12 março 2023

A questão militar

A TUTELA MILITAR SOBRE O BRASIL

Água mole em pedra dura tanto bate até que fura
Ana Penido/Le Monde Diplomatique
 
A militarização da política durante o governo Bolsonaro veio, sim, acompanhada da politização da caserna. Porém, a desmilitarização da política e a despolitização da caserna não são irmãs siamesas da profissionalização militar. Militares profissionais interveem na política, dão golpes… Construir o controle popular sobre os instrumentos de violência estatais não é simples, mas não é impossível
Passado-presente
A tutela militar sobre a política , as instituições e a sociedade brasileira é um componente fundamental da formação social, cultural, econômica e política do Brasil. Não deve ser pensada como algo pontual do governo Bolsonaro, ou mesmo como resíduo da última ditadura militar. É, sim, algo permanente, parte do DNA brasileiro, tal qual o racismo, com raízes ainda no período da independência. Reconhecer esse passado comum que orgulha a alguns, e envergonha a outros, é o início do caminho. Pode parecer um início pouco alvissareiro para um texto, mas o enfrentamento à tutela militar não é apenas uma questão de vontade e exigirá muita Virtú em uma correlação de forças variável. Felizmente, a Fortuna parece sorrir atualmente. Voltaremos a esse ponto.
A não punição dos militares que cometeram crimes como o de tortura durante a ditadura contribuiu para a tutela militar, e são pertinentes as reivindicações daqueles que lutam por Memória, Verdade e Justiça. Também é imp ortante reconhecer que a transição “lenta, gradativa e segura”, feita sob controle militar, deixou suas marcas na Constituição, como o artigo 142, que permite o emprego doméstico das tropas. Entretanto, olhando para dentro dos muros dos quartéis, existem quatro áreas de reserva de domínio que permitem a autorreprodução da autonomia militar: a educação dos militares, a inteligência militar, a justiça militar e o orçamento da área de defesa. Enquanto essas quatro áreas permanecerem intocadas, a tutela militar sobre a política em suas diversas formas mais ou menos explícitas prosseguirá.
Vez ou outra, a participação política se torna mais explícita. Recentemente, vemos a atuação de segmentos de militares militantes como um partido orgânico, o partido militar. Este tem um projeto de poder e, para iniciar sua implementaç ;ão, precisava, diferentemente de 1964, chegar ao topo do Executivo por meio de eleições. Para isso, inflou a candidatura Bolsonaro, forte comunicador, e, por um conjunto de razões que não aprofundaremos, obteve sucesso em 2018. Destacaremos apenas uma delas: a instituição militar é muito bem avaliada pela população, assim como as igrejas, diante de uma desconfiança completa nos políticos, partidos, entre outros. O partido militar emprestou essa confiança popular na instituição militar ao governo Bolsonaro, e constitui um difícil esforço identificar até onde vai o partido e começa a instituição. A instituição militar, por exemplo, permitiu (e até mesmo estimulou) a montagem de acampamentos em torno dos quartéis. Os militantes do partido e seus familiares encheram os acampamentos, mas não era um acampamen to do Exército.
Quanto ao governo Bolsonaro, é preciso reconhecer que foi militarizado de cabo a rabo, ou, na terminologia da caserna, militares ocuparam em massa e em profundidade a estrutura do Estado. Nunca houve (nem faria sentido, pois eram a força dirigente do governo) um desembarque do partido militar do governo, embora uma ou outra figura tenha se erigido enquanto crítico público, como o general Santos Cruz. Existem, sim, nuances importantes que variam entre: 1) votar no Bolsonaro, 2) militar pela campanha Bolsonaro, 3) apoiar/participar de ações de desestabilização (inclusive violentas) pró-Bolsonaro com a finalidade de um golpe de Estado, 4) sublevar unidades militares culminando em golpe de Estado. Entretanto, seguir em busca de generais “legalistas”, um novo Lott, que ajude na desmilitarização do governo e na despolitização dos quartéis, parece equivocado.
A fidelidade do partido militar é à família militar, e não ao ex-presidente; por isso, seguirá atuando na política. O partido militar une as diferentes vontades individuais em um discurso coletivo partidário fortemente ideológico e, para isso, cuida da formação política de seus quadros. Não é monolítico ou homogêneo, mas bastante coeso. O partido representa os interesses corporativos, priorizando as políticas públicas e exercendo cargos por base própria, mas também participa, direta ou indiretamente, das eleições e interpreta a Constituição de acordo com seus interesses, querendo popularizar seus entendimentos sobre o país. Seu núcleo é permanente, e não conjuntural ou reflexo de regimes políticos, encarregando-se de estabelecer alianças e realizar articulações políticas que, em alguns casos, podem aumentar seu poder. A estrutura organizacional do partido repete a das forças, baseada na hierarquia e na disciplina, e aproveita as estruturas estatais para seu funcionamento. Trata-se, portanto, de um partido com alta disciplina partidár ia e processos decisórios simples e hierarquizados, comandados por generais do Exército que disseminam suas opiniões políticas e ocupam as estruturas partidárias de cima para baixo, numa lógica piramidal. Os generais da reserva gozam de maior proeminência porque têm liberdade de ação. Eles transferem ideias como guerra e paz, amigo e inimigo, para o pensamento político e têm um impacto profundo no sistema político. Finalmente, diferentemente de qualquer outro partido político, o partido militar mantém relações diretas com a força das armas.1 Seu projeto para o país está explícito no Projeto Brasil 2030, construído por institutos militares.
Embora falar em militares seja algo muito amplo, é possível identificar linhas gerais de coesão no partido militar, como o sentimento de superioridade diante dos civis. A corporação se considera a própria essência da nação, ten do como “destino manifesto” a “missão de salvá-la”. O comunismo é visto como o inimigo histórico e um antagonista da ordem ocidental. Agendas de identidade (luta contra o racismo, machismo, homofobia…) são diversionistas. A democracia é responsabilidade das elites, cabendo ao povo apenas o voto. Defendem um Estado forte na defesa e na segurança pública, mas, nas demais áreas, ele não precisa atuar como indutor, muito menos como responsável. Predomina a ética do sucesso e a noção de que os fortes sobrevivem.
Quando o rochedo se encontra com o mar
Lula pouco falou de militares durante a campanha. Sinalizou a desmilitarização do governo e a nomeação de um ministro civil para o Ministério da Defesa. Depois de eleito, a pauta ficou completamente em segundo plano. Não houve sequer um grupo de t rabalho para a área de defesa. Lula foi conservador na escolha do ministro e dos comandantes das três Forças, sinalizando seu desejo de conciliação. Ele nem mesmo exonerou militares declaradamente comprometidos com o governo anterior, que seguiram em postos estratégicos no Gabinete de Segurança Institucional, por exemplo. Mais paz e amor, impossível. É compreensível, embora incorreto. Diante de um cenário de terra arrasada no Executivo, um Legislativo fisiológico e uma Avenida Paulista que não afrouxa a pressão, Lula comprou as brigas que dizem imediatamente respeito à vida do povo comum.
Mas Lula acertou brilhantemente no dia 8 de janeiro ao não decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem. Não se trata de ter medo de um golpe, ou da insubordinação, mas de não entregar para a caserna a imagem de “restauradores da ordem”, uma ordem que eles mesmos, no mínimo por leniência, ajudaram a quebrar. Lula acertou novamente colocando um civil para coordenar a intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal.
Da parte dos militares, não são factíveis dois argumentos sobre o dia 8: 1) não sabiam que ia acontecer, pois foram fartos os alertas dos muitos serviços de inteligência e até da imprensa, 2) não temos meios humanos e materiais para a tuar nessas situações. No mais, na melhor hipótese, houve leniência, falha na tomada de decisão ou na execução da proteção. Na pior hipótese, houve cooperação. Atualmente, as investigações da justiça estão em processo de individualizar as responsabilidades de quem planejou, quem pagou, quem fez e quem estimulou a destruição no dia 8 de janeiro. Quanto ao Judiciário militar, não é possível afirmar o mesmo. Entretanto, isso é difícil de sustentar a longo prazo. Civis e militares envolvidos no dia 8 cometeram crimes. O que ocorrerá quando as punições criminais aos civis começarem a ser anunciadas e nada ocorrer dentro da caserna? O desgaste dos militares envolvidos não foi apenas com Lula, mas com todas as instituições destruídas, incluindo o Congresso e o Supremo, e com a própria opinião pública.
Entre mensagens cifradas e explícitas, uma ação de Lula deve ser ressaltada: a demissão do general Júlio César Arruda do Comando do Exército. Diferentemente de seu comportamento nos primeiros governos, dessa vez, quando houve desencontros c om os militares, Lula não trocou o ministro civil, e sim o comandante militar, que, no mínimo, falhou no cumprimento de sua missão. Lula enfrentou, não cedeu, não conciliou. Se vai ter sucesso, se foi o suficiente, se poderia ser melhor, são todas questões da correlação de forças, e sem respostas no aqui e agora. O importante é que o comandante em chefe da nação e das Forças Armadas passou uma mensagem política assertiva. Outra medida que merece destaque foi a transferência da Agência Brasileira de Inteligência para a Casa Civil, tirando-a da alçada do Gabinete de Segurança Institucional.
Lula está em início de um governo de frente ampla, e é natural que não queira manter sempre alta a temperatura política com os militares. Sinalizou dois caminhos para o futuro, ambos frágeis e que repetem equívocos dos primeiros mandatos. O primeiro é oferecer dinheiro para investimentos em equipamentos. Além de referendar um mau uso do dinheiro público, militares interpretam essa ação como fragilidade do governo, que os tentaria comprar com “brinquedos”. O segundo caminho é a revisão dos documentos de defesa nacional, iniciativa para a qual foi nomeado um grupo composto basicamente de militares, mais do mesmo…
Entretanto, a correlação de forças internacional e doméstica neste início de mandato é muito distinta da anterior. Na área de defesa, a Fortuna se alterou pela confluência de diferentes fatores: 1) a imprensa está no encalço dos militares que compuseram o governo Bolsonaro e tem milhares de documentos perdendo sigilo, denúncias de corrupção, provas materiais de todo tipo para explorar; 2) a instituição militar perdeu apoio popular em virtude das trapalhadas e da superexposição no governo Bolsonaro; 3) não há apoio internacional – global ou regional – para uma quartelada; 4) há perda de apoio entre elites nacionais, como as respostas que as declarações virulentas de atores como Mourão e Etchegoyen receberam de personagens como Joaquim Barbosa; 5) h&aacut e; insatisfações internas, que se expressam em mensagens por redes sociais criticando alguns dos generais de quatro estrelas, chamados de melancias (verdes por fora, vermelhos por dentro).
Lula pode ousar empregar sua Virtú de forma inovadora, convocando a primeira Conferência Nacional de Defesa do Brasil. Com isso, abrir-se-ia um amplo debate sobre defesa nacional, chamando diferentes setores da sociedade para se sentar à mesa política. Tal proposta seria um sopro de democracia participativa para uma área historicamente autoritária, traria mais segmentos para a mesa – o que permite a ampliação e melhoria da correlação de forças –, entregaria a responsabilidade de definir o que deve ser objeto de defesa e quem nos ameaça para quem é de direito – o povo brasileiro –, atenderia a uma antiga reivindicação histórica dos militares, que é a de que “ninguém liga para defesa, só a gente” (e de quebra colocaria a retórica à prova), e ain da construiria força social para reformas mais amplas.
O enfrentamento à tutela militar precisa partir de distintos segmentos, não apenas de Lula. No âmbito institucional, é preciso fortalecer o Ministério da Defesa e remodelá-lo para o futuro, criando espaços para civis participarem enquanto bu rocracia especializada na gestão da área. Outra burocracia importante são os organismos de transparência e fiscalização da União, que podem atuar identificando a porta giratória orçamentária existente entre militares da ativa e da reserva na construção de editais e montagem de empresas que prestam serviços para a União por meio desses editais, muitas vezes com dispensa de licitação. É possível identificar e responsabilizar os conhecidos “militares maçaneta”, que abrem as portas para o lobby de empresas (não apenas de armamentos) e para o mau uso de recursos públicos e enriquecem ilicitamente.
O Legislativo pode atuar enfrentando questões pendentes, como o período de quarentena dos militares que saem das Forças e vão para a política, regulamentando as assessorias legislativas das Forças que funcionam no Congresso e acabam atuando como l obistas, propondo critérios para a escolha dos quatro estrelas (como sabatinas no Congresso, a exemplo de outros países), reformando aspectos constitucionais, como o artigo 142, remanejando o orçamento de outras áreas como saúde, esportes, assistência, educação hoje executado pelo Ministério da Defesa para suas áreas finalísticas. Por sua vez, o Judiciário pode, por exemplo, ser célere no julgamento daqueles que cometeram crimes no dia 8 de janeiro. Pode também reestudar a necessidade de uma justiça militar, notadamente corporativa.
Fora do Estado, a imprensa, as universidades e organizações populares podem contribuir muito no controle externo. A imprensa precisa refletir sobre o uso do off como recurso principal para matérias que só se prestam à desmoralização da profissão com natureza investigativa e para a plantação de matérias sobre humores militares que contribuem para o clima golpista. Em outros termos, a mídia precisa deixar de ser instrumento para que militares levem operações psicológicas a cabo sobre a sociedade brasileira. As universidades precisam ampliar os estudos sobre a área de defesa, colaborando para a quebra do monopólio militar sobe o tema.
As possibilidades para as organizações populares são amplas. Sindicatos de categorias públicas podem discutir a isonomia entre as carreiras de Estado; o movimento de mulheres deve denunciar que o armamentismo mata e se somar às iniciativas para o control e de armamentos e desmilitarização das polícias; também pode denunciar a misoginia e a falta de políticas para a isonomia de gênero e raça presente nas Forças Armadas, especialmente no Exército; ambientalistas devem se debruçar sobre quem é o responsável pelo policiamento da Amazônia, pautando o projeto Calha Norte; assim como lembrar que o hoje senador Mourão foi responsável administrativo pelas políticas naquele território nos últimos quatro anos, inclusive sobre terras indígenas; movimentos juvenis precisam compreender que a redução da violência policial contra jovens negros passa por medidas de controle como a implantação de câmeras em fardas, que, por sua vez, exigem o fim da subordinação das polícias militares às Forças Armadas e aos governadores simultaneamente; també ;m podem, como possíveis recrutas dessas forças, exigir o cumprimento de regras que preservem sua integridade.
A militarização da política durante o governo Bolsonaro veio, sim, acompanhada da politização da caserna; são pares inseparáveis. Porém, a desmilitarização da política e a despolitização da caserna não são irmãs siamesas da profissionalização militar. Militares profissionais interveem na política, dão golpes… Construir o controle popular sobre os instrumentos de violência estatais não é algo simples. Entretanto, não é impossível. É preciso estratégia, dedicação e persistência. A água mole, em pedra dura, uma hora perfura.
 
*Ana Penido é bolsista Fapesp de pós-doutorado em Ciência Política (Unicamp).
 
1 Ana Penido e Suzeley Kalil, “O partido militar no sistema político brasileiro”, Democracia e Direitos Fundamentais, 16 set. 2022.
Um novo ciclo de transformações progressistas na sociedade brasileira? bit.ly/41AKA9j

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