexposição
no governo Bolsonaro; 3) não há apoio internacional – global ou regional – para
uma quartelada; 4) há perda de apoio entre elites nacionais, como as respostas
que as declarações virulentas de atores como Mourão e Etchegoyen receberam de
personagens como Joaquim Barbosa; 5) h&aacut e; insatisfações internas, que
se expressam em mensagens por redes sociais criticando alguns dos generais de
quatro estrelas, chamados de melancias (verdes por fora, vermelhos por dentro).
Lula pode ousar empregar sua Virtú de forma inovadora,
convocando a primeira Conferência Nacional de Defesa do Brasil. Com isso,
abrir-se-ia um amplo debate sobre defesa nacional, chamando diferentes setores
da sociedade para se sentar à mesa política. Tal proposta seria um sopro de democracia
participativa para uma área historicamente autoritária, traria mais segmentos
para a mesa – o que permite a ampliação e melhoria da correlação de forças –,
entregaria a responsabilidade de definir o que deve ser objeto de defesa e quem
nos ameaça para quem é de direito – o povo brasileiro –, atenderia a uma antiga
reivindicação histórica dos militares, que é a de que “ninguém liga para
defesa, só a gente” (e de quebra colocaria a retórica à prova), e ain da
construiria força social para reformas mais amplas.
O enfrentamento à tutela militar
precisa partir de distintos segmentos, não apenas de Lula. No âmbito
institucional, é preciso fortalecer o Ministério da Defesa e remodelá-lo para o
futuro, criando espaços para civis participarem enquanto bu rocracia
especializada na gestão da área. Outra burocracia importante são os organismos
de transparência e fiscalização da União, que podem atuar identificando a porta
giratória orçamentária existente entre militares da ativa e da reserva na
construção de editais e montagem de empresas que prestam serviços para a União
por meio desses editais, muitas vezes com dispensa de licitação. É possível
identificar e responsabilizar os conhecidos “militares maçaneta”, que abrem as
portas para o lobby de empresas (não apenas de armamentos) e para o mau uso de
recursos públicos e enriquecem ilicitamente.
O Legislativo pode atuar
enfrentando questões pendentes, como o período de quarentena dos militares que
saem das Forças e vão para a política, regulamentando as assessorias
legislativas das Forças que funcionam no Congresso e acabam atuando como l
obistas, propondo critérios para a escolha dos quatro estrelas (como sabatinas
no Congresso, a exemplo de outros países), reformando aspectos constitucionais,
como o artigo 142, remanejando o orçamento de outras áreas como saúde,
esportes, assistência, educação hoje executado pelo Ministério da Defesa para
suas áreas finalísticas. Por sua vez, o Judiciário pode, por exemplo, ser
célere no julgamento daqueles que cometeram crimes no dia 8 de janeiro. Pode
também reestudar a necessidade de uma justiça militar, notadamente corporativa.
Fora do Estado, a imprensa, as
universidades e organizações populares podem contribuir muito no controle
externo. A imprensa precisa refletir sobre o uso do off como recurso principal para
matérias que só se prestam à desmoralização da profissão com natureza
investigativa e para a plantação de matérias sobre humores militares que
contribuem para o clima golpista. Em outros termos, a mídia precisa deixar de
ser instrumento para que militares levem operações psicológicas a cabo sobre a
sociedade brasileira. As universidades precisam ampliar os estudos sobre a área
de defesa, colaborando para a quebra do monopólio militar sobe o tema.
As possibilidades para as
organizações populares são amplas. Sindicatos de categorias públicas podem
discutir a isonomia entre as carreiras de Estado; o movimento de mulheres deve
denunciar que o armamentismo mata e se somar às iniciativas para o control e de
armamentos e desmilitarização das polícias; também pode denunciar a misoginia e
a falta de políticas para a isonomia de gênero e raça presente nas Forças
Armadas, especialmente no Exército; ambientalistas devem se debruçar sobre quem
é o responsável pelo policiamento da Amazônia, pautando o projeto Calha Norte;
assim como lembrar que o hoje senador Mourão foi responsável administrativo
pelas políticas naquele território nos últimos quatro anos, inclusive sobre
terras indígenas; movimentos juvenis precisam compreender que a redução da
violência policial contra jovens negros passa por medidas de controle como a
implantação de câmeras em fardas, que, por sua vez, exigem o fim da
subordinação das polícias militares às Forças Armadas e aos governadores
simultaneamente; també ;m podem, como possíveis recrutas dessas forças, exigir
o cumprimento de regras que preservem sua integridade.
A militarização da política
durante o governo Bolsonaro veio, sim, acompanhada da politização da caserna;
são pares inseparáveis. Porém, a desmilitarização da política e a
despolitização da caserna não são irmãs siamesas da profissionalização militar.
Militares profissionais interveem na política, dão golpes… Construir o controle
popular sobre os instrumentos de violência estatais não é algo simples. Entretanto,
não é impossível. É preciso estratégia, dedicação e persistência. A água mole,
em pedra dura, uma hora perfura.
*Ana Penido é bolsista
Fapesp de pós-doutorado em Ciência Política (Unicamp).
1 Ana Penido e Suzeley Kalil, “O
partido militar no sistema político brasileiro”, Democracia e Direitos
Fundamentais, 16 set. 2022.
Um novo ciclo de transformações
progressistas na sociedade brasileira? bit.ly/41AKA9j
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